Capítulo 3

Faz um ano desde que aquilo aconteceu, bem, não um ano exatamente, mas é o que digo para as pessoas, e é o que digo a Gabriel nas poucas vezes que falamos sobre isso. Ambos tentamos disfarçar como se fosse algo sem importância, mas ambos sabemos que fazem exatamente, 1 ano, 3 meses e 8 dias desde que aconteceu.

Não tivemos nenhum outro incidente assim, Gabriel sempre ri quando digo isso em voz alta para minha mãe ao telefone, se referir a ser agredido até o ponto de ir parar em um hospital como "incidente" deve ser o tipo de comentário de alguém sarcástico, ou de alguém cansado. Eu sou o segundo.

Quando olho para toda essa água salgada a minha frente, iluminada pela luz do luar eu não consigo ver a beleza que costumava ver antigamente.

Tudo o que vejo aqui são flashes daquela noite, imagens de Gabriel sendo espancado. Assim como toda vez que ando sozinho por alguma rua escura ouço a voz do homem que me estuprou em minha mente. Assim como toda vez que entro em uma lanchonete posso ouvir a voz da repórter dizendo que Leon foi encontrado morto perto da faculdade, que a morte havia sido causada por múltiplos golpes na cabeça e no corpo e que no muro próximo ao local estava pichada a frase "A bicha suja teve o que mereceu".

Gabriel aperta minha mão com força me trazendo de volta a realidade, posso ver em seus olhos que ele sabe o que estou pensando, ele sempre sabe.

"Pode chorar, se quiser" ele me diz

"Chorar é inútil, lágrimas são inúteis, apenas água e sal" respondo sério.

"Não tenho nada contra água e sal, é uma ótima bolacha" ele diz com um sorriso, e eu não consigo evitar sorrir também, esse é outro motivo pelo qual eu o amo. "E eu também gosto muito do mar." Acrescenta, mais sério.

"Eu não consigo entender como você ainda pode gostar daqui depois de... sabe... tudo."

"Homofóbicos já tiraram coisas demais de mim, não vou deixar tirarem o mar também." Ele sorri de um jeito triste.

Ouvir essas palavras me faz pensar que ele talvez esteja certo, ainda assim, eu não consigo evitar as náuseas quando lembro dos gemidos de dor que saíram de seus lábios naquele dia. Gabriel parece perceber isso. Ele passa o braço ao redor de minha cintura, e eu faço o mesmo, depois de ficarmos um tempo calado ele finalmente fala:

"Minha primeira vez foi aos 14 anos." Fico confuso com a mudança de assunto e coro um pouco com a informação. "A primeira vez que me bateram por ser gay." Corrige ao perceber que interpretei errado, não sei o que dizer, mas ele não espera que eu diga algo. "Eu tinha começado a namorar com um menino um ano mais velho que eu, Pedro. Um grupo de garotos do colegial viu a gente de mãos dadas, eles nos bateram o suficiente para nos deixar inconscientes e receberem uma ordem de expulsão imediata."

"Eu sinto muito." É tudo que sou capaz de de dizer, ele sorri e me abraça mais forte.

"Eu sou quem deveria sentir muito." Olho para ele surpreso com a afirmação, como ele deveria sentir muito por ser espancado? Ele suspira e continua, " Eu deveria sentir muito pelo covarde que fui na época. Depois daquele dia, eu abandonei Pedro, eu fugi, passei anos fingindo ser hétero."

"Você só tinha 14 anos..." Tento dizer mesmo sabendo que essa não é uma desculpa valida.

"Não importa a idade, eu sabia o que estava fazendo, fui covarde e ponto."

Passamos mais um tempo calados apenas olhando para o mar a nossa frente.

"Por que você me contou isso agora?" Pergunto finalmente.

"Você sempre confiou em mim." ele diz, "Esse é o meu jeito de dizer que confio em você também, meu jeito de dizer que te amo."

Ele me abraça e nós nos beijamos longamente. Nossos lábios se separam e eu involuntariamente olhei ao redor esperando que alguém nos atacasse. Não que isso fosse comum, eu sei que nem todas as pessoas do mundo são homofóbicas, já conheci gente boa o suficiente para comprovar isso, é só... esse lugar.

Os únicos outros ocupantes da Praia são dois casais mais próximos ao mar, mas eles não parecem se importar com o que estamos fazendo.

Gabriel sorri pra mim e eu sorrio de volta, ele aproxima seus lábios dos meus e eu fecho os olhos esperando por seu beijo, porém, em vez de me beijar, ele segura meu braço e me puxa, me fazendo cambalear um pouco. Me dou conta de que ele está me arrastando para perto do mar."

Sinto meu tênis encher de água, quando ele me arrasta até a parte rasa do mar. Por algum motivo eu sinto que esse é exatamente o mesmo ponto em que eu caí aquele dia. Sinto o meu estômago embrulhar ainda mais.

"Por que você insistiu em me trazer aqui?" Pergunto um pouco seco.

"Para isto." Ele se ajoelha sobre um joelho na minha frente e retira uma caixinha do bolso da camisa, e então a abre revelando uma aliança de prata. "Você quer se casar comigo?"

Fico em choque por um momento e então grito um "Sim", tão alto que até eu me surpreendo. Gabriel coloca a aliança em meu dedo, se levanta e me abraça nós nos beijamos brevemente e quando nos separamos, ele começa a dançar algo que chama de dança da felicidade e consiste em vários passos aleatórios. Ouço palmas e vejo que os outros casais da praia estão nos aplaudindo.

Aqui, nesse momento, realmente consigo ver que as pessoas não são tão ruins, que o mar não é tão ruim...

Sinto o gosto de água salgada quando uma das minhas lágrimas correm para minha boca, eu nem havia percebido que estava chorando, essa é a primeira vez que choro de felicidade...

E finalmente percebo que talvez chorar não seja tão ruim...

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top