♡• c i n c o •♡

Tu vens pela imperfeição
Tu vens pela rejeição
Tu vens e não há quem te impeça de amar
És Tu • Comunidade Católica Shalom

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D o n a t o

Eu gosto de ser padre.

Porém, confesso que a confissão não é o meu sacramento favorito.

Quando se tem amigos como os meus, às vezes ser padre é... com o perdão do termo, uma bosta.

O que eles deveriam fazer? Terapia. O que eles fazem? Confissões.

Terapia quem faz sou eu, para não acabar trocando a batina por uma camisa-de-força.

Tudo o que eu queria era que eles pelo menos me ouvissem. Mas me escutam? Não, não me escutam. Só o que fazem é me confundir com um psicólogo. Jogam toneladas de lixo emocional em cima de mim, cientes de que não vão querer ouvir a minha opinião, e, para completar, ainda têm a audácia de me dizer que não posso contar nada para ninguém, porque é "segredo de confissão".

Não. Não é. Eles não pisam em um confessionário desde que eram crianças!

Ravel, por exemplo, faz todas as suas "confissões" habituais a qualquer hora, em qualquer lugar e sem qualquer aviso prévio.

"Donato, hoje à tarde eu bati três punhetas pensando na bunda e nos peitos de uma mulher que não é a minha esposa. Perdoe-me, padre, porque eu pequei. Isto é uma confissão. Se você contar para alguém, vai pro inferno".

"Donato, hoje eu acordei de pau duro, e não foi uma simples ereção matinal. Sonhei de novo que estava transando com outra mulher. Perdoe-me, padre, porque eu pequei. E, se você contar para alguém, também estará pecando, pois este grupo de dois membros que acabei de criar agora é o meu confessionário. Então, é seu dever sacerdotal excluir esta mensagem assim que for lida".

"Donato, hoje na praia eu senti muita vontade de beijar os lábios de uma gostosa de biquíni. E não tô falando só dos lábios de cima. Perdoe-me, padre, porque eu pequei. Se contar para alguém, vou pessoalmente ao Vaticano exigir sua excomunhão".

Já perdi as contas de quantas vezes li ou escutei coisas assim. Se a "confissão" é on-line, ele geralmente exclui o grupo assim que eu visualizo a mensagem e cria outro quando precisa.  Se é presencial, despeja seus pecados do nada e sai andando. Não espera pelos meus conselhos e muito menos aguarda a penitência.

E é por isso que me é custoso acreditar em sua alegada fidelidade. Há anos Ravel confessa que tem pensamentos cobiçosos em relação a outras mulheres. E, toda vez que eu tento conversar seriamente sobre isso ou sobre seu casamento, ele se esquiva, geralmente fazendo uma de suas piadas rotineiras.

Roman me conta praticamente tudo o que acontece em sua vida, mas ignora todas as minhas advertências e não se confessa com padre nenhum. Acredito que, se ele realmente confessasse cada pecado que comete, passaria mais tempo na igreja que eu.

Candara nunca foi uma pessoa religiosa. Então, segue o exemplo do irmão e não faz confissões. No entanto, ao contrário dele, não compartilha mais nada comigo. Alguns anos atrás, nossa amizade acabou. Nós nos distanciamos e, agora, somos praticamente estranhos.

Acho que não a amo mais, como amei um dia.

Era um sentimento platônico e pueril. Por um curto período, se metamorfoseou em raiva e rancor. Há muito tempo é apenas carinho e compaixão.

Sinto pena dela, por ter se casado com um homem que nunca a amou de verdade.

Eu sempre suspeitei de que Ravel não estava apaixonado, porque não parecia, de maneira alguma, que ele sentia por ela o mesmo que eu. Depois que os dois começaram a namorar, torci para que Candara percebesse. Contudo, nunca se deu conta. Uma vez, tentei abrir seus olhos. Mas acho que estava cega de amor. Ou simplesmente não queria enxergar.

É apaixonada pelo marido desde sempre. Ravel ainda era um moleque de doze anos quando ela, aos quatorze, já dizia para todo mundo que um dia ia se casar com ele. Eu tinha treze e era o amigo secretamente apaixonado que sofria em silêncio, feito o idiota que sempre fui.

Na minha cabeça, ela não me amava por algum motivo específico. Talvez, porque eu não era tão desinibido. Ou tão alto. Ou porque não era loiro nem tinha tatuagens. No início da vida adulta, eu até fiz uma, mas nunca cheguei a mostrar a Candara, porque, no momento em que ia fazer isso, ela me contou, toda feliz, que tinha sido pedida em namoro.

