𝔓𝔯𝔢𝔣á𝔠𝔦𝔬
♰
Prefácio
Diabolus simia Dei, um prelúdio.
Por Olivia Didion.
Sobre uma observadora, o seu objeto de análise e um nó diabólico.
Um nó é constituído por três partes: são necessários três seminós para finalizar uma das tarefas basais de nossa construção funcional como ser humano autônomo.
O primeiro tem a função de contenção, com o objetivo de aproximar as estruturas das cordas. O segundo deve promover a fixação do conjunto e o terceiro tem a finalidade de unir, fazer a segurança deste nó.
E todos os seminós que fazem parte desse enrosco mítico estão mortos.
A primeira vez que eu ouvi falar sobre o caso "nó do diabo", tinha cerca de 12 anos. Foi em um desses acampamentos de férias de verão, onde as crianças se reúnem ao redor de uma fogueira, contando histórias macabras, vestidas em seus pijamas de algodão com estampas inocentes, poucas horas antes de um profundo sono que quase nunca vem de imediato após o renovo dos assombros e dessas criaturas míticas que povoam os pesadelos, Stephen King acabara de lançar It e tudo ainda tinha aquele mesmo frescor aterrorizante e pouco saturado do slasher de TV (carnificina, juventude e sedução).
Tudo fazia parte do ritual sombrio que era crescer: você ouvia histórias, você alimentava medos e aguçava a curiosidade. E ali, pela primeira vez, soube sobre a jovem Sade Dunne, que havia sido assassinada de forma misteriosa em um prédio que veio a ser conhecido, anos depois, como o amaldiçoado edifício G. Talese, por uma criatura cujo rosto, o nome e a natureza, nunca foram, de fato, identificadas.
A história se manteve comigo durante todos os anos de meu amadurecimento, até relembrá-la, em uma visita a biblioteca da faculdade, ao bater os olhos sobre a capa de um livro que indicava o autor em destaque: Infortúnios da Virtude, por Marquês de Sade.
Lendo mais sobre a vida de Dunne, entendi a origem nefasta de seu nome, justificável, com base nas vivências de seus pais e a liberdade política e sexual com que foi criada em épocas ainda tão conservadoras, livre de freios morais.
A mãe, Kyoko, chegou a fazer parte de uma seita durante o fim dos anos 60, até a sua morte, pouco antes da primeira década de Sade (em entradas de diário, Dunne relata suas visitas a este lugar conhecido como Céu Vindouro, um rancho ao Sul da Califórnia, liderado por um homem que atendia pela alcunha de O Filho-Luz.) O pai, Atticus Dunne, um famoso escritor da época (ligado ao movimento Beatnik dos anos 50), dedicou-se a investigar a misteriosa morte da esposa, seguida da filha, quinze anos depois e em um roteiro cíclico.
Hoje, tenho, pelo menos, dez anos a mais que Sade Dunne em seu último aniversário e nasci dois anos após a sua morte. Também compartilhamos algumas similaridades triviais, como a mesma profissão — jornalistas, contadoras de histórias, colecionadoras de palavras —, um signo zodiacal idêntico e um desenho na pele no mesmo lugar: uma pequena abelha tatuada na nuca.
Em muitos momentos, me vi nesta jovem mulher enquanto lia suas anotações e reunia as informações sobre sua vida: sua curiosidade, seu fascínio pelo desconhecido, seu desejo de contar o que parecia real e palpável diante das próprias retinas, até mesmo de suas questões paternas (estar a sombra de um sobrenome que cobrava-lhe tudo, até mesmo a saúde mental). Sade carregava muito do que a jovem Olivia também questionava nesses anos iniciais da vida adulta. Sade Dunne ainda era a menina no acampamento de férias, obcecada com a história de terror contada em voz alta por algum dos colegas que adormecia tranquilamente na cama ao lado.
