FORASTEIRO

— Menina, é necessário que você tenha maior cuidado com teus atos. Mantenha-se em constante vigilância!

A mulher suspira e aperta as pálpebras por dois segundos antes de continuar sua fala.

— As pessoas deste lugar são peçonhentas em uma proporção que tua inocência ainda não conhece. — Ana fita o interior da panela na qual cozinha o guizado.

Enquanto isso, Lira, com o queixo apoiado sobre as palmas das mãos, observa a tia.

— Lembre-se do que aconteceu com Aleksandra. A pobre está morta! É difícil crer, mesmo que tenha assistido a execução com meus proprios olhos. Vimos aquela menina crescer... — A tia de Lira ergue a colher fumegante, pinga um pouco de caldo na palma da propria mão e prova o tempero. — E agora, restaram apenas as cinzas.

Há um fundo de melancolia na voz de Ana.

— Tia, eu ainda não sei o que dizer. Nem sei se terei algo a dizer... Apenas sinto que meu coração está aflito e queimando. Sinto uma tristeza profunda.

A tia deposita a colher ao lado da panela e abraça a menina.

— Meu amor, escutamos histórias sobre monstros, vampiros ou bruxas que são casadas com a Besta, mas, a verdade, é que nossos maiores demônios somos nós mesmos. O homem meu amor, coloca a culpa no sobrenatural para justificar seus atos mais vis.

Lira enfia uma mão no bolso oculto, que fica na saia do vestido, e retira de lá um colar com um medalhão, presente dado por seu pai.

A moça ergue a mão e observa o objeto.

— Tenho saudades de papai.

— Eu também. — A tia diz e a solta do abraço. — Se ele estivesse vivo nada disso teria acontecido.

— A senhora acredita mesmo nisso que disse? — Lira pronuncia as palavras enquanto prende uma mecha de cabelo atrás da orelha.

Ana balança a cabeça em um gesto positivo, volta sua atenção para a panela de comida e diz:

— Penso que foi o único caso em que a acusação de bruxaria não era leviana. Seu pai foi o único a morrer, há dez anos atrás, acometido por uma estranha peste febril. No outro dia, o prefeito da cidade, junto com o Padre John, receberam uma denúncia anônima, e depois de alguma investigação, encontraram embaixo da cama do casal Hutterhfowl um boneco de palha espetado por uma agulha de lã. Na imagem estava gravado o nome de seu pai.

— Santo Deus, tia! Essa história me arrepia sempre que a escuto. — Lira ergue o antebraço esquerdo para que a tia veja os pêlos eriçados e depois aspira o ar com muita vontade.

— Sim, minha filha, haja vista, o caixão do seu pai, foi todo lacrado!

O silêncio funesto toma conta por alguns minutos...

— A comida está com um aroma ótimo! — A menina ergue o colar seguro pelos dedos da mão direita e o posiciona frente aos olhos.

Ele se movimenta como um pêndulo.

— A senhora sabe o que significa este pingente?

— Não! — A mulher reage em um tom enérgico. — Sei apenas que um dia antes de morrer ele pediu para eu o entregar a você. E menina... — Seu tom de voz passou de enérgico para cauteloso. — Cuidado com a amizade que cultiva junto aos Alioth. Não vou com a cara do noviço. Além disso, eles são a família mais abastada deste lugar.

Lira sorri de um jeito maroto. Está sentada em um banco alto e suas pernas não alcançam o chão, por isso ela as balança de maneira relaxada.

— A senhora nunca gostou dos irmãos Alioth. — Sussurra como se segredasse algo e depois ri.

— Cuidado com os homens criança. – Sua tia deixa claro que não está para troças. — São traçoeiros!

— Todos? — A garota pergunta franzindo o cenho.

A tia desvia a atenção da panela e vira-se para ela. Nada diz com a boca, mas os olhos refletem um "sim" que vem da alma.

Antes da entrada do vilarejo, há uma ponte de pedra com arcos em metal.

Além de facilitar a passagem das pessoas, a ponte também é utilizada para o enforcamento de bandidos e mulheres consideradas bruxas.

Não é raro ver os corpos pendurados, muitas vezes com línguas pendentes e olhos arregalados, congelados em tal posição até que apodreçam ou que os abutres venham lhes devorar as carnes.

Uma figura imponente para no início da ponte.

Está a pé.

Apenas um cachorro (cujos semelhantes de raça são encontrados apenas na região da germânia) segue o homem.

Suas roupas trazem no modelo simplório, de linhas retas e tecido rústico, uma rigidez que lembra um movimento religioso que acontecerá séculos mais tarde, o Puritanismo.