Naquela época, apesar de desejar ser tão bom quanto Ravel, eu não o invejava a ponto de odiá-lo. Jamais o odiei. Confesso que senti raiva muitas vezes, mas fiz tudo o que pude para não cultivá-la. Afinal, ele era meu amigo e não tinha culpa de, desde a infância, ser a pessoa que despertava o interesse da garota que despertava o meu.

Se Candara não gostasse dele, as coisas poderiam ter sido diferentes. Se ela tivesse me enxergado de outra maneira, provavelmente a minha vida teria tomado outro rumo. Não que eu me arrependa de ter trilhado o caminho para o sacerdócio.

Não me tornei padre por causa de uma decepção amorosa. Fiz isso porque sempre foi a minha vocação. Eu queria ser padre. Eu sempre quis ser padre.

Ah, como eu queria que isso fosse verdade!

Tive uma criação rigorosamente católica. Fui batizado, fiz catequese, a primeira comunhão e crismei. Ia à missa todos os dias. Estudei a vida toda em um colégio católico. Fiz faculdade na Pontifícia Universidade Católica. Mas não passava pela minha cabeça a ideia de ser padre.

Na adolescência, com os hormônios à flor da pele e em plena aurora do meu primeiro e único amor, tudo o que eu queria era... bem, fazer certas coisas, típicas da idade. Mas a menina que fazia o meu coração acelerar parecia flutuar quando via meu amigo.

Achei que fosse algo passageiro. Achei que, com o tempo, ela acabaria sentindo o mesmo por mim. Então, esperei. Esperei até precisar desistir, aos vinte e três anos.

Nunca tinha sequer beijado uma garota. Era um menino totalmente inexperiente e muito envergonhado no corpo de um adulto.

Quando ela ficou noiva, eu me dei conta de que era o fim. Depois de todos aqueles anos de espera, eu teria que... esquecê-la. Mas como, se me agarrei a uma tola esperança e ousei imaginar a minha vida toda ao lado dela?

Como eu iria ao casamento da mulher que deveria ser a minha esposa? Que desculpa eu daria para não comparecer?

Comecei a pensar nisso, enquanto me acostumava à ideia de refazer todos os meus planos. Eu tinha que... sei lá, partir para outra? Sim. Provavelmente, ficar com outra era a única forma de esquecê-la.

Mas o tempo havia passado. Eu perdera anos da minha vida esperando por ela e sonhando com o dia em que perderíamos a virgindade juntos.

Naqueles tempos, Candara desabafava comigo. Eu sabia que ela não transava com Ravel, e isso alimentou o meu sonho por anos.

Às vésperas do casamento, percebi que ela jamais abdicaria de sua escolha e me vi perdido em meio aos escombros do meu coração.

Eventualmente, eu teria que me reconstruir e seguir adiante. Porém, ao pensar nisso, o pânico me consumia. Como eu ia beijar uma mulher sem que ela percebesse que eu nunca beijara ninguém? Não saberia fazer direito e, com certeza, seria ridicularizado. De algum modo, todo mundo ficaria sabendo. Decerto iam querer publicar sobre o curioso e inacreditável caso do homem de vinte e três anos que nunca beijou e nem sabe beijar.

Foi a vergonha. Eu tomei a impulsiva decisão de ir para o seminário por causa da minha estúpida vergonha, o que é estúpido e vergonhoso.

Felizmente, meu ato irrefletido não me trouxe arrependimentos. Eu poderia ter voltado atrás antes de tudo se tornar definitivo, mas me encontrei no sacerdócio. Comecei pela razão errada e permaneci pelos motivos certos.

Apesar disso, o medo de ser descoberto me causa pesadelos até hoje, principalmente por causa das mentiras que contei.

Não me orgulho disso, é bom ressaltar. No entanto, há muitos anos, inventei um monte de coisas sobre a minha até hoje inexistente vida sexual. As fitas cassetes que eu achava nas coisas do meu pai, na época em que ele era casado com a minha mãe, patrocinaram as minhas lascivas e fictícias aventuras. Acho que meus amigos acreditavam que eu era praticamente um astro pornô na adolescência, porque ainda me perguntam como consigo ficar sem sexo. Roman expressa sua incredulidade frequentemente. E eu sempre respondo que é difícil, mas que os exercícios físicos, que comecei a fazer após a minha ordenação, liberam substâncias que me ajudam muito.

Realmente é difícil. Mas acho que, para mim, é muito mais fácil, porque ninguém sente falta do que nunca teve.

Só que sente, sim.

