14. Pontes Resolutórias

Acordo no dia seguinte atolada de conversas pendentes — que estou adiando sabe lá por qual motivo. Não consegui avisar a Anna que não voltarei para casa nos próximos dias, não perguntei a minha tia sobre o nosso dia juntas e, para piorar os meus pesadelos, ainda preciso ter uma conversa franca com Raul a respeito de "nós".

Nem acredito que quase nos beijamos ontem, isso não faz o menor sentido! Que cronologia é essa? Há menos de uma semana ele queria me processar e agora ele quer me beijar? É informação demais em pouco tempo para o meu cérebro processar.

Honestamente, sinto que minha vida está andando em círculos... às vezes em circos... mas nunca em ciclos estáveis de coerência. Uma repetição sem fim de acontecimentos confusos e estressantes.

Porém, mesmo com as eventuais pendências a serem resolvidas e os claros estresses batendo à minha porta, aos quais estou ignorando, me sinto animada para saber o que universo preparou para o dia de hoje — ou melhor, me sentia... até abrir a cortina e dar de cara com um mau tempo terrível. O tão apreciado sol resolveu não dar às caras hoje, acordou tímido, aninhado pelas nuvens cinzentas.

Desanimo-me depressa, e Mavetorã percebe, como sempre, ela nota tudo. Será que morrer aguça os sentidos ou é uma habilidade natural dela?

— Não gosta de dias nublados? — questiona.

— Não é isso, na verdade, eu adoro dias nublados — esclareço, voltando a passos lentos para a cama. — É que eu estava planejando marcar um encontro com o Raul hoje. Para conversar, sabe... sobre... aquilo.

— O quase beijo de vocês?

A contragosto, assinto com a cabeça.

— E como a chuva impede vocês de se encontrarem? É só água.

É, né.

— Não impede totalmente, mas ninguém gosta de sair e se molhar — respondo. — Além da possibilidade de ficar doente.

— Vocês ficam doentes com água? — pergunta, espantada. — Nossa, como as gerações atuais são sensíveis.

Solto uma risada descontraída.

— Vou checar a previsão do tempo para saber se será chuvoso o dia todo, ou se essa chuva é exclusiva para a manhã.

Vasculho pela internet e, para a minha dupla surpresa, descubro que além da chuva ser mais amena na parte da tarde, o famigerado desfile das jubartes foi adiantado para hoje!

"Segundo os pesquisadores, que somente previam a chegada das grandiosas baleias-jubartes para daqui a uma semana, elas decidiram se adiantar este ano. Estima-se que elas passem pela costa de Mavetorã hoje à tarde, onde serão apreciadas e fotografadas pelos amantes da vida marinha."

— Parabéns, Eva — diz Mavetorã sarcasticamente. — Agora você possui a desculpa perfeita para chamar o carinha lá para sair.

— Isso pareceu tão... fácil? Quase premeditado... — reflito, permitindo que minha mente faça o que sabe fazer de melhor: teorizar loucamente. — Tem dedo seu nessa coincidência, Mavetorã?

Seu rosto assume uma feição teatral.

— Talvez sim, talvez não... — responde com uma risadinha sugestiva, instaurando um suspense deliberado. — Você nunca saberá.

— Não sei se agradeço ou me preocupo — digo, com um longo suspiro. — Mas não vou perder tempo, se a oportunidade surgiu, minha mensagem também vai surgir!

Abro o aplicativo de mensagem, clico na conversa com Raul e... travo. Sei o que devo fazer, mas não sei quais palavras usar. Não quero parecer desesperada nem arrependida de ter recusado seu beijo.

Escrevo. Apago. Escrevo. Apago. Escrevo. Apago. Escrevo. Apago e...

Raul começa a digitar.

Qual a probabilidade disso?

Espero-o terminar de digitar ou mando a mensagem primeiro para parecer humilde? Espera, eu sou humilde?

Decido mandar a mensagem rápido.

"Olá, Raul. Você soube que o desfile das jubartes foi adiantado para hoje? Gostaria de ir comigo? Sinto que precisamos conversar".

No mesmo instante em que aperto o botão de enviar, a mensagem dele chega.

"E aí, Eva, tudo bem com você? É... Bom, eu queria conversar com você para esclarecer algumas coisas, poderia ser hoje? O desfile das jubartes foi adiantado para hoje, você soube? Pensei que nós poderíamos ir juntos".

Mavetorã me encara, curiosa, ao mesmo tempo em que eu encaro, incrédula, a tela do meu celular, lendo a mensagem e tentando decifrar os sinais implícitos nas palavras.

— Olha que surpreendente, nós dois tivemos a mesma ideia — comento, encarando a entidade fofoqueira ao meu lado.

