15. Assuntos Delicados

Raul decide estacionar a moto em um ponto movimentado da orla, próximo aos quiosques. Não é a primeira vez que venho nesse trecho da praia, mas é a primeira vez que o vejo tão lotado.

Por causa das baleias, é claro.

A agitação não me incomoda, mas pensei que teríamos um lugar a sós para conversar. Este lugar em que estamos é completamente diferente do que idealizei mais cedo.

Desço do veículo, retiro o capacete e penteio meu cabelo com a mão — como de costume, para deixá-lo alinhado. Entrego o objeto de proteção ao dono, que me observa sério.

Enfim poder enxergar o seu rosto é um alivio imenso — e ele está especialmente mais bonito hoje.

Questiono-me se estou ficando louca. Mas acho que estou apenas me apaixonando por Raul Cadente, de uma forma física, mas também emotiva. Isso faz algum sentido?

Agora que estou aqui, parada, olhando para ele, consigo perceber como ele é bonito em seus inúmeros detalhes, detalhes esses que eu não tinha parado para analisar antes.

Seu cabelo está recém-cortado em um corte que valoriza muito o formato do seu rosto: raspado nas laterais e com os cabelos ondulados sutilmente aloirados no topo, sendo influenciados pelo vento. Seu nariz grande e sua face simétrica se misturam às sardas e aos olhos verdes, o que compensa os seus lábios pequenos. Ele também alinhou a barba, mas, graças a Deus, não retirou o cavanhaque — em minha opinião, uma das parte mais charmosas. Fica um charme em qualquer homem, principalmente nele.

Eu poderia ficar horas analisando as características físicas dele, mas Raul claramente tem outros planos, visto que me traz de volta à realidade, me chamando repetidas vezes.

— Eva? — diz, com uma feição confusa.

— Ah, oi... — digo, tentando fingir normalidade.

— Você sempre dá essas desligadas da realidade, né — comenta, rindo. — Não é a primeira vez que acontece.

— É... bem...

— Temos que achar um lugar mais calmo para conversar, aqui não vai rolar — pontua ele, olhando ao redor com atenção.

— É verdade — concordo. — Privacidade e essa praia, hoje, são duas vertentes totalmente diferentes.

— É o impacto das baleias — complementa ele, com uma risada descontraída. — Que tal passearmos por aí? Marco está sobrevoando a praia de helicóptero à procura de algum sinal das baleias e disse que me avisaria quando elas estivessem por perto.

— Eu acho ótimo!

— Vou deixar a moto aqui, porque há um posto de polícia ali ao lado, acho mais seguro do que deixar em um lugar qualquer — explica ele. — Não rola tanto furto por aqui, mas nunca se sabe, né.

— Pensei que pessoas ricas não se preocupassem tanto com a possibilidade de terem seus pertences roubados — comento, rindo.

— Em partes, é verdade, mas eu tenho um apego emocional por essa moto que dinheiro nenhum é capaz de comprar.

— Justo!

Ora, ora, ora. Quem diria que Raul Cadente tem sentimentos.

— Ei, há uma pizzaria aqui perto que serve a melhor pizza de brigadeiro do mundo — anuncia, empolgado. — O que acha de irmos lá? Deve estar vazia, já que aparentemente toda cidade está aqui.

— Eu topo — comento rapidamente. — E, a propósito, eu adoro pizza de chocolate. Pizzas doces, em geral, são as minhas favoritas.

— Idem — retruca Raul. — Embora eu não possa exagerar no doce, já que a quantidade de açúcar em meu sangue costuma sempre estar elevada quando faço hemogramas.

— Sério? — indago, surpresa com a coincidência. — Acontece o mesmo comigo, eu até comentei isso no dia do jantar com os seus pais. Passei a me cuidar melhor a partir do momento em que quase me tornei diabética.

— E fez bem, a saúde é um bem inestimável — comenta. — Mas acho que, só por hoje, uma fatiazinha de pizza doce não vai fazer mal.

— Com certeza, não!

Em menos de dez minutos, nós já estávamos sentados ao sofá acolchoado estilo retro da pizzaria — sim, posso afirmar que o desejo de comer pizza doce foi o combustível perfeito para nos fazer chegar à pizzaria na velocidade da luz.

Como previsto por Raul, o local está praticamente vazio, com menos de uma dúzia de pessoas, sem contar com os funcionários de feição monótona transitando pelo estabelecimento.

A fim de conquistar mais privacidade, decidimos subir para o segundo andar. Além disso, a vista é linda daqui de cima. Dá para ver a linha do horizonte sobre o mar, assim como os banhistas aglomerados em certos pontos da areia.

