Quadrilha
"Amar sem ser amado é navegar num barco furado."
Despois de uma breve discussão para decidir quem seria o primeiro a falar, que resultou num enorme galo na cabeça de André, porque esse decidira impedir Marina de bater novamente em Leona, entrando na frente da colega ruiva e recebendo o golpe, a diretora escolheu Miguel, que ficara em silêncio todo o tempo e não se envolvera na briga, para explicar o que todos faziam ali.
Sentaram em frente à diretora, Leona na ponta à direita, seguida de André, Sophia, Miguel e, por fim, Marina na ponta esquerda.
A diretora Patrícia Flores, uma loira de olhos caramelados, ouviu atentamente o Rodrigues. Depois de terminada a explicação, resumiu todos os acontecimentos, para ver se entendera bem, pois não conseguia acreditar que no primeiro dia de aula já houvesse problemas para resolver.
— Leona riu de um desenho ofensivo que fizeram da Marina, que revidou com os punhos. A professora Campos chegou e as mandou para a diretoria. Insatisfeito, André correu em defensa da colega e pediu a sua ajuda. No entanto, você o alertou não gostar de se meter nos problemas. André se voltou contra você. A professora Campos apartou o começo da nova briga e os mandou pra minha sala também. Só isso?
"Como se fosse pouco", pensou Miguel confirmando com a cabeça.
A diretora aguardou a resposta de todos, que, com exceção de Sophia, ainda desmaiada, confirmaram.
— Agora, alguém me explica porque a senhorita Almeida também está aqui — mandou apontado para a jovem estirada na cadeira entre Miguel e André.
— Não faço a mínima ideia — declarou Miguel indiferente.
— Ela passou por nós como um furacão sem dizer nada, diretora Patrícia. — lembrou Marina com uma ponta de curiosidade.
— Deve ter vindo atrás do André — Leona presumiu com um sorriso cheio de malícia.
— Hein...! De mim, porque ela faria isso?
Para variar André não entendia nada.
— Aff... Imbecil.
— Isso foi pra mim, Miguel?
André se levantou irritado com o amigo, de novo, caçando briga, de novo, quando ouviu um murmúrio baixinho e viu Sophia despertar e passar a mão na franja espessa.
Ao despertar, ela percebeu que todos na diretoria a encaravam com atenção e que estava do ladinho de André, seu amor platônico desde a quarta série, isso a fez corar imediatamente.
— Senhorita Sophia, posso saber por que está aqui. — Era um comando não uma pergunta.
Por um breve instante, bem breve, Sophia pensou em dizer a verdade: que fora vítima do péssimo humor da professora de biologia. Mas só de lembrar o olhar assassino e a raiva da professora Campos, que aumentaria se fosse repreendida pela diretora - outra casca grossa só que com mais poder -, decidiu mentir. O ruim era que não sabia mentir muito bem.
Desviou o olhar para as mãos pálidas, batendo os indicadores um contra o outro, um péssimo sinal, pois só fazia isso quando estava nervosa ou desconfortável.
— Eu...eu... — Droga, estava gaguejando, outro péssimo sinal. Engoliu á seco e juntou forças para falar mais claramente. — Eu fiz um desenho. — Deu um grande sorriso bobo e parou de bater os indicadores. Era uma ótima ideia assumir o desenho, pelo menos agora tinha uma explicação para estar na diretoria. — É eu fiz um desenho!
Todos a encararam como se ela tivesse ficado louca, o que fez que ficasse vermelha como um tomate maduro.
— Foi você que me desenhou na lousa? — perguntou Marina.
A jovem encarou a colega com desconfiança, os punhos fechados com força. Seja quem fosse, mesmo a doce Sophia, o autor do desenho sentiria na pele o tamanho do seu ódio e humilhação.
— Não seja irritante, Marina! Tá na cara que não foi a Sophia, ela jamais ofenderia alguém.
Todos estranharam Miguel defender Sophia, até mesmo ele, que fechou a cara e cruzou os braços, voltando a costumeira indiferença ao que o rodeava.
— Não é esse desenho, Marina, o outro — esclareceu Sophia voltando a ser o foco de todos.
— A professora Campos te mandou para cá por causa de um desenho? — questionou Patrícia exasperada.
Tudo aquilo estava começando a irritar a diretora, percebia que a Almeida estava mentindo ou pelo menos omitindo, a garota era mais transparente que um cristal.
— Era um desenho feio. — Pelo menos isso não era mentira. — Era uma serpente com a ca... — Só de lembrar do desenho, Sophia travou. — Com a ca... cara da profe...
— Desembucha, senhorita Almeida — gritou a diretora impaciente.
Sophia se assustou. A diretora Patrícia tinha o gênio mil vezes pior que o da professora Campos, todos tinham pavor dela, mesmo os pais dos alunos tinham medo de falar com ela, e Sophia não seria uma exceção.
Porque a brincadeira dos colegas sobrara para ela? Alguém realmente se divertia com sua desgraça. Devia ter grudado chiclete na cruz em outra vida.
— Vovó Patrícia, não grite com a Sophia — pediu André, fazendo Sophia corar e uma veia saltar na testa da diretora.
