Capítulo 19
Luísa havia passado a noite com a mãe e a irmã, dormindo em uma pequena barraca de heras e galhos que Pâmela revelou ser uma construção de Henrique e seus primos. As três dormiram aquecidas uma na outra, embora Clarissa tinha um sono inquieto e Luísa acordou com a perna dela em cima de sua barriga.
Devido ao cansaço e da natureza grave dos acontecimentos passados, Luísa permaneceu deitada ao acordar de manhã. Teve um pesadelo horrível com Íbex, o neandertal, embora não lembrasse porquê ele tinha a cara de Samuel em seu corpo.
Assim que a sensação ruim do sono se foi, reduziu a respiração, relaxara os músculos dos braços e do peito, costas, nádegas, pernas. Em seguida, se sentou, empurrando a perna de Clarissa para o lado. A sua irmã resmungou, fazendo pequenos ruídos em seu sono. Luísa riu, observando-a com uma deliciosa sensação de estar completa.
Era dito que a conexão entre irmãos gêmeos, era tão especial que nem os próprios conseguiam explicar. Luísa sempre se sentiu incompleta quando perdeu Clarissa, como se um pedaço de sua alma tivesse sido tirada dela.
Observando a irmã dormir, tomou uma decisão: iria protegê-la e nunca mais perdê-la. Se suas teorias estivessem certas, uma das duas não deveria estar lá, e certamente, era melhor que fosse ela.
Decidida a recuperação completa, Luísa se levantou com intenções de treinar uma caminhada. Suas pernas ainda estavam duras, e não conseguia pensar muito rápido, no entanto, poderia começar a mudar aquela situação. Uma caminhada em volta ao acampamento era um começo, acreditou.
Deixou Pâmela e Clarissa dormindo, despreguiçando ao sair lá fora. Chovia; uma chuva leve, mas o ar estava frio e úmido o suficiente para qualquer exercício que estivesse pensando. Estremeceu com a ideia de voltar para cama, aconchegada no calor de sua mãe e irmã. Mas não podia voltar atrás, nem perder para sua preguiça patológica.
Ainda estava muito cedo, Devis já deveria estar de pé. Pensando em convidá-lo para o exercício matutino, Luísa saiu em busca dele, com um pouco de preocupação. Noite passada, ele não ousou se aproximar da família dela: ninguém ousou.
Andando com a perna esquerda endurecida, Luísa suspirou o ar frio, com medo de que Devis achasse que ela não dava importância para o novo salto que aconteceu entre eles. Ela apenas não teve... tempo para pensar naquilo — muitas coisas sucederam ao mesmo tempo.
Para variar, outros caos aconteceriam, até que o paradoxo do destino conseguisse destruir o que não era para ter acontecido. A primeira coisa que começou a lhe preocupar era o frio, pois não parecia que pessoas que moravam no Brasil já passaram por uma temperatura tão baixa, e estava muito frio.
Fungando, mancou ouvindo alguns pássaros trinar debilmente a distância, sons bastantes macabros e piores que os ecos no fundo da caverna dos neandertais.
As pessoas entocadas em suas barracas feitas de detritos da floresta, ainda descansavam, mas ela podia perceber pequenos movimentos ao redor, quase inaudíveis. Ouviu alguém reclamando que estava muito frio.
— Brrrr! — um rapaz passou por ela, alisando os próprios braços. — Com esse frio, a gente vai ter que se trancar no trem e tentar ligar o ar-condicionado!
Passando por dois rapazes, um deles era o Pombo, o outro Luísa pensou que conhecia de algum lugar, mas não sabia de onde.
— Auto aí! — exclamou o desconhecido, assustando-se quando ela distanciava. Agarrou o pulso dela, com as pontas dos dedos frias.
— Hei! — reclamou a moça, espantada. — Cuidado!
O homem fez uma careta, dando-se conta de quem era. A fraca luz da manhã iluminou seu rosto barbudo e redondo. Mesmo que sua memória estivesse terrível agora, Luísa o reconheceu do jogo de tacobol, como eles chamavam. Algumas vezes o viu conversar com Henrique, e ouviu sussurros de Ayla dizer que era Léo, ou coisa parecida.
— Me desculpe — ele soltou a mão dela. — Me assustei, porque estou com sono. E ser guarda do toque de recolher me deixa tenso.
— Tudo bem — a moça se afastou um passo. — Devis também fez a guarda essa noite, Léo?
