16. Desfile Catastrófico

Sou puxada por Raul em direção à saída do estabelecimento de forma tão brusca e mal explicada que mal tenho tempo de pegar minha bolsa, por sorte, consigo apanhá-la por uma das alças. Atualmente, ela é meu bem mais precioso, visto que é nela onde eu guardo a estátua de Mavetorã.

Antes de conseguirmos alcançar a porta, porém, somos barrados por um dos funcionários da pizzaria, pois não havíamos pagado a conta. Em uma atitude impensada, Raul abre a carteira e entrega duas notas de cem ao homem, que com certeza custeiam bem mais do que tínhamos consumido de fato. Contudo, ele não deseja esperar pelo troco, entrega a quantia e sai, me levando como sua refém.

— Raul, por favor, se acalma e me explica o que está havendo — peço, assustada, pensando o pior. Será que algo aconteceu com Marco? Não sei, talvez o helicóptero que estava sendo usado por ele para sobrevoar a praia tenha caído, ou...

— São as baleias, Eva! — responde ele, trêmulo. — Elas estão todas... mortas! Elas chegaram à praia sem vida, várias delas...

Meu coração acelera.

Mais cedo enquanto conversávamos, Mavetorã mencionou que talvez tivesse influência sobre a chegada adiantada das baleias à costa de Mavetorã, mas ela não deixou claro se falava sério ou não.

Agora, vem essa notícia catastrófica... Tudo que eu mais quero é um tempo a sós com a entidade abrigada dentro da estátua que tenho em minha bolsa. Questioná-la poderia me dar respostas concretas a respeito dessa tragédia.

— Essa não! — exclamo, horrorizada. — Primeiro teve aquela baleia encalhada sozinha, e agora, essas... Algo errado está acontecendo na água, Raul.

— Com certeza há algum desequilibro ambiental em alguma parte do oceano, próximo à cidade.

Enquanto caminhamos a passos largos rumo à praia, tento pôr as engrenagens do meu cérebro para funcionar. Gostaria de ter o diário de Mavetorã em mãos para conhecer todas as suas histórias e, sobretudo, checar se há alguma narrativa envolvendo baleias registrada naquelas páginas. Desconheço o motivo, mas, desde que abri aquele caixão, sinto como se eu tivesse certa responsabilidade pelos acontecimentos terríveis que vem acontecendo.

Quando finalmente chegamos ao local, somos tomados por um agressivo choque de realidade. A praia, antes rodeada majoritariamente de areia e banhistas alegres, possuía agora inúmeros corpos de baleias-jubartes espalhados por todos os lados.

Repetidas vezes, bombeiros apitam na tentativa de afastar a população curiosa, que tenta a todo custo se aproximar das carcaças. Aos meus olhos leigos, os animais não possuem nenhuma marca de mordida. Mas nada descarta uma possível enfermidade coletiva... Não sei, não dá para supor, somente um especialista poderia e saberia responder com precisão sobre o estado de saúde deles.

— Ao vivo é ainda pior... — lamenta Raul, com a voz embargada.

— Eu sinto muito, Raul... — digo, pegando em sua mão. — Nem imagino como o Marco deve estar arrasado.

Ele suspira.

— Ele me ligou aos prantos, mal conseguia falar... Eu nem consegui entender em qual parte da praia ele estava.

Um lampejo de lucidez percorre meu cérebro nesse instante — e não poderia ter vindo em melhor hora. Preciso ter uma conversa com a entidade que tenho guardada em minha bolsa e o melhor jeito de fazer isso é tendo privacidade.

— Vai atrás dele — digo, em um tom de ordem amigável. — Liga para ele de novo e vai atrás dele.

Raul me olha com uma feição confusa e levemente abismada.

— Não... Quê? — ecoa ele, buscando respostas em meu rosto. — Eu não vou deixar você aqui sozinha, e nem vou te obrigar a percorrer essa praia inteiro em busca dele.

— Ah, qual é, Raul, não me venha com cavalheirismo agora! — esbravejo, encarando-o com a feição mais brava que consigo produzir. — Seu melhor amigo de anos está desesperado por aí, claramente precisando de você, e você está preocupado com uma garota que conheceu há menos de uma semana? Que amizade é essa?

Ele me olha sem palavras. Tenta argumentar, mas falha em encontrar um argumento potente o suficiente para competir com o meu.

Sou tão persuasiva que às vezes penso em cursar direito. Modéstia à parte, eu seria uma excelente advogada.

— Tá legal, mas fica por aqui, para que eu possa te achar quando eu voltar — pede ele, eufórico, sem tirar os olhos de mim.

— Eu sei me cuidar, bobão — rebato sorridente. — Agora vai, seu amigo precisa de você.