Enquanto ouço a voz de Ravel, lanço as vistas na direção de Candara, que está posando para uma foto. O cabelo solto cobre a lateral de sua face, me impedindo de ver seu rosto por completo. Ao lado da irmã, Roman sorri para o fotógrafo, envolvendo a cintura da esposa.

Quando eu tinha treze anos, meu amigo tinha quinze e estava namorando uma menina do colégio, a única garota que ele namorou, além de Geórgia.

Nessa época, Verdana era uma criança. Tinha apenas dez anos e, enquanto nós quatro passávamos pelas primeiras turbulências da adolescência, a mais nova de nós passava todas as tardes livres lendo Harry Potter e transformando sua imensa coleção de Barbies em bruxas de Hogwarts.

Ela é minha melhor amiga. Ao longo dos últimos anos, ocupou o posto que um dia foi de sua irmã. Nunca lhe contei que já fui apaixonado por Candara. E Verdana também nunca conversou comigo sobre suas paixões juvenis ou sobre relacionamentos, de modo geral. Sua vida amorosa é bastante reservada, e nossa amizade é do tipo que não requer troca de confidências ou confissões. Não há cobranças nem pressões; apenas leveza e tranquilidade.

Às vezes, tudo o que eu preciso é de sua presença. Então, nós nos encontramos e ficamos quietos, contemplando um pôr-do-sol ou as estrelas salpicadas no firmamento. Outras vezes, necessito de sua voz doce e suave, do riso fácil e alegre, do bom humor contagiante. E tem as vezes em que ela só quer chorar um pouco no meu ombro. Afago seu cabelo e digo coisas bonitas. Melhoro seu dia, e ela frequentemente salva o meu.

É por isso que fico tão feliz quando a vejo se aproximando, por mais que seja estranho.

Verdana foge de Ravel como o diabo foge da cruz. Sempre que podem, eles se evitam. Em toda a minha vida, nunca vi os dois interagindo de forma pacífica, porque nunca se deram bem. E jamais deixaram de lado suas disputas e rixas infantis. Até hoje brigam pela atenção e pela preferência de dona Anísia, que é avó de Ravel e a única figura materna que Verdana teve.

Seus pais se divorciaram quando ela tinha três anos de idade, pouco depois de a mãe ir para o exterior, decidida a alavancar sua carreira de atriz, e ser fotografada por um papparazzi, aos beijos com um diretor de cinema mundialmente famoso. Armando ficou com os três filhos, e dona Anísia, que trabalhava como cozinheira na mansão da família e adorava as crianças, começou a cuidar delas aos poucos. As babás nunca ficavam por muito tempo, porque, aos oito anos, Roman era um garotinho revoltado que, com suas insubordinações e premeditadas traquinagens, dificultava bastante a permanência de qualquer pessoa, até mesmo das mais pacientes. Assim que o cargo ficava vago, Dona Anísia substituía a desistente da vez e, por alguns dias, a paz reinava. Seu pulso firme, combinado à afetuosidade costumeira, fazia milagres. Graças a seu carinho pelas crianças, que sempre foi recíproco, acabou deixando suas tarefas na cozinha, até começar a se dedicar integralmente a elas.

Acredito que não tenha sido uma transição difícil. Na época, Ravel tinha cinco anos e estava aos cuidados da avó desde o nascimento.

— Cuidado, padre... Se continuar fazendo justiça com as próprias mãos, vai ser castigado pela justiça divina! — ele diz, às gargalhadas, sem se dar conta de que logo teremos uma insólita companhia. — Quando for pro inferno, vai ter que sentar no colo do diabo!

— Posso saber o que é tão engraçado? — Verdana estaca a alguns centímetros de distância.

Ravel fica imóvel por alguns segundos, parecendo surpreso e... afetado pela inesperada aparição de sua cunhada. Afetado demais.

Não sou tão idiota assim. É claro que já notei que, apesar de não suportá-la, de vez em quando ele olha para ela de um jeito... pecaminoso. Verdana é linda. E Ravel não vale nada. Então, nunca me surpreendeu o fato de que, sempre que acha que ninguém está vendo, ele esquece os olhos no corpo dela.

Também já percebi que fica estranho nas raríssimas ocasiões em que ela se aproxima. Acredito que o motivo seja uma espécie de incômodo, advindo de algum resquício de bom-senso, misturado à culpa por não se conter diante dos atributos da irmã de sua esposa.

— Falando no diabo... — Ele se vira, abrindo um estudado sorriso provocativo.