O chapéu tem um formato peculiar, de certa forma original, pois sua aba se projeta para frente em uma ponta.

As mangas do casaco são um pouco bufantes com aberturas que deixam entrever uma espécie de camisa de tecido branco.

Em conjunto o homem veste uma calça negra que só é visível nas coxas, pois nos pés, ele leva um par de botas negras com bicos arredondados e cujos canos sobem até os joelhos.

O forasteiro deixa uma carroça atrelada a um cavalo cinza passar, para só então seguir sua jornada.

O vilarejo está movimentado.

Há uma fogueira alta no centro da cidade.

O chegante observa que no primeiro andar de uma das casas há um lençol preto que pende de uma janela.

Alguém morreu.

As pessoas movem-se de um lado para o outro, esperando a noite que se aproxima.

Assim que adentra a vila o homem encontra uma modesta feira que oferece animais vivos ou abatidos na hora.

Ele para com seu animal em frente à uma tenda.

— Tens carne fresca?

— Crua? — Pergunta o feirante caolho.

— Não! Fresca, nova. — Ele explica.

— Entendo meu senhor, claro que disponho da mercadoria.

— Por obséquio, separe o sangue neste recipiente. Meu cão gosta do sangue sobre a carne. — O forasteiro entrega um cantil de couro para que o feirante coloque o líquido vermelho.

O comerciante, faz conforme o ordenado, mas, fica assustado com o porte do animal.

— Está tudo aqui meu senhor. — O feirante devolve o cantil ao estranho.

— Obrigado. — O forasteiro entrega uma moeda de ouro.

Se fosse possível, o feirante teria arregalado ambos os olhos ao receber a moeda.

— Meu senhor, recebi mais que vendi. — O pobre caolho, devolve a moeda.

— És honesto e sincero, isso é raro nos dias de hoje, por esse motivo dou-lhe duas moedas de ouro, uma pequena recompensa. — O forasteiro entrega mais uma moeda de ouro antes de perguntar:

— Onde encontro a taberna? Existe alguma pelo menos?

O feirante tenta enxergar os olhos, ou outro ponto da face do homenzarrão à sua frente, mas percebe que é perda de tempo.

Resolve que é melhor responder logo.

— Há sim, meu senhor. Depois da casa onde há um tecido negro pendurado na janela, segunda rua à direita.

O forasteiro o agradece com o movimento à frente da sua cabeça.

— Vamos Barakj... Está anoitecendo.

O homem segue conforme foi orientado e seu cão Barakj o acompanha.

A taverna Corvo da Noite não está cheia, pelo menos ainda não.

O estranho abre a porta e fica parado, as quinze pessoas que bebem no lugar se viram para avaliá-lo.

A montanha continua parada à porta, o escrutínio não lhe assusta.

— Seu merda, vai ficar aí parado ou vai entrar para beber? — Grita o dono do muquifo.

O forasteiro bate os pés antes de entrar e depois se move.

Tem consciência de que seu animal não o acompanha, pois está sentado em total obediência.

O homem age como se conhecesse o lugar e segue até os fundos do estabelecimento.

Há uma mesa quadrada, de madeira rústica e escura e duas cadeiras do mesmo material.

O local no qual ele se senta fica mais escuro que o normal... As sombras o envolvem quase por inteiro.

— Vamos! Onde está minha bebida? — Grita um homem gordo, avantajado e alto. Ele está sentado com outros três.

— Acho que você está sem moral! — Atiça o magro ruivo, sentado ao lado do grandalhão.

— Essa porra é um lixo!

O dono do bar grita pela atendente que sai da cozinha esbaforida, anda por espaços estreitos entre os homens enquanto leva uma bandeja de pinho.

Sobre a bandeja, há comida em pratos de barro cozido.

De maneira eficiente a moça chega à mesa para entregar a refeição.

O forasteiro a acha incomum... Talvez pela cor do cabelo.

O homem careca, gordo e quase sem pescoço a fita com maldade. É nítido que tem enorme desejo de possuí-la.

— Meu Amor... — seu tom é jocoso — Pedi as bebidas, antes da comida!

A atendente demonstra um pouco de tensão, como se fosse um animal enjaulado frente a frente com seu predador.

Ela prende a respiração por dois segundos e evita olhar diretamente nos olhos do homem, deixa a comida sobre a mesa e volta para buscar as bebidas.

Depois de servir a bebida solicitada, a moça deixa a garrafa sobre a mesa e faz o caminho de volta para a cozinha, no entanto, antes que chegue ao cômodo, seu chefe faz sinal para que ela atenda o forasteiro que está em uma mesa no canto da taverna.

A moça enxuga a mão suja de bebida no tecido imundo que serve como avental, depois segue na direção indicada.

