25. Desejo Condenador - O Destino dos Filhos de Lume - Parte 1
A zona de guerra havia sido instaurada. Aparentemente, nós estamos no controle da situação, o que é bom... Não é...?
Pergunto isso, porque até agora nenhum filho de lume recebeu ordens para que parasse a rebelião. Todos estão se rebelando à vontade, o que é bom, porém está parecendo bom demais para ser verdade.
Bom, dane-se. Quero que eles destruam tudo. Opa, acabo de ver uma porta sendo derrubada, é isso aí!
— Eva... — fala Raul com dificuldade. — Eu estou conseguindo respirar... Sangue na minha boca... Tudo embaçado...
— Aguenta, Raul — digo, preocupada que eu talvez tenha ido longe demais. — Me leva até a base, onde seus pais e a estátua de Mavetorã estão, rápido!
Ele assente.
— Por ali — diz ele, apontando para a porta à direita.
Arrasto-o, o mais depressa que consigo, rumo ao local indicado, atenta ao meu entorno, para que ninguém me surpreenda por trás e arranque o diadema mágico da minha cabeça. Não posso deixar que nada aconteça com o meu bem mais precioso atualmente.
— Eva! — grita Armando, vindo em minha direção. — Precisa de ajuda... com ele? Não está parecendo muito leve.
Dilema.
Se eu disser sim, o percurso vai ser mais rápido, pois Armando possui um porte físico robusto o suficiente para carregá-lo até a base. Porém, eu posso acabar levando meu amigo para uma enrascada. E não quero isso... Se alguém vai caminhar até o perigo, esse alguém sou eu!
— Não, tudo certo por aqui! — assinto, tentando transparecer confiança.
Ele não questiona. Apenas me envia um olhar reconfortante.
— Quero que você fique aqui e ajude os outros a manterem a rebelião viva. Não podemos enfraquecer o movimento, não agora que finalmente conseguimos agitar as coisas por aqui.
— Pode deixar! — diz. — Não vou te decepcionar.
Sigo corredor adentro, com Raul apoiado a meu ombro, o cheiro de sangue próximo ao meu nariz está me dando agonia, mas tento ignorar a irritação, afinal, fui eu que o esfaqueei, né.
— Me atualiza do mundo real — tagarelo aleatoriamente, na tentativa de fazer Raul permanecer acordado. Ele não pode desmaiar. — Vocês estão aqui há quanto tempo?
— Algumas... semanas... Não tenho certeza...
— Sem voltar para casa? Por quê? — pergunto, espantada.
— Marco... E-ele fez a denúncia — revela. — A mídia... ela está detonando a empresa...
Um sorriso largo faz morada em meu rosto quase que de imediato. Enfim boas notícias!
— Muito obrigada, Marco — agradeço em voz alta, aliviada de meus esforços terem valido a pena e, pela primeira vez, ter estado um passo à frente dos Cadente.
Ele solta uma risada fraca que me preocupa.
Paro um momento para dar uma olhada em seu ferimento e, para a minha surpresa, está cicatrizando! Então essa é uma das habilidades do sangue mágico dos filhos de lume!?
— Raul, fala comigo — peço. — Estamos perto?
Ele balança a cabeça em negação.
Merda!
— Por favor, aguenta.
E, de repente, tomo um susto quando um alarme muito alto soa.
Alarmes nunca são algo positivo. Em filmes, esse é o sinal de que os protagonistas precisam correr, e como a protagonista nesse caso sou eu, então isso significa que eu preciso correr.
Mas como correr carregando Raul, que é quase o dobro do meu tamanho? É claro que, se o pegarem, não vão fazê-lo mal. Diferente do que eles vão fazer se me capturarem.
Contudo, não posso abandoná-lo. Não nesse estado. Levanto Raul novamente, com o apoio dele, é claro, e o arrasto caminho à frente. Seguimos assim pelos primeiros dez minutos, até que sinto uma fisgada em meu ombro, que embaça a minha visão e me faz cair.
O mais doido — e preocupante — é que, ao cair, Raul é a minha principal preocupação. Temo que a cabeça dele bata no chão, por isso me certifico de que ele ainda está lúcido após a queda — e após perder uma quantidade grande de sangue.