— Cuidado, Ravel... Você pode estar falando com a sua futura chefe. — Verdana  o encara, arqueando uma de suas sobrancelhas escuras. — Tudo depende de como vai se sair na sua entrevista amanhã. Particularmente, estou torcendo para que seja um fiasco. — O tom venenoso é silenciado pelo deboche que curva seus lábios rubros.

Ravel fica quieto por um instante, como se estivesse absorvendo o impacto das palavras perversas.

— E eu estou torcendo para que você esteja certa. — Sua voz ecoa de repente. — Quero esse emprego tanto quanto quero um chute nas bolas. Mas... como sei que está louca para trabalhar comigo, prometo que vou me esforçar.  — Um dos lados de sua boca se ergue.

— Realmente. — Ela solta uma risada rascante. — Tudo o que eu quero é trabalhar com o meu cunhado traidor!

— Ex-cunhado — ele corrige. — E quantas vezes vou ter que repetir que não traí Candara?

— Ter que suportá-lo dentro da minha própria casa, depois de tudo o que você fez, não é o bastante! — Verdana prossegue, atropelando a pergunta. —  É óbvio que eu quero você também no meu trabalho, enchendo o raio do meu saco vinte e quatro horas por dia! Sim, é claro que estou louca para ver as suas malditas fuças o dia inteiro, inclusive durante as únicas oito horas diárias de paz que eu achei que teria! É tudo o que eu quero!

Penso em intervir, antes que a conversa em alto e bom som se transforme em um show para os convidados, mas acabo desistindo. Não adiantaria e, além disso, só tem familiares e amigos próximos na festa. Estão todos acostumados a esses espetáculos protagonizados pelos dois.

Na infância, Ravel e Verdana brigavam tanto que, aos sete anos, ela deu uma pedrada na cabeça dele. E essa foi apenas uma das vezes em que uma briga infantil levou um deles para o hospital.

Tudo bem que ela o acertou sem querer e que chorou muito, principalmente quando viu o sangue, mas... no dia seguinte, lá estavam os dois de novo, gritando um com o outro e brigando feito cão e gato.

As coisas não mudaram na adolescência. Continuaram discutindo, competindo e discordando quanto a absolutamente tudo. Até coisas que tinham em comum, como o gosto por livros de fantasia, eram motivos de discórdia e bate-boca. Por exemplo, se Verdana comentava com a gente que a Corvinal era a melhor casa de Hogwarts, Ravel se metia no assunto e começava a defender a Grifinória. Aí, ela dizia que ele não era da Grifinória, e sim da Sonserina, coisa que, por alguma razão, meu amigo não aceitava. Isso bastava para que os dois se exaltassem e entabulassem um diálogo acalorado, que logo se transformava em uma discussão. O mesmo acontecia em relação a literalmente qualquer coisa.  Todo comentário era rebatido de alguma maneira. Bastava um dar uma opinião para o outro se opor com veemência, o que acabava gerando uma sucessão de ataques verbais. Dona Anísia sempre precisava interferir, geralmente colocando os dois de castigo. Se o castigado era seu neto, ele a acusava de preferir Verdana. E quando era a suposta protegida que sofria as consequências por seus atos, ele se gabava ou morria de rir e era posto de castigo também. Então, era a vez de Verdana pirraçá-lo e de a exaustiva briga recomeçar. Parecia que nunca tinha fim.

— Sério? Que coincidência! — ele berra, esbanjando o mesmo sarcasmo em notas elevadas. — É tudo o que eu quero também! Voltar a morar com a minha avó aqui na sua casa, aos trinta e quatro anos, com certeza estava nos meus planos! E começar a trabalhar com essa idade, depois de ter coçado o saco a vida inteira, era tudo o que eu esperava a essa altura! Com certeza, me tornar um trabalhador assalariado depois de tanto tempo vivendo na mordomia era o meu maior sonho! Nem acredito que finalmente vou poder realizar tudo isso!

— Você pode até morar aqui por enquanto, graças ao meu pai, que só permitiu porque vó Anísia pediu, e a gente faz tudo por ela. E pode até ter conseguido essa entrevista, graças a Roman, que é um babaca por tentar te ajudar, depois do que você fez com Candara. Mas, se depender de mim, não vai trabalhar na Fonts. Ah, é! — Ela dá um tapinha na testa, rindo. — Depende de mim!

— Na verdade, não depende. A empresa é do seu pai. Roman é o diretor da franquia em que eu pretendo trabalhar. E, se você não for justa e imparcial na minha entrevista, não é a eles que vou reportar a sua falta de ética — avisa, em um tom ameaçador.

— É mesmo? — Ela abre um sorriso desdenhoso. — Posso saber a quem você vai reportar a minha falta de ética?

