Capítulo 1

Meu trajeto da escola para casa era feito todos os dias de ônibus. Mas não um ônibus legal, amarelo, igual aos que vemos em filmes norte-americanos, em que todo mundo vai sentado e conversando animadamente. Não, o que eu pegava era um circular lotado. Bem brasileiro, com direito a pessoas brigando porque alguém que não precisa sentou no assento preferencial e sovaqueira.

Guga passou pela catraca e teve a sorte de sentar no último banco vazio da condução, o mesmo que eu estava de olho desde que entramos na fila para pagar. O pior de tudo? Eu que havia lhe mostrado essa jóia preciosa dando sopa.

Bufando, joguei a mochila no seu colo.

— Que folgada — reclamou, mas ajeitou a mochila nas coxas mesmo assim.

— Você roubou o meu lugar — retruquei, pensando se um dia eu o perdoaria por tamanha traição.

A menina que estava sentada ao seu lado virou a cabeça minimamente para nós, depois voltou a olhar para a janela. Eu geralmente não reparava nas pessoas a nossa volta - na verdade, tinha mania de ignorar a maioria - mas algo nela me fez prestar atenção.

Estava me sentindo irritada naquele dia. Guga roubando o meu lugar, o calor infernal e o fato de eu estar na TPM. Se aquela menina lançasse um olhar errado em nossa direção, eu provavelmente faria algum comentário grosseiro porque não consigo segurar minha língua grande.

Ela continuou com o olhar virado para a rua quando o ônibus acelerou, fazendo-me perder o equilíbrio. Agarrei-me ao poste com força, tentando não pagar nenhum mico. Tudo que eu não precisava era cair no meio de todo mundo.

— Você é muito lerda — Guga continuou a discussão. — Não tem as habilidades necessárias para sobreviver à guerra.

— Que guerra? — Franzi o cenho, me aproximando mais do poste para garantir mais equilíbrio. Todo esse tempo pegando ônibus me fez descobrir que manter minha perna próxima do metal me ajudava a manter o corpo ereto. E evitava um tombo digno de vídeo cacetadas.

— De quem anda de ônibus, ué. Precisamos enfrentar a batalha para ver quem passa pela catraca primeiro, depois lutamos para conseguir os melhores lugares. Há quem se arrisca e senta no assento preferencial, mas não nós. Nós permanecemos em pé, como todas as outras boas pessoas. — Ele falou com uma expressão séria, como se estivesse explicando sobre a Guerra dos Farrapos.

A menina sentada ao seu lado usava fones de ouvido, mas eu vi ela soltar uma risadinha baixa logo após o discurso do meu amigo. Apertei os olhos, tentando enxergar melhor o seu rosto. Ela por um acaso conhecia a gente ou algo do tipo? Ou só estava afim do Guga? Vamos combinar que aquela brincadeira não foi tão engraçada assim.

Revirei os olhos, sentindo meu corpo ser lançado para o lado mais uma vez com a freada brusca do motorista.

— Mas só vence mesmo quem não cair — Guga concluiu, rindo da minha cara ao perceber que eu fazia um grande esforço para manter o equilíbrio.

Ouvi um riso fino se elevar por cima da movimentação dos passageiros entrando e saindo do ônibus. Meu olhar foi direto para Roberta, sentada no banco logo atrás de Guga.

Ela era uma dessas pessoas que eu fazia questão de ignorar. E, se aquele não fosse o último banco livre quando entramos, com certeza teria me posicionado em um lugar bem longe dela.

— Você é tão engraçado! — ela exclamou, tocando no ombro do meu amigo de uma maneira muito íntima.

Roberta era da nossa turma e, além de ter que aturar a garota todos os dias na escola, eu ainda tinha a infelicidade de morar em um bairro próximo ao dela. Portanto, pegávamos o mesmo ônibus. Eu odiava colocar as pessoas dentro de estereótipos, mas com ela era impossível evitar. Roberta era a típica garota popular e maldosa, que tirava sarro de quem não se encaixava minimamente dentro do seu padrão.

