Luísa - Parte 6

Seu caminho para a recuperação não era tão simples quanto ela imaginava, mas árduo. No começou achava que sairia andando depois de alguns exercícios, mas era difícil manter firmeza nos pés. Devis lhe disse que havia perdido a memória muscular, que seu cérebro estava apenas "pensando" usar a força para se manter de pé. Seu cérebro estava enganado por muita coisa.

Com isso, a sua maior preocupação era se ela iria andar novamente, ou quanto incomodaria as pessoas pela dependência.

Havia momentos bons e momentos muito ruins de irritabilidade. Às vezes, Luísa se preocupava, chorava escondido, não queria que ninguém percebesse o quanto estava sofrendo.

Uma vez ou outra ela lembrava do que Pâmela lhe contou e tinha pesadelos, mas nunca mais tocou no assunto. Seu corpo não estava colaborando, no fim acabava esquecendo e lembrando, esquecendo e lembrando.

Com o tempo, ela compreendeu que sua recuperação ia ser lenta e que teria que reconstruir uma nova vida adaptando suas condições àquele mundo.

Devis tinha uma paciência enorme para cuidar dela, embora algumas vezes dizia que Luísa era teimosa, irritadinha e merecia levar algumas palmadas. Quem sabe fosse verdade, quando ele falava daquele jeito, teimosamente a moça cobiçava provar que podia se recuperar. E também Devis era severo, principalmente em lidar com as sequelas proeminentes. Faltava concentração, sem contar com a oscilação de humor. Mas, pelo menos, em vinte dias, ela já podia ficar de pé.

Neste ponto, Pâmela avançou o tratamento, iniciando exercícios fonéticos que exploravam sua capacidade de fala. Os exercícios eram bobos, daquele do jardim de infância, para que Luísa se acostumasse com o som das palavras. Como Devis conseguia recarregar a bateria de seu aparelho auditivo, ela teve a oportunidade em prosseguir, ouvindo muito bem.

Contudo, perdeu completamente o interesse com métodos tão infantis. Pâmela teve de avançar para exercícios de fala mais difícil, como recitar poemas e cantar. Esse apoio, a fez recordar como falar corretamente, embora uma tarefa difícil.

Também a ajudavam manter o raciocínio lógico. Devis criou um tabuleiro de damas feito na terra, onde usavam cascalhos como peças. Algumas vezes, ele a fazia pensar em modos de proteger o acampamento, criando os dois planos de contenção e armadilhas para ataques de animais ou o que quer tivesse dentro daquela floresta. Isso, certamente, a ajudava no entendimento, assim como exercitava seus miolos.

De certo modo, Luísa tornou-se uma atração. Todos estavam a incentivando. Quando Devis a ajudava a caminhar, algumas pessoas passavam e ofereciam força. Ela ouvia alguns aplausos quando voltou a andar sozinha — bem, com ajuda de um apoio. Todo mundo queria o seu bem.

— Não vejo a hora de poder correr — ela disse depois de tropeçar, caindo nos braços de Devis.

— Tudo a seu tempo — Devis respondeu. — Tenho certeza que logo vai correr feito uma lebre.

— Uma... — ela travou a língua entre os dentes. — Uma lebre?

— Como a historinha da tartaruga e a lebre, lembra?

Tendo em vista seus problemas com a memória, demorou para recordar.

— Uma... Lebre...?

Fez-se silêncio por um instante, seguido de um enorme sorriso de Devis. Luísa notou que ele sempre sorria daquela forma quando ela estava repetindo uma pergunta que já tinha feito meio segundo atrás. Isso acontecia sempre nos dias ruins.

— Sim, uma lebre — Devis assentiu, ajudando a andar.

Luísa segurou-se com firmeza em seus pulsos, sentindo a sola de seu pé arrastar no piso liso do asfalto que ainda estava intacto. Devis sempre escolhia aquela superfície por não conter obstáculos. Agora ela podia caminhar sozinha, pelo menos aquilo a alegrava e motivava.

Naquele instante, quando sorria para Devis, ouviram passos se aproximar. Era Samuel e um homem negro de cabelos crespos que usava um bigode ralo debaixo de seu nariz espalhado.

— Ei, como estão indo? — perguntou Samuel. Luísa olhou para a mão fechada dele, repousando no cabo de alguma arma que sobressaía em seu cinto. Sorria, exibindo dentes extremamente brancos no meio de sua barba.

Devis tocou seu cotovelo para apoiá-la antes de responder:

— Fazendo muito progresso — colocou a língua para fora, como se fosse ele se esforçando. — Considerando que não estamos em nenhuma clínica especializada... Deveria ter escolhido a faculdade de Fisioterapia, sou muito bom nisso.

Luísa riu daquela observação.

— E que faculdade cursou? — ela perguntou, curiosamente. Achou que o fato de que agora ela podia falar, mesmo que parecesse que tinha um ovo debaixo da língua, chamou a atenção de Samuel.

— Fiz Administração — Devis empinou o nariz. — Sabe como é, dizem que quem não sabe o que quer da vida faz ADM.

— Creio que sua paciente está colaborando — Samuel se aproximou um pouco mais. O homem atrás dele estava examinando Luísa com indiscrição. — Ela é persistente em todos os sentidos.

— Balela! — o rapaz riu. — Luísa é preguiçosa, prefere ficar na enfermaria lendo o abecedário com Pâmela do que caminhar comigo.

Samuel não pareceu achar o humor para sentir compaixão sobre aquilo, ele franziu a testa observando os, agora, firmes passos de Luísa sobre o chão.