E ele foi, correndo velozmente em direção às baleias maiores — provavelmente por entender que Marco está nessa direção. Eu também decido correr, porém na direção contrária: de volta à pizzaria, onde eu poderia usar o banheiro para iniciar uma conversa importantíssima.

De volta ao estabelecimento, assim que alcanço a entrada, um dos recepcionistas tenta me entregar o troco que pertence a Raul, nego e digo que eles realmente podem ficar com o dinheiro.

Subo as escadas em direção ao banheiro, entro, tranco a porta e retiro a valiosíssima estátua de diamantes da bolsa. Nunca vou me acostumar em andar para cima e para baixo com um item tão valioso dentro da bolsa.

— Mavetorã, eu preciso de esclarecimentos! — exclamo, séria. Ninguém me tira da cabeça que abrir aquele caixão causou algum impacto ambiental na Praia do Coral Colorido.

— Eu já sei, você quer falar sobre as baleias — cantarola ela, surgindo ao meu lado. — E, não, eu não faço a menor ideia do porquê essas baleias estão aparecendo mortas.

— Você tem como me prometer que a abertura do seu caixão não tem nada a ver com isso? — pergunto, agitada.

Os olhos dela reviram tal qual os olhos de uma adolescente mimada.

— Eva, meu caixão tinha sido aberto muito antes de você abri-lo naquele dia. Se ele fosse realmente responsável por todo esse caos, acha mesmo que não teria acontecido antes?

Minha teoria é refutada e sinto novamente as engrenagens em minha cabeça começarem a se movimentar.

— E aquele tubarão que quase me atacou? — relembro. — Ele era enorme. Será que não tem alguma influência nisso?

— O Brutos jamais teria poder para fazer um grupo enorme de baleias como aquele encalhar, Eva! — explica ela, impaciente. — Além disso, o único motivo pelo qual ele cogitou te atacar é o encantamento furreca que lancei nele.

— Espera, de que encantamento você está falando? — questiono.

— Eu encantei o entorno do meu caixão para que qualquer intruso que ousasse abri-lo fosse atacado pelo predador mais próximo, mas é um encantamento tão fraco que raramente funciona.

— Funcionou quando eu e o Raul fomos lá — pontuo, irritada com a revelação tardia. — Então você sabia da possibilidade de perigo e nem me contou?

— Como eu mencionei, é um encantamento fraco e que não funciona todas as vezes — repete. — Além do mais, eu coloquei os golfinhos de guarda. E, ei, eu também estava lá! Eu jamais deixaria que nada acontecesse a vocês.

— Transparência, Mavetorã, foi a única coisa que eu te pedi, e você me esconde uma informação dessa importância.

— Se eu tivesse contado que você poderia ser atacada por algum animal marinho, você teria negado a missão.

— É claro que eu não aceitaria, eu ainda não estou louca — rebato, mais furiosa a cada fala. — Acha que eu encontrei minha vida no lixo para arriscar ela assim?

— É claro que não, mas eu precisava de ajuda, então tive que usar todas as armas que encontrei... e deu certo! — conclui Mavetorã. — Agora, nós sabemos que alguém está com o meu inestimável diário, repleto de segredos e informações importantes...

Paro por alguns segundos para fazer um esquema de respiração. Preciso manter a calma ou vou perder totalmente a sanidade.

— O diário... Quem está em posse do diário consegue adquirir algum poder, ou algo parecido? — pergunto, tentando criar um quadro de causas e consequências em minha cabeça.

— Acredito que um humano sem acesso à magia não conseguiria muita coisa, além de ficar fascinado com meus feitos, é claro.

— Tá bom, mas e um humano com acesso à magia? Como sangue mágico de um dos seus filhos de lume, teria algum poder? — indago.

— Temo que sim, embora seja necessário prática para manusear a magia dos meus filhos... — responde Mavetorã, cabisbaixa. — O que está pensando, Eva? Acha que o sangue do meu filho pode estar sendo usando para propósitos maléficos?

Encaro-a, pesarosa, e meu olhar aflito responde a sua pergunta.

Mavetorã se angustia. Leva as mãos à boca, tensa, e, por um instante, eu juro que vi o vidro do espelho do banheiro congelar.

— Meu filho... sendo explorado... sangue mágico... sendo usado... para propósitos maléficos... meu filho... meu filho... — alucina Mavetorã, olhando para as suas mãos com os olhos arregalados.

Ótimo, consegui a proeza de causar uma pane no sistema de um espírito. Como vou acalmá-la se nem sequer posso tocá-la?

Enquanto Mavetorã colapsa à minha frente, ouço gritos vindos lá de fora. O som de cadeiras se arrastando, vidros explodindo... É, pelo visto sou eu a responsável pelo fim do mundo.

