Capítulo XIX

Sozinha no escritório, Sarah aproveitou que naquela manhã só estavam ela e Lumena na casa, já que Juliette tinha saído para trabalhar bem cedo e, os filhos do casal ainda estavam na escola, para começar a pôr em prática o que Camilla havia lhe sugerido na consulta de dois dias atrás.

A economista abriu o bonito caderno que a esposa havia lhe comprado ontem, o qual possuía capa de couro e estampava o desenho em dourado de uma caneta em forma de pena, para expor ali todas suas lembranças adquiridas desde que acordou desmemoriada. Antes, porém, de começar a descrever os fatos ocorridos, Sarah fechou os olhos por segundos, respirou fundo e assim mergulhou mentalmente em uma volta no tempo de quatro meses, parando bem no exato dia em que se lembrava ser o começo de toda aquela 'jornada' de amnésia, o momento em que acordava, via a esposa e não sabia quem era ela.

Ao abrir olhos poucos instantes depois, a mulher começou a escrever com sua caligrafia bonita uma pequena introdução antes de se atirar na narrativa daquele despertar há quatro meses. A mão trabalhava ágil e rápida em detalhar cada pequena lembrança que lhe vinha em enxurrada à cabeça.

A cada parágrafo escrito, Sarah revivia mentalmente tudo o que ia sendo registrado naquelas folhas do caderno.

A economista mergulhou fundo em sua mente para buscar relatar com maior riqueza de detalhes tudo que se lembrava daquele fatídico dia. Depois vieram os dias subsequentes e toda a sua dificuldade em lidar com o que lhe aconteceu. De tão imersa em traduzir com fidelidade o que sentia, que houveram momentos em que a mulher chegou a se desligar por completo do mundo ao seu redor, perdendo assim a noção do tempo e do espaço enquanto escrevia.

Por um tempo que não soube bem precisar quanto, Sarah já havia repassado para o diário várias coisas, situações, momentos, sentimentos, fatos e conflitos que se passaram dentro dela ao longo das três primeiras semanas em que a família, a casa que mora e tudo mais não passava naquele momento de meros desconhecidos para ela.

Quando a economista resolveu fazer uma pequena pausa em sua escrita, tomou um pequeno susto, pois ao folhear o caderno viu que tinha escrito por quase trinta folhas durante o tempo em que já estava ali, o qual não fazia ideia de quanto fosse. Achou melhor parar e continuar escrevendo amanhã, já que por hoje tinha escrito o bastante. Além do mais sua cabeça já começava a doer, decerto por conta de tanto se forçar para lembrar-se das coisas repassadas para as folhas do caderno.

Sarah fechou o caderno e guardou-o na gaveta da escrivaninha. No exato momento em que se pôs de pé, a porta do escritório foi aberta de maneira abrupta e por ela a mulher viu passar seu filho menor que acabava de chegar da escola. Sorriu ao ver o menino que correu em sua direção e se agarrou as pernas da mãe.

- Ei, meu menino!

Sarah carregou o filho no colo e depois abraçou e beijou o garotinho. Ser carinhosa e amorosa com os filhos parecia agora tão natural e espontâneo. O que era muito bom para os dois pequenos que se acostumaram a desde de sempre terem uma mãe extremamente carinhosa e amorosa com eles.

- Como foi na escola?

- Foi legal!... Mamãe, eu tenho uma coisa pra você.

- Pra mim?

- É, aqui.

O menino puxou do bolso lateral de sua bermuda da escola, um papel todo dobrado e o estendeu a Sarah.

Com um olhar curioso, a mulher pegou da mão do filho o papel e pôs o garoto sentado sobre a mesa para assim, ter as duas mãos livres para abrir o que o filho lhe entregou.

- Vamos ver o que tem aqui, rapazinho!

Seu filho sorriu de um jeito tão engraçadinho que encheu o coração da economista de ternura.

- A tia me ajudou a fazer. - avisou.

- É mesmo?

- Aham.