— Sei... — disse, desdenhoso. — Hm. Estamos montando um grupo de caça, mas ninguém quer entrar na mata sem você, Devis, que é muito bom em se movimentar na floresta.

— Oh — Devis olhou para Samuel, segurando as mãos de Luísa, enquanto ele andava para trás guiando-a. — Não sabe focar em uma coisa de cada vez, não é?

— Sou um articulador, há muita coisa a se fazer — e Samuel parecia muito orgulho daquilo.

— Não discordo — Luísa notou o rosto de Devis, que tinha um sorriso falso. — Porém, vou ficar ocupado por um tempo, não me sobrecarregue. Luísa ainda precisa de mim.

— Há muitas outras pessoas que precisam de você, também. — Com aquilo, o outro olhou a menina com desprezo. — Luísa não pode ser tão egoísta.

Fez-se uma pausa dramática. A antipatia que Luísa sentia por Samuel, comichou por todo seu corpo.

— Você deve ir, Devis — disse a moça. — Posso fazer os exercícios sozinha.

Uma mecha de cabelos negros soltou-se e caiu em sua testa. Olhou para ela, sério.

— Até parece, já a conheço muito bem! Vai me enrolar e vai ficar de bobeira na enfermaria.

— Devis — disse Samuel para ele. — Conto com sua ajuda para que não percamos o controle disso tudo.

— Não preciso me preocupar quanto a isso — o outro deu um pequeno estalo com a língua. — Tem o controle do acampamento em uma coleira curta.

— Se há algo imprevisível, Devis, é o comportamento humano. — Samuel passou a mão na nuca. — E isso fica ainda mais imprevisível quando ninguém está preparado para o desconforto. Nathan era um idiota, mas sabia disso. Olhe a sua volta: quando começarem a apertar a fome, essa paz fragilmente conquistada, vai se tornar uma guerra.

Ele apontou para o extenso acampamento ao redor deles. Devis correu os olhos por aqui e ali antes de chegar a uma conclusão.

— Está bem com isso? — perguntou ele a Luísa, jogando para trás as mechas de seu cabelo encaracolado que esvoaçavam sobre seus olhos. — A partir de hoje, só faço o que você quiser.

Luísa sacudiu a cabeça. Ela não confiava em ninguém além de Devis, mas ele não precisava colocar toda sua concentração nela.

— Com muita relutância, eu vou — Devis olhou para suas pernas. — Apenas vou te levar de volta a enfermaria.

Mas ela declinou a oferta, colocando uma mão em seu peito.

— Tudo bem — Luísa disse. — Deixa que faço isso sozinha. Pode ir.

Devis fez uma expressão estranha quando ela falou aquilo. A contragosto, o rapaz sacudiu a cabeça.

— Ok. Mas não vou arredar o pé até te ver na enfermaria, em segurança!

Ele cruzou os braços e afastou-se um passo, observando-a calmamente. Luísa concordou, apoiando-se nele para virar em direção ao trem que agora parecia estar a quilômetros de distância diante sua situação. Porém, não iria dar o braço a torcer, afinal estava começando a se cansar daquela dependência.

Não queria ser um peso morto e novamente ser deixada para trás para morrer. Reconquistar a sua independência era seu projeto particular.

Luísa caminhou lentamente, um passo de cada vez, com dificuldade, sem olhar para Devis. Sentia seus olhos espetarem atrás de sua nuca como agulhas, como se ele quisesse que ela falhasse somente para gritar por sua ajuda.

Devis tinha um zelo imenso por ela. Demasiado, excessivo; chegava a perturbá-la.

— Ah, pelo amor de Deus, vamos logo, Devis! Não temos o dia todo — Luísa escutou a voz impaciente de Samuel.

— Hei! Luísa ainda não...

— Ela vai levar o dia todo para andar meio centímetro, nós, no entanto, não temos o dia todo. Precisamos voltar antes do sol se pôr.

Quando a moça espiou para trás, Samuel estava agarrando a camisa de Devis, arrastando-o em direção a outros rapazes que formavam um círculo na outra extremidade do acampamento. Devis olhava para ela, como se estivesse indo para guerra e nunca mais fosse voltar. Luísa esticou a mão, e assentiu para dar coragem a ele.

Algum tempo depois, quando Devis já havia partido para a floresta, ela retornou a fazer o seu esforço particular para regressar à enfermaria. Ninguém se oferecia para ajudar — bem, ela não ia aceitar auxílio de ninguém de qualquer jeito. Parava muitas vezes, retomando ar.

Algumas pessoas passavam por ela, olhando-a com curiosidade, segundos depois procuravam por Devis. Era estranho vê-la sozinha — como um pé de meia calçado solitário nos pés. Devis e Luísa quase não eram vistos separados.

— CUIDADO!

De repente, ouviu um grito.

Luísa se virou em um reflexo lento, sem se assustar, e quando viu uma coisa estranha vindo em sua direção, seu coração pulou dentro de seu peito.

— Luísa! — escutou centenas de vozes à sua volta.

— Sai daí!

Mas ela não conseguia se mexer, não possuía mais os reflexos de uma pessoa normal. Ela só se deu conta de que uma espécie de máquina vinha na sua direção meio segundo depois.


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Nota do Capítulo

Luísa com suas dificuldades, aprendemos que ela esquece muita coisa, e portanto desconectar promessas dos capítulos anteriores, e nenhuma menção sobre seu passado. Ela simplesmente esquece, enquanto se recupera.

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