Enquanto dou tapinhas em seu rosto na tentativa de mantê-lo lúcido, ouço passos vindo em nossa direção, mas meus sentidos estão conturbados demais para pensar direito. Provavelmente me deram um tiro de dardo tranquilizante.
Perco forças. Continuo a ouvir passos. Vejo botas pretas parando em frente a mim. Desmaio.
***
Acordo, sonolenta, em uma sala mal iluminada. Meus sentidos estão melhores, o que é bom, significa que a substância presente no dardo tranquilizante não era vagabunda. À minha frente, há uma cúpula circular excêntrica, que chama a minha atenção não só pelo formato, mas também pelo item guardado dentro: a estátua de diamante.
Levanto-me apressada para ir até o item, mas sou travada por uma única palavra.
— Não — diz uma voz distorcida. A mesma voz que me dava ordens quando eu estava na jaula branca. — Você vai ficar sentadinha aí.
E então eu obedeço, não tenho muita escolha. Só então percebo que meu diadema não está mais em minha cabeça. Seja lá quem me nocauteou, também pegou meu objeto mágico.
— Quem é você? — pergunto, assustada. — Cadê o Raul?
Das sombras, uma figura vestida com uma capa preta irrompe. O rosto está coberto, mas sei que está me encarando. Sei que, seja lá quem for, está lendo a minha alma nesse momento.
— Pelo amor de Deus, quem é você? — repito, impaciente.
Ela pode controlar minhas ações, mas não meus pensamentos.
Com a mão esquerda, a figura encapuzada me mostra o diadema, e com a outra, ela retira lentamente o capuz que cobre seu rosto, me revelando alguém que nem em meus mais obscuros pesadelos eu poderia imaginar.
— Surpresa! — diz Anna, sentindo um enorme prazer. — Aposto que não esperava me encontrar aqui.
Não tenho reação. Juro. Estou travada.
— Ai, qual é, eu me revelo sua nêmesis e é assim que você reage? — reclama ela. — Se você continuar assim, vou ter de usar seu diadema para extrair reações melhores.
— Que brincadeira é essa?
— Ninguém está brincando aqui — rebate Anna, séria. — O que estamos fazendo é pondo em prática um plano muitíssimo bem elaborado.
Minha mente deve ter sofrido um daqueles choques traumáticos que impedem o desenvolvimento do raciocínio, pois desde que ela tirou o capuz preto que eu não estou entendendo nada.
— Não acredito que vou ter de fazer o típico monólogo do vilão — resmunga ela. — Não que eu não queira me vangloriar pelo meu cérebro genial, mas, caramba, você é burrinha, hein!
— Eu pensei que você estava em Gérbera, lidando com os problemas da ONG e cuidando da nossa gata de estimação.
— Não, isso era o que eu estava contando para te manter ocupada — continua. — Enquanto eu e os Cadente, ah, e também a sua tia, colocávamos o nosso grande plano em ação.
Continuo chocada.
— Precisávamos manter você ocupada, mas também fisgada, enquanto matávamos baleias e sequestrávamos filhos de lume mundo afora, sabe como é, né.
Sei como é? É claro que eu não sei como é, sua cachorra!
— E precisam de mim para exatamente o quê?
— Quero o seu desejo — revela. — Embora eu tenha a estátua, a entidade lá só pode me conceder um desejo depois de realizar o seu, e como o objeto de diamante desaparece sempre que alguém faz um desejo, eu preciso que você colabore.
Nunca me senti tão vulnerável na vida. A sensação de desamparo aumenta quando, ao terminar de falar, Anna começa a gargalhar insanamente. Tenho medo que ela me nocauteei com algo muito pesado caso eu não ceda às suas ordens.
Não acredito que a minha melhor amiga — quer dizer, a pessoa que eu pensei ser minha melhor amiga — é a responsável por todos os acontecimentos ruins que meus olhos relataram desde que eu cheguei à cidade de Mavetorã.
— Eu fui tão genial, nossa! Algumas pessoas podem dizer que eu fui uma antagonista preguiçosa, que fui mal construída e até usarem palavras como "covarde" para me definir, mas o que elas não veem é o quanto que eu fui esperta por agir nas sombras. Consegui tudo que eu queria e não sofri nenhuma consequência.
— Você brincou com os meus sentimentos, e os do Raul também.