— Que isso, Robertinha — Guga falou, virando-se para olhá-la. Não me segurei e tive que revirar os olhos mais uma vez, dessa para o apelido. Roberta era a menina mais baixinha da classe. E, apesar de ser bem inteligente e ter os maiores seios de todas as meninas da turma, os garotos insistiam em chamá-la no diminutivo. — Você acha mesmo? Porque essa daqui — ele apontou para mim — vive dizendo que minhas piadas são sem graça.

Roberta riu, passando a mão nos cabelos vermelhos. Ela havia pintado no começo do ano, para parecer a Roberta, de Rebeldes. Agora todo mundo dizia que ela realmente parecia com a Dulce Maria, o que inflava ainda mais o seu ego enorme.

— E quem disse que a Sâmia entende alguma coisa de comédia? — Roberta virou os olhos castanhos para me encarar. — Ela que não é engraçada.

— Ah, é? — respondi, com uma voz afetada. — Vou te contar uma piada para provar que você está errada. Era uma vez uma menina que pintava o cabelo de vermelho e levantava a blusa para mostrar o piercing que colocou no umbigo escondida da mãe, tudo para chamar a atenção de meninos idiotas.

Ela fechou a cara, bem como sua amiga, Vanessa. Elas eram inseparáveis, mas eu também fingia não ver Vanessa onde eu passasse. Apesar de ela não fazer os tipos de comentários que Roberta muitas vezes soltava sobre a minha aparência, também não fazia nada para impedir a amiga. O que para mim a tornava culpada por associação.

As duas cruzaram os braços, ofendidas. Até que Roberta retrucou:

— Isso está mais para uma história do que para uma piada. — Seu tom de voz era de quem tentava soar superior, mas indicava que ela sabia que foi uma péssima resposta ao meu insulto.

A menina ao lado de Guga riu um pouco mais alto dessa vez. Virei-me para olhá-la, pensando que talvez ela não fosse tão ruim assim. Pelo menos parecia estar rindo de Roberta, não com ela.

Acontece que Roberta também ouviu o riso fácil daquela menina. Ela se inclinou para frente e cutucou os cabelos crespos da garota com seus dedos escamosos.

— Está rindo de quê, cabeça de bombril? — alfinetou, fazendo sua amiga rir com maldade.

Finalmente pude ter um belo vislumbre do rosto da menina, pois ela se virou para encarar Roberta com uma expressão de puro choque estampada em seu rosto. Ela tinha grandes olhos pretos que faziam par com sua pele negra. Os lábios eram grossos e estavam pintados com um batom rosa-choque que contrastava muito bem com o seu visual.

Ela piscou algumas vezes para Roberta, como se tentasse assimilar o que ela havia acabado de falar. E eu percebi que ela não iria se defender. Se tinha uma coisa que eu não aceitava era esse tipo de brincadeira, principalmente com estranhos e especialmente com teor tão racista.

Sentindo o sangue ferver, soltei-me do poste por alguns segundos. O suficiente para empurrar Roberta para trás, fazendo-a bater com as costas no banco.

— Ei! — reclamou.

— Sami... — Guga me chamou, prevendo o barraco que eu ia começar. Eu falei que estava de TPM naquele dia?

— Você é mais idiota do que eu pensava — rugi na direção de Roberta, ignorando o apelo do meu amigo. — Chamar uma menina que você nem conhece de cabeça de bombril? Em que mundo você vive, Robertinha? — Usei uma boa dose de sarcasmo em minha voz para ela entender que o apelido não era nada carinhoso. — É uma coisa muito ofensiva de se dizer.

Meu discurso atraiu olhares de outros passageiros. Também, não era para menos, já que meu tom de voz estava bem alto. A maioria encarou Roberta com desgosto, e senti satisfação ao perceber que ela, pelo menos, parecia envergonhada.

— Peça desculpas — ordenei, tornando a me segurar no poste para não correr nenhum risco.