Consequentemente ela passa perto da mesa que atendia alguns momentos antes, o careca se aproveita da distração e dá um tapa nas nádegas da infeliz.

O estralo é alto e o impacto faz com que ela dê mais um passo a frente.

Ela para e encara o gordo careca.

Ele retribui mostrando a língua e fazendo movimentos indecentes com a mesma.

— Você vai ser minha! — Promete piscando para ela.

A moça acelera o passo rumo ao forasteiro.

— D-desculpe-me, meu senhor, pela demora. — Gagueja levemente por estar nervosa.

Por um momento o silêncio é a resposta que o homem lhe dá.

— O que o senhor deseja?

— Vocês tem whisky?

Ela anui com a cabeça.

— Quero uma garrafa, por favor.

Ela se vira de pronto para buscar o que foi pedido, mas antes que dê mais um passo ouve ele dizer:

— Meu nome é Lyon. Irei fazer a ti uma pergunta e não tenhas a ousadia de mentir.

Ela se vira novamente para o homem e responde:

— C-claro... O responderei. — Fala timidamente.

— Onde conseguistes este medalhão que traz no pescoço? Sabes o significado do brasão?

A jovem surpreende-se ao vê-lo citar seu colar que está à mostra.

Desprotegido, acima de suas roupas.

Os olhos do homem, até então despercebido na escuridão, acendem-se levemente em um tom de vermelho quando ele analisa o medalhão médio que está preso ao colar no pescoço da moça.

A peça é redonda, feita em ouro branco e traz a gravação "Ordor Dracul" na parte de cima de um círculo e "Nox Arcana" na parte de baixo.

Há uma espada montante disposta de maneira vertical bem no centro da peça e de ambos os lados as figuras de dragões idênticos, frente a frente, cada um com uma das patas erguida, como se fosse tocar a lâmina do centro.

As palavras de cima cobrem o cabo da espada e um escudo com o emblema "D", que está posicionado um pouco abaixo da parte central da lâmina.

Apesar de o medalhão ser feito em ouro branco, sua cor é vermelha e apenas a gravação deixa ver o tom original do metal.

— Meu pai antes de morrer acometido por uma peste febril, deu o colar à minha finada tia e pediu que ela o colocasse em meu pescoço.

— Meus sentimentos quanto à morte de sua familiar. O luto que vi em uma janela é o vosso?

— Sim, minha tia Ana, morreu na floresta há dez dias, quando foi buscar lenha para alimentar o fogo da lareira.

— Como te chamas?

— Lira, meu senhor.

— Qual o sobrenome carregas de sua família?

— Merak. — Lira pensa que está delirando, porque os olhos de Lyon parecem ter ficado mais rubros.

— Qual o nome do seu avô?

— Barakj Merak.

— Forasteiro, não crês que estás conversando em demasia com minha garota? — Lyon desvia o olhar de Lira e o pousa no grandalhão careca que se aproxima.

— Desculpe-me, não tenho intenção de possuir mulheres ou de me colocar em rixas, estou apenas de passagem. Dispenso confusões.

O grandalhão olha para o salão da taverna, que agora está mais cheio, e grita:

— Ele não quer confusão!

Todos gargalham.

Lyon nem mesmo se move, continua em uma posição relaxada, a perna esquerda está esticada e apoiada sobre a segunda cadeira de sua mesa.

— Qual o nome de vossa senhoria? — Perguntou ao homem.

— Não vejo necessidade em revelar meu nome, já que não se lembrará dele após a lição que darei em você.

O careca recua assustado após tentar dar um passo à frente.

As pessoas no salão escutam um rosnar.

Das trevas onde Lyon descansava saiu seu cão, seu rosnar era assustador e cheio de raiva.

O animal estava pronto para atacar aquele que ameaçava seu dono.

Lyon sorri pelo cinicamente pelo canto da boca.

— Como disse, não desejo confusão... Volte e beba com teus amigos, porque eu e você temos apenas o hoje.

O homenzarrão recua, passa as costas da mão na boca onde um filete de saliva escorria e senta na cadeira de onde saiu.

Lyon acaricia o animal que ainda está de prontidão.

A moça de cabelos brancos observa tudo parada ao lado esquerdo do forasteiro.

Ele entrega a ela uma moeda de ouro e diz:

— Acho que esta moeda, paga a bebida.

A taverna continua em silêncio até o homem sair.

Lyon olha para lua, alisa e apruma as vestes antes de falar com seu amigo fiel.

— Acho que fui precipitado em comprar a carne fresca e o sangue.

O animal parece entender o que foi dito... Ele sorri com os olhos.

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