— Nem é tão surpreendente assim, não foi ele que te convidou para ir assistir ao desfile primeiro? — relembra Mavetorã.

— Bom... Sim. Mas não pensei que ele fosse se lembrar.

— Se ele está gostando de você, então é claro que ele se lembraria de algo que ele mesmo propôs! — bufa Mavetorã, precipitada.

Raras foram as vezes, nesses poucos dias, em que senti a entidade que me segue tão afoita. Pergunto-me se, de fato, ela gosta de mim, ou se apenas me tolera porque sou a única que pode ajudá-la...

— Por que você está tão impaciente hoje, hein? — pergunto.

— Não gosto de pessoas muito enroladas e você é extremamente enrolada em tudo — revela ela. — Qual é a dificuldade em agir? É a sua vida, as decisões estão em suas mãos.

— Espera, o quê? — exclamo, chocada.

— Isso mesmo! Qual é a dificuldade de ligar para Anna, sentar com sua tia no sofá e chamar Raul para sair e revelar tudo o que sente?

— Você só está falando isso porque você é um espírito, é bem mais fácil pensar assim quando não se precisa encarar os problemas na prática — rebato, furiosa.

— Papo de covarde — retruca Mavetorã, se virando e saindo do quarto. — Se eu fosse covarde assim na minha época, não teria nem chegado à fase adulta.

— Você não pode jogar uma bomba dessas no meu colo, se virar e ir embora como se nada — digo em voz alta, irritada, indo atrás dela.

Ao abrir a porta, no entanto, não é Mavetorã quem eu vejo.

É a minha tia.

Com uma feição que pode ser descrita como uma clara mistura de dúvida, preocupação e medo.

— Querida, você está bem? Com quem está falando?

Juro que tudo que eu mais quero agora é que um buraco se abra embaixo de mim e me engula. Centro da terra, outra dimensão... Não importa o destino. Eu só queria fechar os olhos e desaparecer.

Eu nem sei como começar a explicar isso.

— Ah, oi, tia — cumprimento, sem graça. — Bom dia, como a senhora está? Dormiu bem?

— Eu estou ótima — diz. — Quem não parece bem é você.

— Ah, não, eu estou tão bem quanto a senhora — minto descaradamente. — Eu estava apenas resolvendo mais um problema de trabalho. Não é fácil gerenciar uma ONG, ainda mais quando fechamos contrato com novos parceiros.

Pela expressão em seu rosto, acho que ela acreditou.

Eu deveria me preocupar por até eu ter acreditado nessa mentira?

— Sei que você é responsável com seu trabalho, mas não permita que suas responsabilidades tirem sua paz — aconselha. — Você deveria vir comigo às aulas de ioga, elas são muito eficazes no controle ao estresse.

— É uma boa ideia, poderia ser esse o nosso dia de tia e sobrinha — jogo a isca propositalmente, assim como Mavetorã me aconselhou a fazer minutos antes, embora eu suponha que ela quisesse que eu fosse mais incisiva.

Tia Susana se sobressalta.

— Ah, minha flor, eu esqueci completamente do nosso dia juntas, é verdade... — diz, levando a mão ao rosto em sinal de negação própria. — Você vai embora em alguns dias, não é? Posso tentar remarcar alguma aula para...

Interrompo-a.

— Bom, tia, sobre isso... — começo, levemente hesitante. — Eu preciso avisar que eu decidi adiar minha partida. Gostei tanto da cidade que resolvi ficar o mês todo. Tudo bem?

Ela suspira aliviada.

— Está perfeito, minha querida — assente. — Assim, teremos mais tempo juntas e poderemos marcar uma saída com mais calma.

— Com certeza, tia — falo, mais tranquila. — A propósito, a senhora poderia me emprestar aquele seu livro com as histórias de Mavetorã?

Ela, então, me olha desentendida.

— Que livro?

— Aquele que a senhora costumava ler para mim, quando eu era criança, não se lembra? — rememoro, olhando atenciosamente cada parte das minhas memórias. — O da capa azul, com uma figura no meio, nuvens e flores.

— Não me lembro desse livro em específico — indica ela, pensativa. — Mas posso procurá-lo pelo meu quarto e até mesmo no quartinho da bagunça. Eu guardo muita tralha por lá.

— Seria ótimo. Obrigada, tia.

— De nada, minha flor — fala, me beijando na testa e saindo para mais uma das suas milhões de aulas.

Espero alguns segundos até que ela esteja longe o bastante para que não me escute e só então começo a falar.

— Mavetorã, aparece! — digo, atenta.

— Viu só, não arrancou pedaço ser franca sobre seus sentimentos — alfineta a entidade, me encarando com a testa franzida. — Mas bem que você poderia ter sido mais direta, né. Quanta enrolação só para dizer que ela se esqueceu de você.