— Minha avó. — Ravel arqueia uma sobrancelha.

— Vó Anísia conhece o neto que tem. Eu vou dizer que você está mentindo, e é claro que ela vai acreditar em mim. — Verdana imita o gesto dele, e sua expressão se enche de autoconfiança.

Ele fica calado por alguns segundos, ciente de que ela está certa.

— Faça o que você quiser. — Move os ombros, em sinal de descaso. — Não tô nem aí, porque amanhã eu vou me sair bem na entrevista, quer você queira ou não. E, acredite em mim, vou conseguir o emprego. De um jeito ou de outro, você vai ter que me engolir. — Sorrindo, ergue a taça, em um brinde imaginário, e bebe todo o restante do champanhe.

— Cuidado para não ficar bêbado, querido. — Verdana usa uma entonação debochada. — Ouvi dizer que acha graça de tudo quando está com o rabo cheio de álcool. E, acredite em mim, você não vai querer achar este dia engraçado. — Mostra um sorriso maldoso e sai andando, balançando a... hã... o traseiro.

— Donato... o que você acha que ela quis dizer com isso? — Ravel pergunta, aparentemente preocupado, assim que ficamos sozinhos.

— Não faço a menor ideia. Só sei que vocês dois trabalhando no mesmo lugar e morando de novo na mesma casa é uma péssima ideia. — Termino de tomar minha água.

— Eu sei, cacete! Mas o que eu posso fazer? — Um suspiro frustrado escapa. — Preciso de um emprego, já que não vou mais ser bancado por Candara. E preciso de um teto, agora que saí da casa dela.

Apesar de ter feito faculdade, ele nunca trabalhou na vida. Desde que se casou, vive às custas da esposa milionária, que é co-presidente do Conselho Administrativo da Fonts e a única que decidiu seguir a carreira executiva do pai. Roman uniu o útil ao agradável; preferiu usar sua formação para administrar uma das franquias, graças à paixão que sempre teve por idiomas. E Verdana, com seu gosto pelo ensino e sua aptidão nata para lidar com pessoas, optou por se dedicar tanto ao corpo discente quanto ao corpo docente de uma das escolas.

Segui um caminho totalmente diferente dos meus amigos. Eu me formei em Engenharia Aeronáutica e larguei meu trabalho na empresa da minha mãe durante uma crise acarretada por uma desilusão amorosa, que me levou a ressignificar a minha lamentável abstinência, com a ajuda da minha atual profissão. Não me arrependo disso, é bom ressaltar.

— Por que você não procura emprego em outro lugar e tenta alugar um apartamento? — questiono, pois me parece ser a coisa mais sensata a se fazer.

— Roman me ofereceu o antigo apartamento dele. Eu estava disposto a morar lá até conseguir juntar uma grana, mas minha avó veio com o papo de que está no fim da vida e que quer passar o máximo de tempo possível comigo. Disse que conversou com Armando e que ele aceitou que eu morasse aqui. Mas é claro que aceitou! Quem consegue dizer não praquela velha? — ele resmunga, e eu acabo rindo, porque é realmente impossível negar alguma coisa a dona Anísia. — Depois disso, fui obrigado a aceitar a outra oferta de Roman.

— A oportunidade de trabalhar na mesma franquia que ele e Verdana? Você foi obrigado a aceitar? Conta outra, Ravel. — Balanço a cabeça, achando graça. — Quem não te conhece, compra caro. Você aceitou porque quis, só para infernizar a vida da coitada.

— É ela que vive enchendo o meu saco! Você realmente acha que eu quero trabalhar com aquele cão dos infernos, Donato? O que eu ganharia com isso, além de uma puta dor de cabeça? — Ele me encara, indignado.

— Você não vai trabalhar com ela. Vai trabalhar para ela — friso.

— Meu chefe será Roman, o diretor da escola — Ravel corrige.

— Não. — Estico os lábios. — Você será um professor de inglês, o que significa que sua chefe será Verdana, a orientadora pedagógica da escola.

— Claramente, você não sabe como funciona a hierarquia em uma escola de idiomas, padre! — Ele se exalta.

Solto uma risada, o que parece enfurecê-lo ainda mais.

— Trabalhar lá vai ser uma verdadeira provação divina, mas é a minha única opção — alega, parecendo acreditar nisso.

— Realmente. Afinal, não existem outras escolas de idiomas. A Fonts é a única rede de franquias sem concorrentes — ironizo.

Um garçom se aproxima, e eu deixo minha taça vazia sobre sua bandeja.

