16°| Tic Tac

E L L E

   Pelos dois dias seguintes eu tive aquele mesmo pesadelo. Eu vi Peter morrer, e morrer, e morrer, sem parar. Tudo por minha culpa. Por minhas mãos.

   Eu acordava e vomitava. Tremia, suava, tentava adaptar meus olhos na escuridão do quarto. Eu me levantava cambaleante até a torneira e molhava meu rosto. Respiração descompassada, a cabeça rodando. Tudo o que eu conseguia pensar é que talvez aquilo fosse mais do que um sonho e isso me aterrorizava.

   Eu queria senti-lo novamente. Até a lembrança do seu rosto está virando fumaça.

. . .

   Entro na sala de jantar. A mesa está mais vazia do que os outros dias e não consigo ver nada que não fosse saudável. Diana olha com nojo para um pedaço de pão com algum tipo de creme verde. Brand está comendo o mesmo pão como se fosse a coisa mais gostosa do mundo. Me sento na cadeira.

   _ Bom dia, bom dia, Pequena Assassina! - Brand diz alegre - Animada para hoje?

   _ Não. - respondo curta - Quando saíremos?

   _ Assim que terminarmos o café. - ela anuncia. Brand estica o corpo por cima da mesa e pega um pedaço do pão e o coloca no meu prato. Tem cheiro de ovo podre - Não faça cara feia, o gosto é melhor do que pensa. Além de ser supre nutritivo, e você, Floquinho de Neve, precisa de todas as suas forças se não quiser morrer.

   Com duas mordidas, coloco o pão goela abaixo. O gosto é amargo e tenho que reprimir a vontade de vomitar. Na minha frente, vejo Diana sorrateiramente jogar o pedaço dela para debaixo da mesa.

   _ Como iremos para Hellige? - pergunto, ainda sentindo o pão entalado na garganta. Bebo um gole da água.

   _ Atravessando, é claro. - ela responde - Iremos com os meus melhores guardas, um grupo considerável grande para caso encontremos alguns... Incidentes.

   _ Não sabia que era possível atravessar tão longe, ainda mais carregando alguém. - Diana comenta. Ela nem é desse mundo, mas parece conhecê-lo mais do que eu.

   _ Possível é, mas apenas para um Nobre Trevore puro. Mas mesmo que fossemos um, Hellige é protegida, de forma que só conseguiremos através do mar, no bom e antigo estilo. De navio. - Brand esclarece, colocando outro pedaço do pão horrível dentro da boca - Há um navio de Mareh nos esperando do outro lado de Ternes, ele nos levará através do Mar Sagrado e então chegaremos a Hellige. Simples.

   Ergo uma sobrancelha para Diana e ela me respondeu com um mexer de ombros. Nada com Brand é simples.

   Enquanto eu forçava mais um pedaço do pão horrível, implorava com todas as minhas forças para sobreviver.

. . .


   Tic. Tac.

   Dez guardas, no total. Entre eles está Sir.MacFarland, com sua carranca de sempre. Os melhores da Guarda Escarlate.

   _ Está na hora! - Brand festeja adentrando o cômodo. Atrás dela está Diana... E Thomas?

   _ O que ele está fazendo aqui? - questiono.

   _ Garantindo parte da nossa sobrevivência. - Brand sorri. Outro plano dela, que provavelmente resultará na morte de alguém inocente.

   _ Isso não faz parte do nosso acordo! - rosno. Rosno, de verdade.

   _ Guarde as presas, Elle. - adverte Brand, a voz cortante - Ele está aqui por conta própria. Eu honrei minha palavra e não ouse me contestar.

   Encaro Thomas, confusa. Meu coração parece afundar.

   _ Eu quero ajudar... - explica ele, dando de ombros.

   Me aproximo e o puxo para o canto.

   _ Você não faz ideia de onde está se metendo! - esbravejo - É muito perigoso pra você. Você pode morrer, Thomas...

   _ Você também. - rebateu ele.

   _ Não é a mesma coisa! Eu já estou condenada.

   _ Chega de papinho - Brand nos interrompe. Thomas aproveita a deixa e anda até estar ao lado de Diana, que aperta sua mão para oferecer conforto.

  Sabendo exatamente o que fazer, os guardas se posicionam. Dois andam em minha direção e um deles carrega uma corrente de ferro grande e a prende em meus pulsos, o peso quase me leva de cara no chão.

   _ Eu prometi cooperar - relembro a Brand - Isso aqui não é necessário.

   Ela estala a língua e da de ombros.

   _ Vamos chamar isso de medidas preventivas. - sorri, revelando seus caninos afiados.