— E foi muito divertido fazer vocês dois de marionete — diz ela, com todos os dentes à mostra. — Eu me sentia uma espécie de deusa soberana, sabe. Uma roteirista perversa. Uma jogadora cruel de jogos de simulação de vida.
— Eu nem consigo nutrir sentimentos de raiva por você agora, porque tudo isso parece um grande show de stand-up falido.
— E é esse stand-up falido que vai ganhar milhões às custas de sangue mágico — vocifera Anna —, não é, galera?
E, para a minha surpresa, Aura, Raul, Xavier e tia Susana surgem das sombras, vestidos em capaz pretas, me encarando com faces vis, como se eu fosse um animal abatido, e eles, carniceiros sedentos.
— Raul, você está bem? — pergunto, desesperada, assim que ponho meus olhos nele. — E... tia Susana... Como pôde?
— São escolhas de vida, querida — rebate minha parente. — Nós envelhecemos, nos entendíamos e, quando percebemos, já estamos envolvidas com uma facção criminosa. Simplesmente amo viver.
— Você me enganou, mentiu para mim — falo, sem muita noção das palavras que estão saindo da minha boca. Estou desnorteada e zangada, queria que minhas palavras fossem lâminas afiadas capazes de feri-la. — Armou todo aquele circo quando eu cheguei à sua casa e, para piorar, me vigiava constantemente, como se eu fosse uma espécie de experimento científico. Como pôde ser tão perversa assim?
— A parte da espionagem foi até bem fácil, meu bem — esboça. — Xavier me ajudou a instalar as micro câmeras e as escutas em pontos estratégicos do quarto para que você não percebesse.
Olho para Xavier, que está me encarando, satisfeito com o que vê.
— Aproveitei o fato de você não poder fazer questionamentos e usei aquelas tantas aulas para comparecer às reuniões do grupo — continua. — Não acredito que você nunca estranhou o fato de uma pessoa mais velha ter tanta energia daquele jeito.
— Vocês são doentes — grito, furiosa. — Todos vocês!
Eles riem.
— Todas as vezes que você esbarrou com a Aura, que se sentiu motivada a dar em cima do Raul e até mesmo seus picos de euforia eram graças a mim — se gaba Anna orgulhosamente. — Foi tão divertido, e você deve ter odiado, essa é a melhor parte.
Tento ignorar as doses exageradas de ego e crueldade para tentar fazer as engrenagens do meu cérebro fluírem.
— Esperem, há muitas pontas soltas nessa história — exclamo, ganhando a atenção de todos. — Como Aura e Edgar estão vivos, sendo que Mavetorã sempre cobra em média setenta anos de vida dos pais inférteis?
— Você é burra, por acaso? — questiona Anna, revirando os olhos. — Deixo que você responda essa, Aura.
— Com prazer — retruca a loira, contente que foi solicitada para fazer o que faz de melhor: se gabar. — O fato, Eva, é que eu dediquei anos da minha existência a estudar o sangue mágico dos filhos de lume. Era maçante e entediante, mas eu precisava descobrir uma forma de prolongar a minha vida. Não poderia morrer aos trinta anos.
— Então você extraiu o sangue do seu próprio filho... — pontuo, assimilando lentamente as informações.
— Começou com pouco, mas, à medida que minhas descobertas avançavam, maior era a necessidade de sangue — continua Aura. — Usando meus conhecimentos químicos, consegui, após muitos anos, criar um medicamento capaz de rejuvenescer qualquer forma de vida.
— Isso explica bastante, mas ainda não justifica o óleo de baleia — rebato, disposta a tirar a limpo todas as pontas soltas antes de ser morta por esses criminosos. — A caça de baleias é proibida, os biólogos sempre fazem vistorias, não faz sentido você ter conseguido afetá-las com as correntes elétricas daquele jeito.
Aura bufa.
— De início, eu utilizava óleos vegetais, mas a eficácia era fraca — responde. — Até que eu me lembrei das aulas de história, de como o óleo de baleia era requisitado para inúmeros feitos. Então pensei "por que não?". Mandei que caçassem uma baleia para mim e me trouxessem o óleo. Testei e funcionou. Desde então, não parei.
— Você é um monstro!