Abro a porta do banheiro e corro em direção à varanda para dar uma olhada bem detalhada ao fim do mundo: está tudo uma bagunça, todos que estavam no primeiro andar, desceram. Olho para a praia e vejo as ondas em um ritmo completamente violento, arrastando até mesmo algumas pessoas. Os salva-vidas já estão em andamento, mas até eles estão em perigo.

As carcaças também começam a ser arrastadas de volta para o mar, e o vento ganha uma intensidade nunca antes vista por mim. Está quase impossível continuar na varada, sinto meus pés saindo do chão, por isso corro de volta ao banheiro, onde tento, a todo custo, acalmar a entidade em fúria.

— Conhece a história do Karma do Vilarejo, Eva? — indaga, com a mesma voz fantasmagórica e assustadora do dia em que nos conhecemos. — Pois é ela que vai acontecer aqui.

— Lembro mais ou menos — respondo, tentando colaborar com a entidade em surto à minha frente. — Os aldeões do vilarejo não gostavam de você, por isso, quando você saiu para colher ervas na floresta, eles tacaram fogo na sua casa.

— Isso mesmo — cicia Mavetorã. — E o que aconteceu depois?

— Você enviou os quatro elementos para destruir o vilarejo e matar todos — respondo. — O vento forte levou as casas, destruindo suas moradias; a água violenta dos rios arrastou para longe o que havia sobrado do vilarejo; o fogo queimou as plantações e parte da floresta; e os terremotos abriram crateras tão grandes que todos os sobreviventes foram engolidos. Não sobrou ninguém.

— Pelo visto, alguém conhece bem as minhas histórias — continua Mavetorã. — Então, também deve saber que não terei piedade com aqueles que estão machucando o meu filho.

— Eu sei que não, Mavetorã, mas você não pode condenar uma cidade inteira por causa de algumas pessoas — imploro. — Por favor, me escuta. Há crianças inocentes espalhadas pela cidade, quer mesmo que elas sofram?

Consigo sua atenção.

— Eu prometo, Mavetorã, como já prometi uma vez, eu vou achar o seu filho perdido, vivo ou morto, e nós vamos acabar com quem quer que esteja se aproveitando do seu sangue mágico. Confia em mim.

Em segundos, o vento cessa.

Mavetorã, pouco a pouco, retorna a si.

— Eu, eu... — tenta dizer, desnorteada. — Perdão, Eva. Eu perdi o controle e me deixei levar pelas minhas emoções.

Suspiro, sabendo que parte da culpa é minha.

— Tá tudo bem, volta para estátua e descansa — digo, forçando um sorriso apaziguador. — Eu vou tentar investigar se a minha teoria sobre o diário perdido e o sangue do seu filho possuem algum tipo de fundamento.

Hoje, mais do que nunca, eu aprendi o quão estável Mavetorã é. Agora sei que confrontos diretos nunca devem ser cogitados com ela, visto que seus poderes ainda exercem influência no mundo real, mesmo que ela precise estar muito furiosa para que isso aconteça.

E sei também que parte da culpa desse ataque é minha. Mas, sendo sincera, não estou arrependida de tê-la confrontado. Odeio que escondam informações importantes de mim e isso foi exatamente o que ela fez, e em benefício próprio, ainda por cima. Mas vou relevar. Não vale a pena nutrir mágoa da única comunicação que tenho com o além.

Enquanto saio da pizzaria e volto à praia, sinto alivio ao perceber que os estragos são pífios, nenhuma casa desabou nem ninguém se machucou gravemente. A instabilidade de Mavetorã, porém, foi responsável por levar de volta à água todos os corpos das baleias mortas, o que com certeza vai dificultar o trabalho dos pesquisadores no que diz respeito às pesquisas para o entendimento do ocorrido.

Como esperado, Raul estava à minha procura. Como voltou ao ponto em que me deixou minutos antes e não me encontrou, ele temeu que algo pudesse ter acontecido. Por sorte, eu o encontro a tempo de esclarecer tudo.

— Voltei na pizzaria para buscar um dos meus brincos que havia caído — minto descaradamente. — Felizmente, aquela tempestade macabra não durou.

— Ainda bem que você não se machucou — fala ele. — Eu encontrei o Marco, ele está arrasado, mas não há muito que eu possa fazer. Forneci meu abraço amigo e voltei.

Rio sutilmente e o abraço.

Mantenho-me abraçada a ele por vários minutos.

Não quero largar.

— Tá tudo bem, Eva? — questiona, acariciando minha mão.

— Não... mas vai ficar... — respondo, completamente aconchegada ao seu abraço, que cheira à âmbar e à floresta. — Só me deixa ficar aqui abraçada a você por mais algumas horas, por favor.

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