— Donato, para e pensa um pouco, que foi exatamente o que eu fiz antes de aceitar essa merda. — Ravel faz o mesmo que eu, recusando um novo abastecimento de champanhe, que é a única coisa que ele bebe. — Se procurar emprego em outros lugares, com trinta e quatro anos e nenhuma experiência, só vou conseguir trabalhar como monitor. Isso se eu encontrar alguma vaga! Ou seja, vou demorar ainda mais para sair daqui. Por outro lado, se eu ficar com a vaga na Fonts, vou conseguir fazer um pé-de-meia bem mais rápido. Aí, é só achar um apartamento cujo aluguel eu consiga pagar e convencer minha avó a morar comigo. Isso tudo enquanto procuro outro emprego, munido da experiência necessária e recém-adquirida. Viu como eu sou um gênio?

— É um péssimo plano, gênio — constato, rindo. — Vó Anísia mora aqui há décadas. Está acostumada ao conforto e ao carinho de todos nós. E eu duvido que você consiga se habituar tão facilmente a uma vida simples. Apesar de não ser um milionário, você foi criado como se fosse, Ravel. Mora em mansões desde criança, estudou em colégio renomado, fez vários cursos de idiomas, vivia conhecendo outros países, sempre usou roupas e sapatos de grife, comia do bom e do melhor e se acostumou a frequentar os mais caros e requintados restaurantes. Não vai ser tão fácil quanto pensa. E digo isso por experiência própria. Demorei um pouco para me adaptar ao estilo de vida e ao salário de um padre, principalmente no início. Não sei se você está ciente da enormidade de uma mudança como a que provavelmente está prestes a enfrentar.

— Não vivo no mundo da lua, padre. Tenho perfeita noção de que o meu salário como professor de inglês, apesar de ser razoável, provavelmente não cobrirá nem os gastos da minha moto! Já pensei nisso. Não estou achando que vai ser moleza, mas, se tanta gente consegue trabalhar e sobreviver com pouca grana, eu também consigo. Sim... eu consigo. Claro que consigo — repete, aparentemente tentando convencer a si mesmo. — Vou dar um jeito. Faço qualquer coisa. Até um pacto com o diabo, se for preciso. Mas sem a minha Harley eu não fico.

Abro a boca para repreendê-lo, mas sou interrompido.

— Padre! — Alguém me chama.

Olho na direção da voz feminina. Avisto uma das fiéis da paróquia, amiga de dona Anísia.

— Era só o que me faltava! Lá vem aquela velha da boca murcha, que é chata pra cacete! — Ravel resmunga, ao ver a senhora se aproximando, com seus passinhos cautelosos. — Hoje eu acordei de ovo virado! Se ela falar bosta comigo, vai ouvir merda!

— Ela é uma senhora, Ravel. Respeite os idosos. — Dessa vez, não perco a chance de censurá-lo. — Dona Celestina é muito agradável e gentil. — Ressalto qualidades que, francamente, essa idosa específica não possui.

Ele está certo. Ela é mesmo... hã... incoveniente. Mas eu sempre cumpro meu papel da melhor maneira possível, tratando-a com o devido respeito e atenção.

— Agradável e gentil? Só se for com você, que vive deixando as calçolas dela ensopadas! — Ouço uma gargalhada. — Deixa de maldade e dá um trato na velha, Donato! Se fizer esse ato de caridade, pode até largar a batina que ainda assim terá um lugar garantido no céu!

— Não pretendo largar a batina. E, pelo visto, estou rezando pouco por você, Ravel. — Meneio a cabeça, demonstrando minha reprovação.

— Não preciso de reza, preciso de um exorcismo, padre. — Ele ri.

Expresso a reprimenda que não tenho tempo de verbalizar. Dona Celestina nos alcança assim que ele fecha a boca e o encara de um jeito que me faz acreditar que meu amigo é o próprio Anticristo.

Então, ela se vira para mim. Percebo que, por um instante, seu semblante revela uma crítica velada. Provavelmente, estou sendo julgado por estar na companhia de um dos maiores expoentes do Apocalipse.

— A bênção, padre — pede, recurvando-se e apanhando minha palma.

— Deus te abençoe — respondo, e, enquanto ela beija o dorso de minha mão, Ravel faz uma hilária careta de asco, que apenas eu vejo.

Uma súbita vontade de rir me acomete e me sinto demasiadamente culpado por isso.

— Bom dia, padre Donato! — Ela endireita a coluna, ajeitando os óculos de grau. Os olhos escuros, ilhados por rugas, se fixam nos meus, e seus lábios finos se esticam amistosamente.

Pelo visto, fui perdoado.