Roberta me olhou com incredulidade, mas deve ter percebido em minha expressão que eu falava sério. Então soltou um suspiro exasperado e se virou para a menina, que passava os olhos escuros de um lado para o outro, acompanhando a discussão.

— Desculpa — Roberta murmurou, depois se afundou no banco, tentando se esconder, e virou a cabeça para a janela.

O ônibus parou. A menina aproveitou a deixa para se levantar e passou por Guga e por mim com ferocidade, sem sequer pedir licença. Confesso: estava esperando um agradecimento por tê-la ajudado, mas ela simplesmente me empurrou com o ombro, antes de descer no ponto com a maior cara de quem comeu algo e não gostou.

— Nossa... — Guga murmurou, enquanto se arrastava para o banco que a menina ocupava anteriormente, liberando espaço para eu me sentar. — O que foi isso?

— Tem gente que não sabe ser agradecida — resmunguei, cruzando os braços.

Antes do motorista dar partida, estiquei o pescoço, tentando ver a menina pela janela. Ela, no entanto, já havia desaparecido na rua. Suspirei alto. Isso que dá tentar ajudar os outros.

Pelo menos Roberta se manteve calada pelo resto da viagem.

Me despedi de Guga em nosso ponto, prometendo que iria entrar no MSN à noite para conversarmos. Ele pegou seu caminho da direita e eu, da esquerda. Ele ainda andaria duas quadras até chegar em sua casa, mas eu morava perto. Bastava virar à esquina e eu já estava casa.

O portão social, para pessoas entrarem, nunca era trancado, apesar de recentemente meu pai ter instalado um portão eletrônico para os carro. Minha mãe dizia que era para dar mais segurança, mas eu sabia que era porque eles estavam cansados de ter que ficar abrindo o portão manualmente toda vez que chegavam em casa.

Entrei, sentindo o cheiro de almoço. Meu estômago roncou, o que era novidade. Fazia um tempo que eu não sentia fome, mas acho que a discussão com Roberta e o fato de eu ainda estar com raiva da menina por ela não ter me agradecido por tê-la ajudado deve ter despertado algo em mim que há meses estava meio dormente.

Havia uma pequena área do lado de fora da nossa casa, com pouquíssimo espaço de grama. O resto era tudo concreto, mas para mascarar, minha mãe costumava deixar dezenas de vasos cheios de plantas em volta da casa. Tanto que tive que me desviar de vários para chegar até a porta da frente.

— Mãe, cheguei — avisei com um grito, como de costume, assim que fechei a porta atrás de mim.

— Ah... Sâmia! — ouvi ela gritar de volta. — Espera aí.

Franzi o cenho, parando no meio da sala sem saber o que fazer a seguir. A televisão estava ligada no jornal da hora almoço e eu pude ouvir minha mãe mexendo em algo em outro canto da casa. Logo em seguida, outro barulho surgiu sobre toda a cacofonia de sons. Estranhei, pois parecia que um animal estava em casa...

— Mãe? — chamei de novo, trocando o peso de perna. Meu estômago roncou mais alto. Pelo jeito hoje teríamos arroz e bife, e eu não via a hora de experimentar a carne saborosa. Minha boca salivou.

— Sâmia. — Minha mãe apareceu, segurando um negócio peludo e preto em suas mãos e me tirando dos meus devaneios alimentares. — Tenho um presente para você.

Ela me estendeu a bola de pêlos, que, percebi, se mexia. Dei dois passos para trás.

— O que é isso? — perguntei, no mesmo instante que o troço soltou um miado agudo, de doer os ouvidos.

Estava claro que era um animal. Um animal peludo e sujo. Ele abriu um olho - a coisa só tinha um olho, o outro estava fechado por uma cicatriz - e miou de novo.

— Um gato. — minha mãe falou, tentando fazer com que eu pegasse a criatura.

O gato se mexeu, tentando escapar das mãos da minha mãe. Dei mais um passo para trás, vendo suas garras afiadas e ameaçadoras.