É difícil encontrar registros sobre a manobra inicial que desencadeia uma obsessão, o primeiro contato luminoso com o nosso objeto oculto de intensa observação, quando a fagulha dá início ao incêndio que deserta sombrias paixões dentro de nós, e este mesmo fogo consome os filtros de nossos pensamentos, de nossos interesses e nossas motivações. Nossos olhos deitam-se sobre uma ideia, um mapa traçado com uma substância inflamável que guia-se diretamente para o fogo, rumando até os declínios eminentes que se consomem lentamente. Aniquilando os mundos dourados de possibilidades em uma única e azulada flâmula.
Sade era uma voyeuse, (em muitas passagens de suas anotações, Dunne afirma sentir prazer em assistir as relações sexuais de seu vizinho. Por várias vezes, relatava-as em detalhes, masturbando-se com as cenas que costumava presenciar, e ponderava, com base nos comentários das babás durante a infância e dos professores da escola católica, a possibilidade de ser uma ninfomaníaca, termo que abertamente abominava), mas a maioria de suas reflexões, tocava em questões sobre a solidão, o desencadear da tristeza sazonal humana e de uma vida sem fluxo verdadeiro (citava as horas de trabalho exaustivas que ela mesma e seus objetos de estudo compartilhavam, afirmando que o capitalismo lhe dava pouco mais do que duas horas diárias para ser ela mesma).
Suas personagens — os vizinhos —, aos poucos, distanciavam-se dos papéis que costumavam interpretar, e todo o seu foco, seu direcionamento e interesse, pairavam na figura de um protagonista autoimposto.
De algum modo, todos somos voyeurs a algum nível. As redes sociais permitem que estejamos nessa posição segura e distante de observação silenciosa, através de uma janela espelhada, um dispositivo telado, onde vemos aquilo tudo que o outro mostra, mas também, o que não quer mostrar, e indiscretamente, estamos aptos a assistir quando acessível.
É um desejo primitivo e voraz, faz parte de nossa natureza, assim como a do nosso Criador, que nos observa de sua distância Celestial e Santificada. Ou dos anjos em paralelos de realidade espiritual, observando de perto nossos pecados e pensamentos mais sórdidos.
Eu fui uma voyeuse de Sade Dunne durante meses. Enveredando por sua vida indiscretamente; a criatura mítica de cabelos acobreados que me encarava de volta na foto de sua autópsia, ainda de olhos abertos, nublados, como quem presenciou o paraíso sentindo o sabor amargo de um veneno penetrando nas veias com um beijo da morte (na imagem 2. A boca de Sade parece ter sido mordida, é possível ver o formato de uma arcada dentária ao redor o seu lábio inferior.)
Ainda mantenho a foto comigo: uma fotocópia do acervo policial, onde seu corpo, desfigurado, não encontra vínculo com a menina sorridente da foto do anuário da Academia Católica de Santa Lúcia, em 1975.
Algum mistério já permeava a Dunne-menina. Uma marca sutil que a diferenciava das outras criaturas ao seu redor, sem aquela característica apalermada como um sutil presente da puberdade. Os anos estéreis de nossa juventude sem forma, para a jovem Dunne, crua e selvagem, eram parte de seu mistério azul.
Entre todas, são seus cabelos, seus olhos tristes, sua postura direcionada à câmera, como se observasse de volta quem a observa com cautela, vestida em um uniforme padrão, que se destacava ali.
A marca de Caim em um registro cármico nas tábuas de seu destino, condenando-a a algo maior.
Entenda, não estou aqui validando um ponto de culpabilizar ou aprovar o comportamento de Sade diante dessas questões que são, sim, questionáveis. Mas todos nós estamos moralmente condenados sob a perspectiva desse viés, essa sede da vida alheia é o que torna a vida interessante.
Veja bem, lemos um livro, assistimos um filme, vemos uma notícia para nos informarmos sobre a vida de outras pessoas.
Realities shows existem com essa finalidade obscura. Nossa vida é constituída e se move a partir de fragmentos de terceiros: sejam dos nossos pais ou dos nossos amantes. Tudo gira em torno de consequências de outras vidas, que refletem na nossa. Você está aqui, lendo estas páginas, por pura curiosidade.