— Bom dia, dona Celestina — retribuo o cumprimento, abrindo um sorriso cordial.

— Bom dia, Ravel. — A entonação calorosa se vai, e a fisionomia contente é substituída por um indisfarçável esgar quando ela move o rosto na direção de meu amigo.

— Bom dia — ele responde, de forma forçosamente polida.

— Sempre achei o seu nome muito esquisito, sabia? — dona Celestina comenta, do nada.

— O da senhora é muito bonito! — Ravel manifesta a ironia com um dissimulado e exagerado sorriso laudatório.

— Ah, muito obrigada. — Ela não capta o sarcasmo. — Eu também gosto bastante. Foi uma homenagem ao meu finado avô Celestino. Que Deus o tenha. — Seus dedos nodosos sobem até a testa enrugada, alcançam o peito, cruzam os ombros ossudos e tocam a boca estreita. — Quero te contar uma coisa. Esses dias, pedi pro meu neto pesquisar o seu nome no computador. Sabia que tem um significado?

— Rebelde. — Ravel repuxa os lábios, orgulhoso.

— Sim. Esse é um significado muito infeliz. — Dona Celestina balança a cabeça, reprovadora. — Mas também pode significar "aquele que Deus curou". Então, você ainda tem jeito, meu filho. Não gosto de falar da vida dos outros, mas tem gente que gosta e ainda espalha a fofoca, sabe? Eu andei escutando umas coisas a seu respeito lá na igreja e aqui na festa. Sobre o... divórcio. — Pronuncia a palavra baixinho, de forma escusa, como se fosse uma espécie de impropério. — E o pior é que não fiquei surpresa. Não mesmo. Candara é uma menina muito doce e abençoada. Sei que não teve culpa de nada. Mas você... — Ela o analisa de cima a baixo. — Só Deus para ter misericórdia! E Ele tem. Se você se arrepender do que fez, se confessar e pedir perdão pelos seus pecados, o Pai te perdoa e te restaura. É imensa a misericórdia divina, sabia?

Não sou capaz de ler mentes, mas, quando checo a reação de Ravel, consigo imaginar, pela expressão hostil, o que ele gostaria de dizer: "a misericórdia divina só não é maior que a língua da senhora". Porém, permanece quieto, provavelmente relutando contra a vontade de xingar e se esforçando para manter a própria língua dentro da boca, em nome da boa educação que recebeu da avó.

— Outra coisa, querido... — ela continua, incapaz de se conter. — O nosso corpo é templo do Espírito Santo. E você profana o seu com essas... pinturas horríveis! — Seus lábios se retorcem, e os dedos se movem no ar, indicando a região acima do colarinho da camisa dele, que revela o início dos traços gravados à tinta preta.

Imagina se ela soubesse que eu também tenho tatuagem! Acho que cairia dura.

Felizmente, dona Celestina continuará viva e bem, porque a minha "pintura horrível" está muito bem escondida.

Não sei como ela não se cansa desse assunto. Sempre que vê Ravel é a mesma coisa.  Nem a avó dele se incomoda mais com as tatuagens. Quando fez a primeira, dona Anísia quase teve um ataque. Depois, vieram as outras e, com o tempo, ela foi se cansando de reclamar. Mas dona Celestina é incansável.

Meu amigo, por outro lado, se cansou. Percebo que está prestes a soltar os cachorros e resolvo interceder, pelo bem de todos.

— Dona Celestina, como vai o seu primeiro bisneto, que nasceu na semana passada? — pergunto de repente.

— Ah, sim! Era sobre isso que eu queria falar com o senhor, padre! Mais precisamente, sobre o batizado! Meu bisnetinho é tão grande e saudável! O senhor precisa ver que graça de menino! Não tem uns olhões assim, claros e bonitos que nem os seus, mas eu fiz uma promessa, pra ele virar padre quando crescer! — Ela se empolga, e Ravel aproveita para fugir.

Ao vê-lo se afastando depressa, eu me arrependo amargamente da minha exitosa tentativa de apaziguar os ânimos. Agora, vou ficar um século aqui, ouvindo sozinho tudo o que ela tem a dizer. E dona Celestina é muito generosa com as palavras.

Estou há bons minutos escutando tudo o que ela acha do bebê quando decido intervir, em meu próprio benefício.

— Está muito quente aqui, não? O sol não está incomodando a senhora? — Faço uma aba com a mão, grudando a palma na testa, embora os raios não estejam tão intensos.