— Tem certeza? — A mãe de Guga tinha um gato, mas ele era listrado e fofinho. Tinha o pelo reluzente e adorava ficar no colo de todo mundo. — Isso parece mais um filhote de pantera. Será que devo chamar o Ibama?

— Engraçadinha — ralhou, finalmente conseguindo me passar o bichano.

Segurei o gato no ar, vendo que havia folhas e galhos presos em seu pêlo espesso. O olho aberto era de uma cor laranja, tão claro que dependendo de como a luz batesse, parecia amarelo. A cicatriz no outro olho estava inchada e cheia de pus.

— Encontrei esse bebê vasculhando o nosso lixo. Ele estava com fome, porque quando eu dei um pouco de leite, o coitadinho bebeu tudo — minha mãe explicou. — Pensei no que poderia fazer com ele decidi que vou dar a você.

— Ok... — respondi lentamente, tentando assimilar toda a situação.

— É que saiu uma notícia na Marie Claire sobre adolescentes que estavam com depressão e um especialista disse que animais ajudam a melhorar o estado de espírito dessas pessoas. Então pensei que esse gato poderia te ajudar.

Ah, finalmente a verdade. Não pude conter um suspiro.

A depressão. O tópico que era tratado como tabu dentro da minha casa mas, que ao mesmo tempo, parecia não sair da lista de assuntos da minha mãe.

Dois anos atrás, fui diagnosticada com depressão. Na época, os dias ruins superavam os dias bons e não havia nada que eu pudesse fazer para me tirar da cama. Cheguei a passar semanas em casa, embolada em um estado apático em que eu não conseguia sentir absolutamente nada. Meus pais, preocupados comigo, me levaram a um psiquiatra, depois de tentarem me convencer que o que faltava em mim era Deus.

Cheguei a ir aos encontros de jovens da igreja algumas vezes, mas logo ficou claro que a situação não seria resolvida com religião. O que foi bem difícil para a minha mãe aceitar.

Eu ainda tratava da depressão, mas finalmente havia deixado os remédios de lado e agora consultava uma psicóloga uma vez por semana. Ainda assim, minha mãe achava que eu não estava totalmente curada. Como provava pelo gato horroroso em meu colo.

— Eu tenho a escolha de recusar esse... presente? — perguntei, virando a cara quando o bichano soltou um silvo alto, tentando me arranhar.

— Não. — Mamãe foi enfática. — Agora deixe ele no seu quarto e vamos almoçar. Depois, vamos passar no pet shop comprar algumas coisas e pedir para darem um banho nele.

Não me via morando com um gato e odiava pensar que aquele bicho poderia sujar minha cama, mas não tive outra escolha. Minha mãe era uma dessas mulheres que eram impossíveis de contrariar, tamanha era sua teimosia e persistência.

O gato se mexeu com violência entre minhas mãos, quase escapando, mas consegui chegar em meu quarto ilesa. Soltei o bichano no chão e tratei de fechar a porta logo em seguida para ele não escapar. Depois larguei minha bolsa na cadeira e observei aquela criatura desbravar o meu quarto.

A primeira coisa que ele fez foi subir na cama.

— Saí daí. — Tentei espantá-lo com as mãos, mas o animal simplesmente continuou andando de um lado para o outro sobre o meu colchão. — Você vai deixar a minha colcha fedida!

O peguei e o coloquei no chão. Cinco segundos depois, ele pulou de volta para a cama.

— Sâmia, vem almoçar — minha mãe chamou.

Tentei tirá-lo de cima da colcha mais duas vezes, mas o gato era tão teimoso quanto minha mãe. Além disso, meu estômago roncou mais alto dessa vez.

— Você tem sorte por eu estar com fome e ter comida nessa casa — disse para ele, antes de sair do quarto. — Se não se comportar, qualquer dia desses vai virar um churrasquinho.

O gato miou para mim, como se dissesse "quero ver você tentar". 

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top