O homem entreabriu-se, em seguida deixou uma risadinha fluir.
— Meu nome é Téo — corrigiu com divertimento.
Luísa não pediu desculpa pelo erro, apenas percebeu que não gostava daquele sujeito.
— Devis estava de observação — quem respondeu foi o Pombo, bocejando —, então foi dormir. Ele levou uma porrada na cabeça, lembra? — apontou para própria cabeça.
— Ah, ele teria entrado na floresta tipo o Rambo para te salvar Luísa — Téo riu. — Mas você e sua irmã são como gatas. Te sobraram quantas vidas agora?
Se ela não estivesse um pouco nervosa, a garota teria rido. No entanto, ele não notou a expressão dela, e manteve um sorriso maroto no rosto.
— Por falar no Devis... — Téo continuou. — Ele parecia de coração partido. Estava falando que está com medão de você esquecer ele, agora que sua irmã voltou.
Os músculos no pescoço dela enrijeceram, e ela esfregou a mão na região. Como poderia esquecer Devis, principalmente depois daquele beijo? Muitas coisas aconteceram, e sua mente estava lenta demais para processar tudo de uma vez.
— Mas e aí? — A voz de Téo parecia como uma rede caçando borboletas, impedindo-a que se afastasse daquela conversa. — Ouvi de Devis que sempre acorda tarde, por que está de pé tão cedo?
— Não conseguia dormir — respondeu sem cerimônias.
— Certo, mas está muito pálida. Tem certeza que está tudo bem?
Luísa enrijeceu o corpo, e imediatamente disparou o olhar para o rosto curioso de Téo, depois virou-se para Pombo, que parecia morto de cansaço e sono.
— Estou bem — respondeu, embora ela quisesse dizer que não era da conta dele.
— Tem certeza? — insistiu o homem.
— Sim.
— Deve tirar o sono de alguém, depois de toda aquela história de assumir outra identidade, e no fim sua irmã estar mesmo viva — Téo riu, e Pombo franziu a testa em direção a ele. — Estava meio curioso de onde você veio, claro. E pior, por que apareceu do nada se nunca vimos a cópia da Clarissa e tentou se matar?
Seus olhares se encontraram com aquelas perguntas impertinentes. Um músculo se contraiu no maxilar de Luísa.
Sem obrigações de responder a um homem que mal conhecia, a moça voltou a marchar, mas parou.
— Bem. — Luísa virou-se para olhar para ele por cima do ombro. — A verdade é que eu não tentei suicídio. Só não sei o que aconteceu, não me lembro.
Téo finalmente se calou. Ele entreabriu-se, e quase sorriu. Pombo, no entanto, franziu o cenho.
— E se alguém tentou te matar...? — ele especulou, com a mão no queixo. — Clarissa estava perguntando isso ontem, enquanto você dormia. E se foi isso mesmo?
Ela sentiu um calafrio e ficou pálida. Não tinha pensado na possibilidade; na verdade, percebeu como as coisas seriam diferentes depois do retorno de Clarissa. As pessoas começariam a acreditar nela?
— Bem, Samuel disse que ela estava debaixo da Árvore do Enforcado, com uma corda em volta do pescoço, que arrebentou, então bateu a cabeça em uma pedra — Téo explicou. — Acho uma resposta bem razoável.
— Existem uma coisa chamada armação — Pombo olhou de viés para Téo. — Se isso aconteceu quando Nathan ainda estava aqui, alguém pode ter tentado ocultar um crime. Nathan condenava à morte quem cometesse crime hediondo. E ocultar um crime dessa maneira: foi uma coisa genial a se ter feito.
E com Luísa parecendo uma louca depois do trauma na cabeça, certamente ninguém desconfiaria. A menos que ela lembrasse.
Com aquela possibilidade da lembrança, a garota sentiu-se atônita, com um brilho de medo propagando-se pelo corpo como maré que sobe. Suas pernas começaram a formigar, e ela sentiu que devia fugir do confrontamento daquelas memórias.
— Conversem suas especulações com a Clari — Luísa fugiu, sentindo-se fria. — Vou voltar a minha cam...
Virando-se, esbarrou com força em uma muralha de músculos e ossos. Quase caiu para trás com o desequilíbrio, porém um braço forte a segurou pela cintura. Era Devis.
Tinha as sobrancelhas erguidas, um rosto limpo e um olhar negro que parecia sugar a alma de Luísa.