— Posso até ser, mas seus pais eram mais monstruosos do que eu — solta ela acidamente. — Afinal, que tipo de pais vendem a própria filha, ainda nem concebida, por dinheiro?
Olho de imediato para a minha tia.
— Conte a ela, Susana — continua. — Conte como os pobres Eleonor Fleur e Camilo Clarim não pensaram duas vezes antes de venderem a filha deles, fruto de um pacto com uma entidade, para dois ricaços de lábia afiada com propostas tentadoras.
— Tia, isso é verdade?
— É, sim — confirma ela. — Como acha que eles ficaram tão ricos? Graças ao acordo. O dinheiro que eles depositaram em sua conta antes de se acovardarem e sumirem no mundo para morrerem como indigentes? Veio do bolso dos Cadente.
Minha feição quebra. A essa altura da minha vida, eu nem ligo mais se meus olhos estão inundados ou não.
— Tomara que aqueles traidores covardes tenham tido uma morte sofrida por quebrarem o combinado e ainda esconderem você — solta Aura, externando o rancor ainda vivo em seu ser. — Pelo menos conseguimos extrair seu sangue enquanto você era um feto.
Aura gargalha.
— Mas e o Raul? — pergunto, me sentindo tola por estar externando minha preocupação por ele. — Você não o ama?
— É claro que eu o amo — retruca a ricaça. — E é justamente por amá-lo que eu exploro todo o potencial que há nele, ora. Físico e sanguíneo.
Não reajo.
— Abdiquei de metade de minha alma e de minha existência para que ele existisse, e ainda fiquei inchada por meses, é mínimo que ele me deve por ser quem é hoje em dia — continua ela.
Um silêncio paira sobre o espaço hostil em que estamos.
Susana, a quem eu me recuso a continuar chamando de tia, dá um passo à frente, tirando carne do dente com a língua antes de fazer mais uma revelação:
— É óbvio que não teríamos de esperar tanto tempo para dar continuidade ao nosso plano se a estátua de Mavetorã não tivesse desaparecido magicamente.
— Quando eu a usei, a estátua foi teletransportada para uma distância curta, foi parar na praia — incrementa Aura. — Mas, quando seus pais a usaram, a estátua sumiu do mapa. Procuramos, mas não conseguimos encontrá-la.
— E olha que coincidência! — exclama Anna falsamente. — Tinha de ser justo você, filha de seus pais, a pessoa a encontrar a estátua, na praia.
— Mavetorã sabia... — menciono, finalmente ligando os pontos. — Ela sabia das intenções maléficas de vocês, ela podia não se lembrar, mas com certeza sentia a essência perversa que rodeia cada um aqui.
Todos riem, fingindo estarem ofendidos.
— Era o meu dever salvar os filhos de lume... e o Raul, que tentou me salvar... — falo baixinho, olhando desnorteadamente para o chão.
Aura se aproxima de mim, parecendo que vai cuspir em meu rosto. Mas ela apenas me envia um olhar feio e diz:
— Acha mesmo que o gesto idiota do meu filho te livraria do seu destino trágico? — questiona Aura. — A rebeldia dele apenas resultou em um ferimento horroroso, que já se recuperando, e um castigo eterno: ele nunca mais terá vontade própria.
Honestamente, eu nem consigo me espantar mais com tamanha crueldade. Mas meu coração aperta quando vejo que Raul está rígido, como uma estátua humana... Apático, à espera da próxima ordem.
— Você conseguiu, hein, Eva — entoa Aura, em tom irônico. — Você conseguiu, de alguma maneira, invadir minha casa e captar provas do nosso plano.
Solto uma risada confiante; umas das poucas vezes em que me senti assim nesse mausoléu.
— E já soube que a mídia e a polícia estão atrás de vocês, o que, fique sabendo, me conforta imensamente — retruco sorridente.
Aura ri, se recusando a baixar a guarda.
— Por sorte, deixei o inútil do Edgar lá, de isca, para os policiais trucidarem — diz. — Ele não é mais útil. Todo o dinheiro que eu queria extrair dele, eu extraí.
— Só não te matamos ainda, porque você é valiosa demais para nós — resmunga Xavier.
— Não revela isso para ela — repreende-o Aura.
— Não é nada que ela já não saiba — rebate ele, com uma expressão de obviedade.