— O surfe foi suspenso por hoje? — pergunto, assim que percebo que não há nenhuma prancha sobre a água.

— Sim, o dia vai ser inteiramente dedicado ao desfile das baleias — responde Raul, checando o cardápio. — Uma pizza grande ou uma pizza média?

— A maior que tiver — digo sem pudor, despertando uma gargalhada no homem à minha frente.

Feito o pedido, tudo o que nos resta é utilizar o tempo livre para conversar. Mas acho que nenhum de nós quer dar o primeiro passo e acabar estragando o clima agradável que se instaurou entre nós.

— Olha, eu recebi um conselho muito bom de uma amiga... — começo, escolhendo bem as palavras que sairão da minha boca. — Então acho melhor irmos direto ao ponto. Arrancar o curativo de uma vez.

— Eu concordo... e é por isso que eu queria me desculpar por aquela atitude impulsiva...

— Não, quer dizer, eu não me senti ofendida... — me apresso em esclarecer. — Eu só fui pega de surpresa, porque o clima que estava... está... nascendo entre nós é bom, mas, ao mesmo tempo, me preocupa, não consigo ficar à vontade perto de você.

— Isso tem a ver com o seu nervosismo mais cedo quando sua tia nos viu juntos?

Droga! Por que ele tem de ser tão certeiro?!

— Sendo inteiramente honesta com você, eu não imaginei que fosse nutrir sentimentos pelo filho da minha nova sócia — revelo. — Além do mais, tenho medo de como um possível relacionamento entre nós poderia afetar a imagem que sua mãe tem de mim.

— Hmm — pondera ele. — Imaginei que esse pudesse ser o motivo... Mas também tive medo de ter ultrapassado os limites com você.

— Fica tranquilo, você não me deixou incomodada em nenhum momento — esclareço. — É só uma questão de insegurança mesmo.

Um silêncio toma conta da mesa, até ser rompido por uma risada de Raul. Não, não sei o que ele achou tão engraçado.

— Então... isso significa que você também queria... me beijar?

Decido jogar o jogo dele.

— Então você está afirmando que queria mesmo me beijar — digo, encarando os belos olhos dele, perpetuando assim o contato visual entre nós.

— É claro que eu queria beijar você — afirma descaradamente.

— Por que conjugou o verbo no passado? — pergunto, fazendo beicinho. — Não quer mais?

E então ambos rimos.

— Que alivio saber que poderei flertar com você da forma mais descarada possível a partir de agora.

— Menos na frente dos seus pais, e da minha tia — advirto, tentando modular o humor para não soar chata.

— Pode deixar, vou me controlar.

— Muito bem — falo, confiante. — Mas... sei lá. Tenho uma dúvida.

Ele me encara com uma feição que diz "fale".

— O que mais atraiu você em mim?

Para a minha surpresa, ele não hesita em responder.

— Sua personalidade briguenta. Adoro mulher briguenta.

Tento me controlar, mas, quando percebo, estou rindo tão alto que todos no estabelecimento ouvem.

— É sério! — reafirma Raul, provavelmente achando que eu encarei sua resposta como uma piada. — O modo como você se impôs quando eu falei que você tinha que pagar o conserto da minha moto foi muito sexy.

Continuo rindo, pois não imaginei, nem por um minuto, que a resposta dele fosse ser tão sincera assim.

— No meu caso foi o completo oposto — revelo. — Seu lado briguento não me atraiu em nada. Foi somente quando você me mostrou o seu lado mais atencioso e sensível que meu coração começou a bater mais rápido.

— Contrapontos — comenta, mantendo vivo o contato visual entre nós. Consigo enxergar faíscas nascendo de nossas pupilas.

— Temos muitos.

— Isso é bom, muito bom — alfineta, contemplando meu rosto tal qual uma obra de arte. — Sua boca também é linda. Notei a beleza dela no momento em que te vi.

— Seu rosto — pontuo, entrando no jogo dele. — É simétrico. Eu gosto bastante.

— Herdei da minha mãe — comenta ele, rindo. — Obrigado, mãe, pelos genes atrativos.

Enquanto rimos, Raul comunica que precisa ir ao banheiro, me deixando sozinha à mesa. Tudo bem, talvez não tão sozinha. Meus pensamentos estão aqui comigo e eles são uma boa companhia — quando não estão me auto boicotando.

Meu Deus!

MEU DEUS!