Desorientada e sentindo-se estranhamente pesada, ela olhou para seu rosto lembrando-se de seus lábios tocando os dela. E, de repente, seu corpo todo, seu coração, seus pulmões, seu sangue rugiam ao aperto da mão dele atrás de sua cintura.
— O que estava dizendo? — ele perguntou, ouvindo o que ela falava.
Luísa não conseguia mexer a boca em resposta, não conseguia sequer piscar. Ela sentiu que o rosto começou estranhamente a afoguear nas regiões de suas bochechas.
— De-de-de... — as palavras não saíram. — Dededevis...
— Por que está gaguejando meu nome? — riu o rapaz, uma covinha cavando ao lado de sua bochecha. — Sei que sou de tirar o fôlego, mas não sabia sobre fazer as mulheres gaguejarem. Devo me sentir lisonjeado?
Téo e Pombo atrás de Luísa retorceram os olhos.
— Queria te cha... — Luísa baixou a cabeça. Desejava que Devis a pegasse nos braços, que a beijasse ardentemente. E aquilo era tão real que também queria morrer de vergonha no processo. — Pare de me olhar!
Devis ficou confuso. Suas pestanas negras piscaram algumas vezes. Aquela nem era a reação que pensou que teria ao vê-lo, depois do beijo.
— Não sei qual o problema em te olhar, mas ia te acordar — Devis se afastou dela, puxando do bolso traseiro a escova de dentes cor de rosa dela, que ele guardou. — Achei que queria tomar café da manhã comigo, depois de lavar o rosto.
Luísa o olhou, tentando não corar ou manter a imaginação sem-vergonha na mente.
De repente, começando a sorrir para ele, Luísa viu uma sombra passar rápido pelo lado. A mão de Clarissa puxou a escova de dentes da mão de Devis, e um dos braços cobriu os ombros da irmã.
— Deixa que eu cuido dela agora! — Clarissa, que tinha o rosto todo amassado de seu sono, encarou Devis.
— Oh — o rapaz ficou surpreso. — Só estava...
— Não me importa! — Clarissa o interrompeu. — Agora é assunto particular da minha família.
— Clari! — Luísa tentou se afastar.
— Ele é amigo do babaca do Samuel — Clarissa tentou se explicar. — E estava com ele quando você foi encontrada debaixo da Árvore do Enforcado.
— Devis nada a ver com isso — Luísa empurrou a irmã de leve. — Acabou de acordar virada das ideias?
Clarissa a encarou. Seus olhos azuis como o de Luísa brilhavam na luz nascente da manhã.
— É um suspeito — apontou, irritada. — Ninguém vai se aproximar de você, Lu, até que eu descubra o que aconteceu. Alguém tentou te matar, tenho certeza disso.
Luísa entreabriu a boca, chocada de que aquela especulação vinha mesmo dela. Ergueu o rosto em direção a Devis, que parecia também um pouco pasmado. Antes de Clari, ninguém pareceu ter pensado na possibilidade.
— Minha mãe disse que o ferimento na sua cabeça pode ter vindo de uma queda, e que a altura e direção também podem ser de um golpe — Clarissa explicou, com raiva no coração. — Eu acredito nela agora que estou aqui. Não faz sentido você ter tentado se matar, irmã. Vou encontrar quem te machucou e fazer ele pagar por isso. Vou enforcá-lo até a morte.
Respirando profundamente, Luísa passou a mão na testa, sentindo-se envergonhada com a impetuosidade de Clarissa. Embora estivesse feliz por ela estar viva, Clari sempre foi protetora e exagerada.
— Perdoe, Devis — ela comeu palavras. — Doida.
Devis estava pálido, mas sorriu.
— Quem se importa!? — Clarissa a puxou pela roupa. — Vou te ajudar a andar direito, e te ensinar a lutar. Isso depois de nós duas lavar o rosto!
Fez uma expressão dura e terrível, virando em direção a Pombo, Devis e Téo.
— Digam por aí que Luísa sofreu tentativa de assassinato, e que meu suspeito número um é o Samuel, que me odiava e deve ter confundido nossa aparência — ela ordenou. — Qualquer um que estiver no círculo dele é suspeito. E vou descobrir quem fez isso. Digam para começarem a ter medo!
— Clarissa! — Luísa reclamou.
Segurando o pulso dela, Clari a arrastou para longe de Devis, que ficou para trás, observando-a distanciar sem reagir. Luísa também estava um pouco pasmada para pensar em reações.
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