— Não mesmo, inclusive, toda a rebelião foi pautada nisso, no fato de que vocês não podem me machucar, porque querem o meu desejo e, para isso, eu preciso estar viva — dessa vez, sou eu quem me gabo.
Anna revira os olhos.
— Ai, vamos acabar logo com isso — diz Anna, se aproximando de mim. — Quanto mais rápido conseguirmos o desejo, mais rápido nos livramos dessa insuportável.
— Insuportável, né? — repito, irritada. — Mas foi comigo que você compartilhou a vida ao longo dos últimos anos.
— Puro fingimento — rebate. — Pelos menos dez vezes ao dia, eu ia ao banheiro revirar os olhos e gritar sem som para recarregar as energias e não empurrar você da escada.
Miserável! Tenho vontade de voar no pescoço dela.
— E cadê a Ginger? O que você fez com ela?
— Matei e fiz churrasquinho de gato — retruca, rindo.
Travo, mas logo me recomponho quando ela afirma estar zoando.
— Embora eu deteste animais, eu jamais faria mal àquela gata chata — continua. — Eu soltei ela em uma rua qualquer. Com sorte, ela não foi atropelada ainda.
— Olha aqui, Anna, se alguma coisa de ruim acontecer com a...
— Cala a boca — ordena Anna. — Levanta e vai até a estátua dar início ao processo de realização do desejo.
Estou consciente, mas não consigo controlar meu próprio corpo.
É uma sensação muito estranha.
Ajoelho-me em frente à cúpula, ergo as mãos, pego a estátua e digo:
— Quero fazer meu desejo.
Minha voz e meus movimentos estão robóticos. Quero parar, mas não consigo. A angústia cresce em meu peito quando percebo que estou prestes a cruzar uma linha que não tem mais volta.
Mavetorã aparece.
— Essa não! — exclama Mavetorã em desagrado ao me ver. — O plano falhou... Não acredito que esse é o nosso fim, Eva...
Não consigo nem cumprimentá-la. A ordem se sobrepõe aos meus quereres. Que mecanismo cruel esse, hein...
— Deseje que todos os filhos de Mavetorã do mundo sejam trazidos para cá, para a Concentração — ordena Anna.
— Eu desejo que todos os filhos de Mavetorã do mundo sejam trazidos para cá, para a Concentração — repito roboticamente.
Mavetorã suspira, entristecida, e uma luz começa a surgir da estátua. O processo está a um passo de se realizar.
— Isso! — celebra Anna sorridente. — Finalmente não terei mais que procurar por sangue mágico!
Porém, para o desagrado dela, o desejo falha. O brilho cessa rápido e misteriosamente.
— O que aconteceu? — pergunta ela, irada.
A voz de Mavetorã ecoa pela sala fantasmagoricamente, assim como ela costumava se comunicar comigo em nossas primeiras interações.
— O desejo precisa vir do coração de quem o possui, e não de quem está no controle — comunica ela. — Isto é, o desejo pertence à Eva. Apenas ela pode requisitá-lo.
Anna, Aura e Susana se olham, irritadas.
— Entregar o diadema para ela e chantageá-la com a marreta de diamante? — sugere Aura, esganiçada.
— Acho uma manobra muito arriscada — comenta Susana.
— Eu também, mas é a única possibilidade que nos resta — admite Anna. — Armem-se. Mantenham as armas a postos caso ela tente alguma gracinha.
Todos apanham uma arma.
— Muito bem, Eva, aqui está o seu diadema — fala ela, me entregando o item. Ponho-o em minha cabeça e sinto novamente o controle fluindo em minhas veias. — Agora, você vai desejar o que desejou anteriormente. E sem gracinhas.
— Até porque, se você fizer alguma gracinha, vamos usar a marreta de diamante que nós adquirimos para destruir a sua preciosa estátua — fala Aura, afiada. — Diamante quebra diamante.
Estou meio encurralada.
Mas acho que já sei o que devo fazer. Sei há um tempo, mesmo que eu estivesse negando a mim mesma, pois não tinha coragem o bastante para lidar com todas as mudanças que o desejo que estou prestes a fazer implica.