Assim que Sarah viu o conteúdo do papel, sentiu uma emoção enorme acelerar seu coração. Foi algo tão forte quanto o que sentiu ao ouvir pela primeira vez o coração dos bebês na barriga de Juliette. E indescritível na mesma proporção.

No pedaço de folha A4 branca estava desenhado um grande coração e dentro dele, escrito com a letra toda torta e quase ilegível de Thomás, que estava aprendendo a escrever, uma coisa, ou melhor, uma frase com quatro palavras que tocaram profundamente Sarah.

"Mamãe, eu te amo!"

Ler aquilo fez os olhos da mulher ficarem marejados enquanto sentia algo ainda mais imensurável por aquele garotinho a sua frente. Até aquele momento, a mulher mesmo com a aproximação gigante que teve para com os filhos nunca havia dito a nenhum deles que os amava, mas diante daquela demonstração explícita de amor do filho foi impossível se conter. Tomando Tom novamente em seu colo, Sarah olhou nos olhos do filho e com um sorriso emocionado, retribuiu as palavras escritas naquele papel:

- A mamãe também te ama, meu menino! - a mulher abraçou o filho apertado, deitando sua cabecinha em seu ombro, para em seguida, beijar seus cabelinhos que cheiravam a morango.

Houve um breve instante de silêncio que foi quebrado pela vozinha um tanto surpresa de Thomás.

- Você me ama, mamãe?

Ainda de olhos fechados, Sarah sorriu com aquela pergunta e o tom de voz de Tom. Desfazendo momentaneamente o abraço deles, olhou outra vez bem no fundo daqueles olhos verdes, tão idênticos aos seus, e respondeu ao garoto:

- Sim. A mamãe ama muito você!

Já tinha um tempinho, que aquele sentimento forte de amor vinha habitando dentro dela. Dia após dia foi reaprendendo a amar cada membro de sua família. E agora, não tinha dúvida alguma de que amava muito os filhos e também, a esposa a quem ela ainda não conseguia expor seus sentimentos, mas esperava ser o quanto antes corajosa o suficiente para contar o que sentia.

Thomás ao ouvir a confirmação da mãe sorriu, e em sua ingenuidade de criança achou que Sarah enfim tinha recuperado a memória.

- Então já se lembrou das coisas? - havia alegria e empolgação em seu questionamento, que não passaram despercebido por Sarah.

A mulher via o rosto angelical do filho iluminado por um sorriso largo, que até pensou em mentir a resposta somente para não ver o sorriso tão lindo que Thomás estampava, sumir como tinha certeza que sumiria ao ouvir sua negativa. Mas, infelizmente, ela não podia e nem queria mentir para o menino. Então com dor no coração a mulher de olhos verdes disse a verdade ao filho.

- Não, filho. A mamãe ainda não se lembrou das coisas.

Como ela previa, o sorriso sumiu instantaneamente dos lábios de Tom e aquilo doeu em seu peito de mãe, como se houvessem lhe cravado um punhal no peito.

- Eu pensei que já tinha lembrado de mim. - murmurou o garotinho de cabeça baixa e em tom choroso.

Aquelas palavras de Thomás foram um golpe ainda mais duro no peito de Sarah. Por segundos a mulher não soube o que dizer em resposta. Era triste e frustante causar essa decepção no filho. Deus! Se dependesse somente de si já teria lembrado de cada pessoa de sua família faz tempo. Só que infelizmente não dependia apenas dela.

- Se não lembrou de nada, então como sabe que me ama? - Thomás se pronunciou novamente e olhou para Sarah fazendo um beicinho de choro.

Não chore, por favor!, Pediu em pensamentos.

Não queria ter a desagradável experiência de ver novamente seu filho chorar diante dela como ocorreu no dia em que acordou desmemoriada. Aquilo tinha sido duro demais! Igualmente, as palavras proferidas por ele na época.

A mulher afagou com delicadeza o rosto do filho e depois segurou em uma das suas mãos.

- Sabe, Tom... a mamãe não precisa mais se lembrar das coisas que esqueceu, para saber que ama você. A mamãe já sente aqui dentro do coração dela que te ama muito, meu menino.