Nem acredito que enfim estou conseguindo ter uma conversa esclarecedora com Raul, sem gaguejar, sem suar frio, sem criar cenários calamitosos em minha mente. Apenas os fatos sobre a mesa, e uma deliciosa troca de olhares entre mim e esse homem maravilhoso de quem estou acompanhada.

Se a Eva de hoje e a Eva de alguns dias atrás se encontrassem, elas com certeza teriam um embate de perspectivas. Os focos mudaram, os caminhos também. É incrível como o destino se alteram conforme assumimos o controle dos pilares da nossa vida.

Parece óbvio, mas nem sempre é fácil perceber a mudança nos rumos da nossa existência quando fazemos escolhas. Por exemplo, se eu não tivesse decidido vir para a casa da minha tia, eu nunca teria fechado um novo negócio, muito menos encontrado o Raul... Eu ainda estaria em Gérbera, trabalhando na ONG e sem nenhuma notícia da minha família...

— Voltei — diz ele, me despertando do meu transe.

Sorrio.

— Você estava fazendo aquilo de novo, absorta em seus próprios pensamentos — comenta.

— Eu estava pensando em como uma simples mudança no itinerário da vida é capaz de mudar tudo — digo. — Jamais imaginei que fosse viver tudo que estou vivendo quando decidi visitar minha tia.

Ele me encara, intrigado.

— Posso revelar um sentimento? — indaga ele, risonho. — Já que nós entramos nesse papo mais sentimental.

— Claro que sim!

— Às vezes, eu me sinto meio... não sei... como se eu estivesse vivendo no piloto automático, sabe? — conta. — Como se minhas ações não fossem totalmente conscientes, mesmo que sejam feitas por mim.

Respiro fundo.

— Eu me sinto do mesmo jeito... Parece que eu saio do eixo, perco o controle e vejo tudo à minha volta desmoronar...

— É estranho, né... Meio nauseante e angustiante — continua. — Só que, ontem, quando eu fui te beijar... Eu... Eu não sei, foi como se, pela primeira vez, eu estivesse agindo por mim.

Perco-me em minhas percepções e não sei mais se o que ele está dizendo é um desabafo ou uma declaração amorosa. Ou ambos.

— Fico feliz que você tenha sentido esse lampejo de alegria com uma interação relacionada a mim — falo, sem jeito, com o rosto mais corado do que eu gostaria.

Sinto que minhas emoções são muito óbvias — o que me deixa vulnerável, o que eu não gosto. Faz-me parece fraca.

Porém, não alimento esse pensamento intrusivo. Confesso que, hoje, eu estou preferindo aproveitar o momento.

Sobressalto-me quando sinto a mão dele tocar a minha.

Momento mais doce que esse somente quando nossa pizza de brigadeiro chega à mesa. O cheiro do chocolate invade minhas narinas, me fazendo ficar com água na boca.

Agradecemos ao garçom, que não se demora, e Raul começa a me servir. Nossa, ele está tão charmoso, os músculos dele salientando conforme ele desprende as fatias de pizza e as direciona ao prato.

Acho que, na realidade, ele nem está tão charmoso assim, sou só que estou com minha visão sobre ele contaminada, já que estou caidinha por ele.

SIM, ESTOU APAIXONADA POR RAUL CADENTE!

Chega de negar o óbvio.

Assim como não posso mais negar que preciso estreitar minha comunicação com Anna.

— Raul, licença, antes de comer eu preciso ir ao banheiro.

Tranco-me no banheiro e pego meu telefone para ligar para a minha melhor amiga, que deixei no escuro por tantos dias, sem notícias minhas.

— Eva? Aconteceu Alguma coisa?

— Amiga, me desculpa por ter ficado tão ocupada e não ter sido clara sobre os ocorridos na minha vida — começo, tagarelando sem parar. — Eu não só fechei o negócio com Aura, como eu também me apaixonei por um carinha e decidi ficar aqui o mês todo para me aproximar mais da minha tia.

Anna começa a rir.

— Feliz que sua vida está tão agitada, amiga. Aproveite cada segundo dessa aventura por Mavetorã.

— Você não está brava? — pergunto, hesitante.

— Nem um pouco — responde. — Aproveita bastante e não se esqueça das minhas fotos, senão aí sim eu vou ficar brava.

— Pode deixar!

Recomponho-me e volto para a mesa, onde encontro Raul de pé, olhando para o horizonte, com o semblante abalado.

— Voltei — anuncio. — Aconteceu alguma coisa?

— Uma catástrofe, Eva! — responde ele, em pânico. — Vem, precisamos voltar para a praia. Marco precisa da nossa ajuda!

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