Mas devo dizer que a atração de Dunne pelo predador (vamos chamá-lo assim) também tocava em minhas narrativas sentimentais. Muitas vezes, me via imaginando esse enigmático homem através da janela de sua casa, a profundidade imersiva dos olhos sem cor, a perfeição nivelada de uma pele que parecia não exibir um traço humano: pelos, poros, suor ou lágrimas.
O mínimo que nos deixa identificar a natureza de um igual.
Real ou imaginário, Sade trouxe à tona a existência desse indivíduo peculiar, que assistia através de sua perspectiva, a quem ela acreditava ser uma espécie de criatura sobrehumana, de uma insistência obsessiva e perigosamente sedutora, até mesmo nos mínimos movimentos (como o pentear dos cabelos diante do espelho, o ajuste da camisa de botões rente a janela, a postura que parecia manter, tal qual um homem de modos polidos de uma outra época; um dândi ou um fidalgo, além de uma aparência muito jovem para um professor universitário. Mal parecia ter passado dos vinte e sete), na sua obsessão por anjos e imagens religiosas (criaturas pérfidas e traiçoeiras quase sempre são obcecadas pela beleza do mundo do qual não conseguem se encaixar), mas era o êxtase que provocava em suas companhias, nas figuras que surgiam e também desapareciam das vistas, sempre de olhos fechados, mergulhadas em um profundo sentimento, um feitiço, o close-up de prazer que os cineastas nos dão para provocar o pulsar do desejo, as proezas da nossa imaginação do outro lado da tela, aguçadas pelas manobras cinematográficas.
Sade também acreditava que o predador era capaz de ler sua mente ou invadir seus sonhos como um demônio milenar, incubus (Em alguns trechos, Dunne relata a presença do predador no apartamento, e tem dificuldade em dissociar a realidade da imaginação, já que conseguia senti-lo em todas as partes do seu corpo até mesmo durante suas relações sexuais com outros individuos, entre eles, o investigador Kim).
O que nos assusta, muitas vezes, nos causa uma espécie de encantamento. É como uma observação exacerbada e minuciosa: mantemos os olhos ali até decifrar o medo, entender suas propriedades, suas fontes de origem, desvendar o interior de sua matéria, os gatilhos que estremecem nossa espinha dorsal. Dissolvê-los até que percam sua eficácia.
Por muito tempo essa história me assombrou, e tentei, de maneira quase irracional, desvendar a matéria mais profunda do medo e extrair suas raízes. E conhecê-la, talvez, tenha sido parte de um processo ainda maior que envolvia dar a Sade Dunne, uma versão final dos rascunhos sussurrados que tentou transformar em fala audível e clara. Dunne foi silenciada, se tornou uma lenda: virou canção de rock, sua foto ilustrou capas de álbum de bandas famosas e teve seu nome atrelado à culpa quando foi apenas uma vítima. A falácia consagrada de mulher fatal que seduz inocentes rapazes rumo ao sacrifício: coração, alma e pulmões condenados. Sangue extirpado das veias na mais cruel das intenções. Carne pútrida pelo simples toque feminino, feito um selo de separação demoníaco. A Lilith que devorava os homens à medida que arreganhava as pernas. Ou todas as outras versões escusas que passearam pela mente dos cidadãos da pequena Carnival Kane.
Das três partes deste nó que são constituídas por Taehyung, Namjoon e Sade, ela é responsável por aproximar as estruturas, a mitologia da intrigada versão real, o envolvimento destes jovens em um crime do qual foram apenas personagens. O resto faz parte apenas do acervo folclórico de um conto de desgraça.
Durante a reunião deste material (documentos oficiais da investigação, autos do processo, recortes de jornais da época, páginas e páginas de anotações pessoais de Sade Dunne, que sofreram pequenas alterações para preservar o sentido da narrativa, já que muitas vezes, citava envolvidos no caso por alcunhas particulares), dispostas em ordem cronológica e com alguns comentários pontuais de minha parte, indicados em notas paralelas, possibilitando compreender, pela perspectiva da mente de uma jovem mulher, os acontecimentos reais daquele fevereiro de 1985.
Carnival Kane, Olivia Didion, ph.D.
11 de Agosto de 2022.
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