— Ah, realmente, padre. Eu até tinha pensando em usar um dos meus belos chapéus hoje, mas passei laquê no cabelo e achei meu penteado tão lindo que não quis cobri-lo, sabe? — Ela toca os fios tingidos e rígidos, moldados em um formato semelhante ao de um capacete. — Mas está mesmo começando a esquentar. O senhor pode me ajudar a alcançar minha mesa ali debaixo do toldo? — pede, apoiando a mão em meu cotovelo.

— Claro que posso — concedo, começando a guiá-la.

— Sempre fico abismada com o tamanho do seu braço... — Ela dá um tapinha em meu bíceps. — É impressionante o quanto o corpo do senhor é forte...

— Minha fé é muito maior que o meu braço, e o meu espírito é mais forte que o meu corpo, dona Celestina — respondo, meio incomodado.

— Ah, sim! Tenho certeza disso. Um homem tão garboso e formoso quanto o senhor só dá conta de ser padre se tiver muita fé e um espírito inabalável! — Ela ajeita os óculos e ergue o rosto para me encarar. — Posso perguntar uma coisa, padre?

— Claro que sim — concordo, preparando-me para o que presumo que vou ouvir.

— Por que o senhor decidiu ser padre? — Minhas suspeitas são confirmadas.

— Vocação — respondo prontamente, com o sorriso que sempre uso quando alguém me faz essa mesma pergunta.

De fato, hoje acredito que possuo um chamado e que todas os meus atos me levaram a um caminho escolhido por Deus. Mas, em verdade, essa não deveria ser a minha resposta.

Não gosto de mentir e, apesar de ser um pecado que evito sempre que posso, às vezes cometê-lo é extremamente necessário. Nesse caso, uma sumarização é ainda mais essencial. A história completa, com todos os pormenores que tornaram a resposta simples e resumida verídica renderia questões que não me sinto confortável em elucidar. Além disso, se desfiasse o rosário, eu ficaria ainda mais tempo na companhia de dona Celestina, refém de sua tagarelice infinita e suscetível a eventuais questionamentos e outros comentários inoportunos.

— Que bom que Deus te escolheu e colocou no seu coração essa vontade de pregar a Palavra, padre. Mas, mesmo estando tão próximo do Pai Celestial, o senhor continua sendo um homem. Humano, como todos nós. Não sente falta... daquilo? Porque eu sinto. E como sinto... — Seus dedos apertam meu músculo.

Ah, meu Deus.

Eu já deveria estar acostumado a essa pergunta, mas meu rosto fica quente toda vez, principalmente se for uma dona me perguntando. Uma dona! Querendo saber uma coisa dessas! E enquanto me apalpa, ainda por cima!

— Donato, posso falar com você? É urgente! — Verdana se materializa diante de mim, e tenho vontade de abraçá-la, de tanto alívio.

— Claro! Com licença, dona Celestina. — Puxo o braço, percebendo que em poucos passos ela estará no toldo e, portanto, perto de sua mesa.

Então, pego a mão de minha amiga e começo a me afastar.

— Você estava muito vermelho. — Ela ri. — Achei que precisava de ajuda.

— Verdana, sinceramente, eu te amo! — Paro de andar e miro seus olhos. — Muito obrigado por me salvar!

— Conte sempre comigo. — Seus lábios se curvam. — O que ela disse, para te deixar tão envergonhado?

— Nada — respondo depressa.

— Você ainda está vermelho, sabia? — As pontas suaves de seus dedos tocam minha bochecha.

— É o sol — alego, olhando para o alto e contemplando o vívido azul-celeste que paira sobre as nossas cabeças.

— Ah, bom. Pensei que fosse por causa dos elogios de uma senhora assanhada! — Ela acha graça.

— Dona Celestina não estava me elogiando. Estava só... falando demais. E a vermelhidão é culpa do calor. Eu estava justamente indo para debaixo do toldo, para me proteger — improviso, disposto a não permitir que ela perceba o quanto eu sou patético.

— Tá, então vamos para a nossa mesa. Daqui a pouco começam os brindes e os discursos, e eu mal posso esperar por esse momento! — Seus olhos cintilam, de tanta animação.

— Por quê? — investigo, e ela me mostra um largo sorriso enigmático.

— Porque hoje eu vou revelar um segredo.

♡•♡

O que vocês têm a dizer sobre esse segredo?

SERÁ QUE A CASA VAI CAIR?

Eu tô MUITO ansiosa para saber o que acharam de Donato!

CONTEM TUDO PRA MIM, POR FAVORZINHO!

E, se tiverem gostado do capítulo, deixem estrelinhas pro padre! Hahahahahahaha!

A gente se lê em breve!

m i l b e i j o s

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Obrigada por ter lido até aqui!

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