— Posso me despedir dela, pelo menos? — digo, tentando não soar arrogante. Quero que pensem que estou colaborando. — Prometo que, quando eu terminar, farei tudo que quiserem, sem gracinhas.
Elas assentem a contragosto. Eu deveria estudar teatro, sou boa nisso.
Cá estou eu novamente, cara a cara com Mavetorã. Dessa vez, porém, posso falar com ela por mim mesma.
— Oi, mãe.
— Mãe? — se sobressalta a entidade. — Acho que é a primeira vez que escuto você me chamando assim.
— Eu acho que já te chamei assim uma vez... — digo. — Mas, você tem razão, é a primeira vez que te chamo assim com tanto sentimento envolvido.
— Isso é uma despedida? — questiona ela.
— Está parecendo, né — respondo, em um misto de tristeza e sobriedade. — Mas acho que é mais um pedido de desculpas adiantado.
— Como assim?
— O meu desejo... talvez marque a nossa separação... Talvez nós nunca mais nos vejamos... — falo, em lágrimas vivas.
— Eva...
— Obrigada por todo o apoio ao longo dessas últimas semanas, e me desculpa por falhar com você, mãe... — falo, abalada.
— Você foi uma das filhas que mais me orgulhou, Eva. Passar esses últimos tempos com você foi uma aventura. A melhor das aventuras.
Envio-lhe um sorriso genuíno, triste e saudoso.
Quero abraçá-la. Pedir conselhos. Chorar em seu colo.
Mas não dá. Não nesse tempo.
É hora do desejo.
— Bom, eu desejo... — começo, ponderando se estou fazendo a coisa certa. — Eu desejo que todos os seus poderes de bruxa sejam imediatamente transferidos para mim.
— NÃO — fala Anna, aterrorizada.
— ATIREM AGORA — ordena Aura. — Impeçam-na!
Ouço inúmeros disparos. Mas já é tarde.
A estátua já está brilhando.
Meus cabelos e roupas estão esvoaçando.
E a magia já está fluindo pelo meu corpo.
A camada de energia mágica que se materializa ao meu redor é tão densa que as balas perdem força e caem ao chão.
A cúpula explode. Os vidros da base estouram.
Quando as luzes cessam, meus olhos veem a estátua desaparecer, como se nunca tivesse existido, e meu horrível macacão laranja se transformar em um longo e pomposo vestido azul marinho, semelhante ao da estátua de diamante — obrigada pelo mimo, Mavetorã.
— ATIREM — ordena Aura novamente.
Mas, dessa vez, sou eu quem repele as balas, com apenas um movimento de mãos. É uma sensação prazerosa ver as balas caírem ao chão, como se não fossem nada.
Tudo bem, eu sei o que vocês devem estar se perguntando. Por que eu desejei os poderes de Mavetorã.
Se eu desejasse que as almas dos filhos de lume fossem libertadas dos objetos mágicos, nosso sangue continuaria sendo alvo de pessoas gananciosas.
E se eu acabasse com a magia do sangue mágico, nós ainda poderíamos ser controlados pelos nossos objetos e usados para guerras ou trabalhos abusivos.
Então, decidi eu mesma pegar os poderes e livrar nós, filhos de lume, de uma vez por todas desse legado de terror.
Um único pedido não resolveria os problemas de milhares de pessoas presas a essa maldição, e como pedir mais desejos estava fora de cogitação, tive que driblar as regras.
É curioso, porque eu nunca manuseei magia antes, porém, de alguma forma, é como se eu soubesse todos os passos, gestos e palavras.
— Das cinzas eu restauro, o que um dia se partiu, um acordo de paz eu selo com o portal entre os mundos, para que todas as almas inocentes ceifadas sejam restauradas! — profiro, trazendo de volta todos os filhos de lume que morreram em combate.
Todos estão parados, me encarando, boquiabertos. Tomara que estejam admirando meu resplendor, porque eu sou resplandecente.
— Aos filhos de lume, eu concedo a paz, a harmonia de saberem em seu íntimo que não mais serão controlados por aqueles de coração ganancioso e alma corrompida. Suas almas agora habitam seus corpos, não mais seus objetos, e seu sangue é como qualquer outro sangue, comum.
Eu brilho. Raul brilha. Um clarão lá fora indica que todos os filhos de lume também brilham, o que significa que todos nós agora somos livres.
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