   Diferente dos outros dias, Brand está vestida para matar. Seu vestido negro se estende até o tornozelo, feito de um tecido leve e com uma abertura nos dois lados do corpo, chegando até o meio da coxa. Em seu tronco está um corpete de ferro branco que reflete a luz vermelha de Ternes, há imagens de monstros gravados no material. Sua única arma é uma espécie de luva em sua mão esquerda, com garras longas e afiadas.

   _ Vamos acabar logo com isso... - peço.

   O sorriso de Brand se alargou. Os dois guardas seguram em meus braços.

   _ Seu desejo é uma ordem, Princesa.

   E então mergulho na escuridão vermelha.

. . .

   Eu odeio atravessar. É escuro, da náuseas e o cheiro é terrível, mas valeu a pena.

   Estamos do lado de fora, finalmente.

   Eu não lembrava de quão lindo era o céu de uma tarde ensolarada. Ou do cheiro da brisa do mar. Da sensação de me sentir livre, mesmo estando presa das mais diversas formas.

   _ Argh, quanta luz. - Brand reclama.

   Há um navio mais ao longe. Seis botes estão ancorados na rocha de Ternes. Ergo meus olhos para trás, admirada que todo um reino possa sobreviver dentro do que parece um enorme vulcão.  De dois em dois, os guardas entram nos botes, de maneira em que Brand, Diana e Thomas ficam em um e eu e os outros dois guardas ficamos em outro.

. . .

   O mar me dá náuseas.

   Há cerca de duas horas que estamos navegando na direção de Hellige. Não há sinal de terra além da linha branca e tortuosa no horizonte. O céu continua claro, o sol rachando sobre nossas cabeças e o mar - estranhamente calmo - verde... Como os olhos de Peter.

   Thomas se aproxima e senta-se ao meu lado. Ele está com um caderno na mão e o inclina para mim, me dando visão de seu desenho. É nós dois na piscina, na noite do baile.

   _ Isso está lindo, Tommy. - elogio. Os traços dele são delicados e detalhados, retratando o que parece ser um conto distante, momentos da vida de outra pessoa.

   Seus olhos me analisam. Os doces e castanhos olhos, que apesar de todos os acontecimentos recentes, continuam contendo toda a bondade do mundo. Os olhos dele me trazem esperança de um destino que não escaparei.

   Talvez em outra realidade fossemos dois adolescentes vivendo suas vidas, se amando. Talvez eu, ele e Diana fossemos os melhores amigos um dos outros, confidentes. Ou talvez eu e Nanda estaríamos desesperadas escolhendo nossas faculdades. Provavelmente ela iria para NYU e eu para a Brown. Talvez se Peter nunca tivesse se esbarrado comigo naquele corredor ou eu nunca tivesse ido atrás de uma estúpida borboleta, eu não estaria agora em um navio que ruma à minha morte. Talvez, só talvez...

   _ Uma moeda por seus pensamentos? - Thomas bate com o indicador na minha testa.

   _ Só me perguntando onde Diana está- minto - Não a vi desde que entramos no navio.

   _ Ah, ela está descansando. - responde ele, virando a página do caderno e começando um novo desenho. Me pergunto onde ele arranjou aquilo - Ela está com dores de cabeça muito forte, o humor dela... Humpf! - bufa ele, balançando a cabeça e me fazendo rir.

   Meus olhos caem para a proa do navio, Sir.MacFarland está sentado junto com outros guardas. Apesar de ainda estar acorrentada, Brand não ordenou que ficassem de olho em mim (pra onde eu iria, afinal?). Ele me encara e eu não consigo identificar se está irritado, entediado ou com pena. Volto a atenção pro desenho de Thomas. Sir.MacFarland - ou qualquer que seja seu nome de verdade - é um traidor da Corte Escarlate e, independente do seu papel nessa história toda, eu não serei responsável pela morte dele também.

   "Mantenha distância", repito para mim mesma.

   _ Sabe - Thomas começa. O grafite rabiscando as pétalas de uma flor - Eu sinto muito pela minha reação aquele dia na enfermaria. Eu apenas...

   _ Estava com medo - completo. Ele balança a cabeça, confirmando - Eu entendo, Tommy, de verdade.

   _ Eu sei que você não fez de propósito, que não tem controle sobre isso - continua ele - Mas quando eu lembro do seu rosto... - ele estremece - Aquela não era você, Elle.

   _ O que quer dizer?

   _ Parecia que você queria aquilo. Você não sentia remorso, ou raiva, ou nada. Era como se eu estivesse olhando para um grande vazio.

   Um grande vazio... Por algum motivo, essas palavras ecoaram na minha mente até que o sol começasse a se esconder.

   Um grande vazio.

Olá, Flocos de Neve!

Sim, estou viva e, como prova, trouxe mais um capítulo para vocês (após muuuuuito tempo, eu sei e me desculpe por isso 😬)

Votem, comentem e me digam o que estão achando.

Você é incrível!

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