Eu não disse?

— Foi o melhor que pude oferecer — respondo secamente.

Ela revira os olhos e se afasta lentamente.

— Já confirmou a saída com o Raul?

— Sim, ele vem me buscar de moto, lá pelas duas horas.

— Já podemos dizer que essa moto teve e continua tendo um papel fundamental no romance de vocês? — indaga Mavetorã. — Não importa a circunstância, ela sempre está presente!

Reviro os olhos e ignoro o comentário inconveniente feito pela entidade ao meu redor, enquanto me dirijo à mesa para apreciar o meu café da manhã.

***

Termino de me aprontar no mesmo minuto em que escuto a buzina da moto de Raul soar em frente à casa. Como não pretendo tomar banho de praia, decido não levar biquíni, visto um short jeans e uma blusa branca comum. Não esqueço os óculos de sol, o protetor solar e nem a estátua de Mavetorã, todos guardados em minha ecobag.

Apesar de não gostar de sair com uma estátua de diamantes mágica por aí, torna-se necessário o esforço, uma vez que estamos em busca do filho perdido da moradora da estátua. Eu só preciso me lembrar de não tirar os olhos dela.

Caminho até a saída, apreensiva. Não sei o que esperar, mas, internamente, eu sei que nossa interação vai ser constrangedora. Como se fosse uma situação predestinada.

Ironicamente, estou calma.

Inalo. Exalo. Inalo. Exalo. Inalo. Exalo. Até estar completamente visível por ele.

Do alto, eu encaro o homem de capacete, vestindo o que, a meu ver, parece um pijama: uma regata branca simples, que salienta seus músculos bem definidos, uma bermuda vermelha com estampas floridas muito sutis e um chinelo.

Julgo-o mentalmente por meio segundo, até sentir o calor que havia tomado conta da cidade algumas horas antes, quando a chuva foi embora e deu lugar ao mormaço.

Mantenho-me calma.

Ele está parado, atento a mim. Parece encarar, vidrado, cada detalhe meu, de cima a baixo. Zero constrangido de tal feito, graças à sensação de segurança que o capacete proporciona.

Eu gosto.

Aproximo-me devagar, permitindo que meu cérebro crie frases curtas para serem ditas no intuito de quebrar o gelo — um gelo produzido ontem, e que ainda não descongelou.

— Oi, Raul — digo em voz baixa.

— Oi, Eva — diz ele, assentindo levemente com a cabeça.

Sinto um aquecimento percorrer meu corpo. E me sinto bem.

Raul desprende o capacete, anteriormente preso por uma rede na parte de trás do banco, e me entrega. Seus gestos curtos deixam claro que sua vontade não é de conversar aqui.

Compreendo-o.

Coloco o capacete e me preparado para subir, quando, de repente, um dos meus medos se concretiza: tia Susana me vê interagindo com Raul na porta da casa dela. Por conhecê-lo bem, ela não hesita em se aproximar e falar.

Tudo bem, não é que eu não confie no julgamento dela, mas ela é amiga de Aura, que é mãe de Raul e... sei lá. Tenho certeza que esse encontro vai ser pauta de conversa e, embora eu seja extremamente profissional, temo que Aura e Edgar cancelem a parceira se acharem que tenho terceiras intenções com o filho deles — e, com terceiras intenções, eu me refiro a dar um golpe.

— Eu não sabia que vocês estavam assim... tão amigos... — comenta ela, se aproximando, curiosa.

Mas, dessa vez, meu cérebro age com rapidez.

— É que ele se ofereceu para ser meu guia — respondo, tentando passar o máximo de veracidade. — Estamos indo assistir ao desfile das jubartes agora!

— Ah, é verdade! — exclama. — As meninas lá da ioga estavam comentando que as baleias se adiantaram este ano.

— Boa tarde, tia — cumprimenta Raul, com sua voz saindo abafada por causa do capacete.

É estranho vê-lo chamar a minha tia de tia. Mas meu cérebro rapidamente entende que é por causa da afetividade. Ela o viu crescer, e ele, com certeza, possui carinho por ela.

— Boa tarde, querido — responde, apertando o ombro dele. — Bom, eu não quero atrapalhar o cronograma de vocês. Divirtam-se!

Agradeço, subo na moto e dou sinal a Raul para que ele parta o mais depressa possível, nos afastando daquela situação constrangedora.

Ele nada comenta, mas deve ter sentido meu nervosismo mediante à presença da minha tia e as ramificações estressantes que isso pode implicar.

Ele não é idiota.

E nem eu.

Esperaremos até que finalmente estejamos em um lugar confortável, para que possamos tocar nesses assuntos delicados.

Em todos os assuntos delicados.

Todos mesmo.

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