14| Vinte e quatro de junho

Era a sexta feira da primeira semana de férias e o dia estava ensolarado, o horizonte já marcava os primeiros traços do recém chegado verão.

Parecia mais um dia comum em que as pessoas simplesmente acordam para admirar o verão.

Vinte quatro de junho era nosso aniversário, e para não perder o costume, que fizemos desde os cinco anos, íamos à sorveteria “home honey's”, onde antes era o bar que nossos pais se conheceram.

Todos os anos, não deixávamos passar um, nós íamos até lá e pedíamos o “Belgian caramel” e coca de cereja na mesa seis.

Harry estava sorrindo aos quatro ventos porque, achava eu, Dayse finalmente tinha aceitado seu pedido de namoro.
Meu melhor amigo se apaixonou por ela desde que colocou seus olhos na pequena recém nascida, ele ainda tinha cinco anos e já dizia a todos que seria a namorada dele um dia.

Sempre senti ciúmes da minha irmã, mas não achava nada estranho que meu irmão de coração namorasse minha irmã de sangue, pois, eu sabia que os dois se amavam mais do que poderia compreender um dia.

— Estava pensando que nunca demos um presente um para o outro. — lembro da sua voz alegre e ansiosa no meio de uma canção do Kansas que soava baixo no computador dele. — Em nenhum dos anos.

Nós nascemos no mesmo dia, no mesmo hospital e embora de mães diferentes, éramos irmãos.

Harry sempre teve essa capacidade de amar os outros com a alma, era intenso e indescritível o quanto a nossa amizade parecia um vínculo sanguíneo de séculos.

— Eu não comprei nada para você.

— Eu sei que não. — Ele não parecia desapontado, inclusive estava muito mais feliz do que todos os anos antes. — Mas, eu queria te dar algo que fosse especial para mim, porque… bem, acho que é isso que presentes significam.

— Você comprou alguma coisa? — perguntei nervoso por ser algo que não fazíamos.

— Não. — admitiu ele. — Mas, eu queria que fosse sua.

Muito confuso, eu vi o garoto se levantar, ir até a parede e arrancar do suporte, sua guitarra vermelha.

— Harry… Eu não posso aceitar.

— Por favor, você tem que aceitar.— Ele me entregou, insistindo, e eu aceitei receoso. — Meu pai vai me dar outra quando as aulas começarem e eu não vejo essa gracinha com outra pessoa.

Achei estranho essa atitude, porque a guitarra era uma parte dele assim como seus braços e pernas. Meu primeiro erro nesse dia, foi não ter lhe questionado mais.

— Você tem certeza? — Perguntei sem nem ao menos desconfiar. — Você pode se arrepender depois…

— Só se você não for cuidar bem dela, aí vamos ter um grande problema!

— Eu vou cuidar. — Lhe garanti. — Não se preocupe.

No mesmo momento, tirei minha jaqueta de couro que era muito especial para mim também.

Era o último presente da minha mãe antes dela partir e ele sabia o quanto era importante.

— Também quero que tenha algo meu. — Afirmei estendendo para ele.

Os olhos do garoto se encheram de lágrimas e eu pensei que ele fosse desabar na minha frente.

Ele não o fez tão depressa, tentou lutar para não se mostrar fraco.

Me abraçou e me agradeceu por todos os anos, como se fosse o último abraço.
Nesse dia, eu também chorei com o quanto aquele momento pareceu uma despedida, eu me lembro de pensar que não conseguia imaginar uma vida em que Harry não existisse.

— Eu não vou embora, bobinho. — lembro dele me tranquilizar, chorando um pouco mais do que eu.

E depois de chorarmos, seguimos a tradição de aniversário.

Eu estava feliz, porque de todos os anos que passamos juntos, Harry nunca sorriu tanto.
Ele parecia realizado, parecia que não lhe faltava nada naquele dia.

Devíamos só ter ido para casa, mas ele queria ver a vista da cidade e eu não queria que a noite acabasse.

Esse foi meu segundo erro.

Como era nosso aniversário, encontramos o prédio mais perto e silenciosamente subimos todos os andares como se fossemos moradores regulares.

Chegamos até a comprimentar uma senhora do nono andar.

— Vocês jovens adoram usar drogas e beber. — Lembro que a senhora disse nos repreendendo.

— Ah não! Mas nós não somos esse tipo de jovens. — Harry respondeu a ela. — Nós preferimos aproveitar a vida vivendo, não é Jon?

E então a senhora riu e lhe passou uma benção.

Quando chegamos ao terraço, bebemos e fumamos maconha rindo do acontecimento, ironizando o quanto as pessoas se prendiam a cuidar da vida alheia.

Harry era assim, leve, as coisas fluíam com ele de uma forma que nunca fluiu com ninguém.

Já escutamos pessoas que nos perguntavam se éramos namorados, mas nunca nem pensamos nisso.
Éramos tão amigos que a ideia soava inacreditável.

Nosso aniversário era o melhor dia do ano, quando estávamos só nós dois, sem as comemorações tradicionais que envolviam bolo, pessoas e muita festa, nos sentíamos aliviados por podermos ser quem éramos de verdade.
Por isso que sempre passamos essa data longe da família.

Aquela noite em específico, o céu estava mais bonito, as luzes em contraste mais brilhantes, naquela hora, olhando a cidade embaixo, ele começou a falar coisas desconexas que sempre falava quando estava bêbado e drogado, nós dois fazíamos isso e depois riámos de como, mesmo falando coisas que não tinham o menor sentido, nós nos entendiámos.

Eram coisas engraçadas, do tipo porque golfinhos se parecem com uma vírgula.

Ou porque a gente era tão pequeno em relação a tudo ao nosso redor.

Sempre fomos muito conectados, ele tinha a minha alma e eu tinha a dele.