Lentamente, ela foi vendo aquele beicinho de choro do filho ser substituído por um sorriso sapeca. Sarah ficou feliz em ver isso.

Depois de ouvir da mãe que ela lhe amava, Thomás quis saber se isso também se extendia ao resto da família.

- E a Bia?

- O que têm a sua irmã? - franziu a testa sem entender.

- Também ama a Bia?

- Ah! Sim, claro, que eu amo. - afirmou sem demora e dando um beijo no rosto de Tom, que sorriu. Sua filha mais velha já era tão amada por ela como era o garotinho em seu colo.

- E ama também os meus irmãozinhos que estão na barriga da mãe?

- Também, claro! - afirmou, dando um sorriso.

- Humm... - Thomás levou o dedinho indicador ao queixo e fez uma carinha pensativa antes de disparar sem rodeios: - E a mãe, você também ama?

Sarah sorriu dessa vez mais abertamente quando questionada a este respeito.

Como ela não amaria aquela mulher especial que tem sido com ela tão paciente, carinhosa, atenciosa e amorosa? Era humanamente impossível não se apaixonar por Juliette, tanto que ela se apaixonou.

Pela segunda vez se apaixonou pela mesma mulher!

Amava sua esposa!

Havia reaprendido a nutrir tal sentimento por ela de maneira natural e gradual. Só precisava contar a outra isto.

- Sim, Tom... a mamãe também ama muito a mãe! - tocou o rosto do garotinho que sorriu feliz diante da resposta da mãe.

❤️❤️❤️

- Mãe hoje a mamãe disse que me ama muito!

Tom contou todo alegre enquanto Juliette terminava de vesti-lo com seu pijama de lua. O garoto tinha feito questão de que naquela noite a mãe o colocasse para dormir. Mesmo cansada por conta do trabalho na universidade ao longo daquele dia, a professora veio satisfazer o pedido do filho menor. Até porque algo um pedido daqueles era algo que não negaria nunca a nenhum dos dois rebentos.

Ao ouvir a fala do filho, Juliette sorriu contente por vê a alegria estampada no rosto de Thomás diante de tal acontecimento relatado. E o sorriso dela também era por saber que Sarah, enfim, havia dito aquelas palavras lindas ao filho menor, que era tão ligado à ela.

- Que bom que ela disse isso à você, meu amor.

- E sabe o que ela disse mais?

- O quê? - sentou-se ao lado do corpinho do filho que acabava de se deitar na cama e pôs-se a afagar os cabelos do menino.

- Que ama a Bia... os meus irmãozinhos que vão nascer e... você! - enumerou nos dedos.

- À mim? - surpresa a mulher perguntou depois de alguns segundos que a última parte da fala do filho foi processada por seu cérebro.

- É... Ela disse que ama muito você, mãe! - sorriu.

Juliette até prendeu o ar por segundos diante daquela afirmativa do filho.

Sua esposa, a quem ela tinha certeza de que amaria pelo resto de seus dias, havia dito ao filho delas que a amava muito?

Será que Sarah disse aquilo só por dizer ou aquele sentimento já existia mesmo da parte dela?

A morena resolveu acreditar de coração que a segunda opção fosse à correta, mas ainda assim, tinha seus receios e desconfianças.

- Ela disse isso mesmo à você, filho?

Talvez o fato daquela amnésia ainda persistir em sua esposa, a fizesse duvidar um pouco que Sarah pudesse sentir algo por ela, sem que sua memória tivesse voltado por completo.

- Disse, mãe! - respondeu o garotinho após um bocejo e coçando os olhos.

Juliette sorriu de tal confirmação.

É verdade que de umas semanas para cá ela vinha notando sua mulher muito mais próximo à ela. Sarah estava mais cuidadosa, atencioso e até mesmo mais carinhosa com ela. Juliette lembrou-se que chegou a flagrar a esposa inúmeras vezes lhe encarando, como se quisesse lhe dizer algo, mas não dizia nada. Por várias vezes, a professora ficava supondo o que poderia ser o que a outra queria lhe dizer. E em um lampejo de esperança se via cogitando que talvez, Sarah quisesse lhe confessar que sentia algo por ela!... Que a amava assim como disse ao filho.