Era de conhecimento geral no colégio que Patrícia, com mais de sessenta anos, se esforçava para aparentar juventude. Muitos a chamavam de vovó pelas costas, só André tinha a coragem, ou falta de noção, para fazer isso na cara dela.
Ignorando o ódio nos olhos da diretora, André reparou que a colega, de pele alva, estava da cor de um tomate maduro.
— Está tão vermelha, deve ser febre.
Enquanto falava, André se inclinou na direção de Sophia, o rosto a milímetros do dela, e colocou a mão gentilmente por baixo da franja, tocando a testa dela para sentir se ela estava com febril.
Ao ter o rosto do colega tão próximo do seu e sentir seu toque, Sophia apavorou-se. Jogou a cabeça com força para frente, na esperança de impedi-lo de ver seu embaraço, com isso batendo sua cabeça na dele. Se pelo impacto, pela vergonha extrema ou pelo susto, nem ela saberia responder, acabou caindo desmaiada para o lado, bem em cima do colo de Miguel.
— Droga, tá satisfeito, idiota? Ela voltou a desmaiar e nem terminou de dizer o que faz aqui — reclamou Miguel abanando o rosto da colega.
— Mas o que foi que eu fiz? — quis saber André passando a mão no novo galo. — E até onde sei você nem tava interessado nessa história. — Olhou para o amigo com desconfiança.
Miguel encarou André com o olhar azedo.
— Bem, que seja — Patrícia interrompeu entediada. — Tenho muito a fazer, então, como hoje é o primeiro dia de aula, receberam suspensão e falta no boletim no dia de hoje. Da próxima vez que vir qualquer um de vocês aqui chamarei seus responsáveis.
— Mas eu não fiz nada — retrucou Leona ajeitando os óculos e fazendo beicinho de choro. — A culpa é toda da Marina.
"Ruiva desgraçada! Se te pego fora daqui te transformo em picadinho", prometeu Marina em pensamento, a raiva transbordando em seu olhar.
— Não me importa — disse a diretora com pouco caso. — Vá cuidar desse olho roxo na enfermaria ou vá pra sua casa, mas suma da minha vista antes que me arrependa e chame seus pais.
Patrícia sabia que os pais adotivos de Leona, Antônio e Saulo, odiavam importunações durante o trabalho. O primeiro era um cientista e o segundo médico cirurgião, ambos sempre faltavam nas reuniões de pais por não gostarem de perder nem um minuto de trabalho. Se os chamasse Leona estaria encrencada.
Leona temia ser castigada quando descobrissem que no primeiro dia de aula fora parar na diretoria, perder a mesada ou acesso à internet eram o terror de sua vida. Decidiu ir direto para casa, onde cuidaria de seu olho e inventaria uma boa desculpa para o mesmo.
— Vocês também vão embora — exigiu a diretora expulsando os alunos.
Marina e André se levantaram para sair, mas pararam ao perceber que Miguel continuar no mesmo lugar. Apoiava a cabeça de Sophia com um braço e a abanava o rosto da colega na esperança de que isso a fizesse acordar.
— Mas e a Sophia? — quis saber o Rodrigues meio sem graça por fazer tal pergunta. — Ela vai continuar aqui?
Patrícia olhou para o Rodrigues intrigada. Nunca imaginara vê-lo preocupado com alguém, aquilo era interessante, ainda mais porque ele estava corado.
— Podem levar Sophia pra enfermaria.
André se inclinou para pegar a colega, mas Miguel o fez antes dele, erguendo a pequena Almeida nos braços.
— Posso levar a Sophia sozinho — disse o Rodrigues desviando o olhar.
— Pela primeira vez hoje concordo com você. — André se voltou para Marina com um sorriso enorme e os olhos azuis brilhantes em expectativa. — Que tal se fossemos ao Gelados? — convidou, referindo-se a lanchonete ao lado do colégio.
Marina, que até aquele momento olhava surpresa para o Rodrigues, se voltou para André, pronta para dizer que preferia acompanhar os colegas até a enfermaria. No entanto, Miguel foi mais rápido e respondeu por ela.
— E lógico que a Marina vai, depois encontro vocês lá.
Ele virou as costas para os colegas e começou a caminhar em direção a enfermaria.
O comportamento de Miguel fez Marina se lembrar da conversa deles de manhã e uma suspeita fez seu coração gelar.
— Vamos, Marina! — disse André puxando a colega pela mão.
— Sim... — concordou aérea, sem tirar os olhos esmeraldas do Rodrigues caminhando com a Almeida no colo.
Com um leve sorriso a diretora encostou-se a sua cadeira. O ano mal começara e a história daqueles quatro se repetia como uma poesia que certa vez ouvira, só precisava trocar os nomes.
— Sophia ama o André, que ama a Marina, que ama, junto com a maior parte das garotas do colégio, o Miguel, que não ama ninguém — recitou aumentando o sorriso. — Carlos Drummond de Andrade saberia o fim dessa história?
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX. Autor do poema "Quadrilha" de 1930 que intitula esse capítulo e o inspira
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