Ah! Se realmente fosse isso, Juliette se sentiria novamente completa como antes de todo aquele tsunami de amnésia vir e varrer sua vida colocando-a de pernas para o ar.

Se havia algo que ultimamente queria tanto quanto a recuperação de Sarah era ouvir da boca da esposa outra vez, que ela lhe amava. Céus! Como sentia falta de escutar um: "Eu te amo" vindo de Sarah, ainda mais levando em consideração que a esposa costumava se declarar frequentemente a ela com aquelas palavras.

Enquanto a mulher divagava em pensamentos, nem percebeu que o filho pegou no sono. Foi só após uns minutos que ela olhou para ele e o viu dormindo profundamente.

Aproveitou-se disso e levantou da cama, depois de ter dado um beijo na testa do filho; saiu do quarto do garotinho e resolveu dar uma passada no quarto da filha mais velha para lhe desejar "boa noite" e só então, depois disso foi para seu quarto. Ao entrar no cômodo encontrou Sarah parada bem em frente à janela, observando a noite estrelada que fazia lá fora.

Inevitavelmente ao vê-la, Juliette lembrou-se das palavras do filho e foi impossível conter a excitação de seu coração que se acelerou.

Sarah lhe amava!... Será?

Mesmo desmemoriada será que ela já sentia amor por ela?

Juliette ficou olhando para Sarah enquanto pensava. Distraiu-se com os pensamentos que nem percebeu quando a outra virou-se e passou a olhar para ela. Só foi se dar conta disto, quando Sarah se encontrava diante dela, chamando por seu nome pela terceira.

- Oi! - respondeu atordoada ao tê-la bem a sua frente, há poucos centímetros de distância dela.

- Está tudo bem com você, Ju? - Sarah segurou de leve em seu braço. Havia se preocupado com o fato da esposa se mostrar alheia e não responder seus chamados. Por um instante, Sarah achou que Juliette estivesse sentindo algo.

Os olhos castanhos se desviaram do semblante preocupado da esposa para encarar a mão dela lhe segurando. Um calor seguido de arrepio varreu seu corpo diante do toque dela em sua pela. Estava ficando cada vez humanamente difícil segurar o desejo que só fazia aumentar pela esposa a medida que a gravidez avançava.

Malditos hormônios!

Notando o olhar de Juliette para sua mão e intuindo erroneamente que a esposa não estivesse aprovando tal gesto, Sarah tratou de soltar o braço de Juliette depressa.

- Está tudo bem, sim. - respondeu, voltando a encarar a esposa e dando um sorriso para reforçar a outra que estava tudo bem consigo.

- Pensei que estivesse sentindo algo.

- Não... Eu... Eu vou tomar um banho e depois me deitar. Estou cansada, tive um dia cansativo na universidade.

Ela se afastou de Sarah rápido, pois se continuasse mais um pouco que fosse perto da esposa sua sanidade ia para o espaço e, muito provavelmente agarraria a esposa e lhe tascaria um beijo daqueles que há meses não trocavam.

Quando a mulher já estava perto da porta do banheiro, Sarah chamou-a.

- Sim! - respondeu, mantendo-se de costas para a outra.

- Gostaria de falar com você sobre uma coisa. Será que antes de dormir poderíamos conversar?

Juliette engoliu em seco. O que será que ela queria conversar? Talvez falar sobre seus sentimentos?

Será?

- Claro, Sarah. Eu tomo meu banho e assim que terminar nós conversamos. Tudo bem? - lançou por cima dos ombros um olhar a esposa.

- Sim! - concordou a outra esboçando um sorriso.

Juliette entrou no banheiro e deixou que a ducha quente levasse o cansaço que lhe consumia. Bem que também podia levar as dúvidas que rondavam sua cabeça. Mas aí era pedir demais!

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