Eu me lembro de cada detalhe naquela noite, cada palavra, cada trago no back mal amassado.

Me lembro que foi uma fração de segundo, quando fechei os olhos sentindo a brisa, que Harry ligou para o pai em uma ligação que não durou muito.

Na verdade, uma frase.

Eu amo muito você pai, diz pra mamãe que eu também amo muito ela”

E quando eu abri os olhos porque estranhei o silêncio, meu melhor amigo estava na beirada do terraço.

Eu me levantei, rindo porque pensei que era uma piada, rindo porque estávamos drogados, rindo porque meu irmão jamais faria isso.

Meu terceiro erro.

Porque Harry estava com os olhos perdidos e chorosos, não estava lá comigo, não era ele que estava lá no terraço.

Eu não sei quando meu melhor amigo se perdeu, não tive nem a chance de notar quando ele não queria mais viver.

Mas aconteceu, tão de repente, que entrei em pânico.

Meu coração doeu e eu não tive a menor reação quando vi que não era uma brincadeira.

O coração dele estava quebrado, eu não havia percebido antes, mas seus olhos eram a pura reflexão da sua alma.

E eles estavam perdidos, muito mais do que eu poderia compreender.

— Me desculpe, Jon… Me perdoe…

Foi tudo o que ele disse, foi um mero pedido de perdão antes de se jogar de doze malditos andares.

Ele pediu perdão antes de se jogar para morrer.

Eu não pensei em ir até a beira, não.

Eu corri, por doze lances de escada, pulando de dois em dois degraus e me perguntando a cada um deles o porquê.

Porque com ele?

Desesperado para chegar a tempo, mesmo sabendo que não chegaria.
Eu esperava que pelo menos chegasse lá e visse que foi tudo uma alucinação, esperava que minha mente tivesse me enganado.

Mas Harry estava lá.

Jogado no chão em uma posição inumana, uma poça de sangue se formava por trás de sua cabeça.

Ninguém na rua vazia sequer notou, ninguém estava lá quando eu o peguei nos braços chorando e implorando para que ele acordasse.

Implorando por um milagre quando eu nem mesmo acreditava em Deus.

Mas ele tinha pulso.

Harry tinha pulso, ele estava vivo…

Tudo o que eu fiz foi colocá-lo no carro, e correr com ele para o hospital mais próximo.
Porque seja quem lá em cima, tinha me dado outra oportunidade.

Não sei como tirei forças para levá-lo ao carro, nem me lembro de como nem porquê fiz isso, mas a quem diga que a adrenalina é a pior droga que nosso cérebro produz.

Naquele momento não havia nem mais um resquício de álcool no meu sangue, tudo o que eu pensava era em Harry, no seu corpo e em quanto sangue já tinha perdido na calçada.

Eu acelerei como se não houvesse amanhã, porque tudo o que eu queria era mantê-lo vivo, se Harry morresse eu sabia que eu também estaria morto.

Meu quarto erro.

Corri como se para salvar minha própria vida, mas, mesmo que eu tenha me esforçado e lutado por ele, uma Saveiro preta bateu na nossa lateral, sem que eu visse, porque tudo o que eu via era um fim que eu não queria encarar.

O carro foi arremessado por uns bons metros, e tudo o que sentia era medo.
Nunca senti tanto medo na vida, a ideia da perda nunca tinha doído tanto.

Toda a esperança que tive quando senti o coração do meu melhor amigo pulsar entre os meus dedos, se foi.

Não havia mais chance.

Harry estava morto.

Meu irmão estava morto e era culpa minha.

Enquanto eu havia fraturado o braço, ele estava morto.

Eu não morri com ele, não.

Desejei ter morrido, quando seus pais chegaram desesperados ao hospital, quando eu vi esperança nos olhos da senhora Davies assim que os médicos disseram que só um havia sobrevivido.

Meu coração se foi quando ela chorou segurando as mãos do filho que eu tinha matado, quando ela pediu a Deus de joelhos que tudo fosse um sonho.

Doeu quando ela olhou para mim com tudo nos olhos, um olhar parecido ao que Harry tinha me lançado.
Me rasgou o peito quando a culpa pesava para mim.

Ela queria que o filho dela estivesse vivo, e eu queria ter morrido no lugar de Harry.

Eu nunca disse para eles o que aconteceu naquela noite, tudo o que sabem é que Harry morreu em um acidente de carro causado por mim.

Nunca disse a eles que ele pulou de um prédio.

Era duro demais para uma mãe e um pai escutar que o filho tentou suicídio.

Não queria que essa fosse a última memória que tivessem dele, porque era a minha e doía pra cacete.

Harry teve morte cerebral e embora eu tente me convencer de que ele já estava morto antes mesmo de batermos, não conseguia.
Para mim sempre seria um marco da minha impotência, o suicídio ou o acidente.
Eu deveria ter visto que meu melhor amigo, minha outra metade da alma, estava morrendo enquanto ainda estava vivo.

Eu doei meu coração para ele nesse dia, entretanto, o meu ainda bata no peito, tudo o que eu sinto é um vazio da minha própria incapacidade.

Faz dois anos que Harry morreu, dois malditos e intermináveis anos que eu me sinto um nada, perdido no fundo de lembranças que nunca serão refeitas.

Nós dois nascemos no dia 24 de junho, no mesmo horário e no mesmo quarto de hospital.
E Harry se foi, na mesma sala de emergência em que eu continuava vivo.

Era injusto, era antinatural.
Ele era jovem e morreu antes de seus pais…

Meu irmão tinha tudo pela frente, e em um milésimo de segundo estava morto.

Não fui ao velório, e passei as férias todas trancado em casa com Dayse.

Nunca vi minha irmã chorar tanto, enquanto eu não conseguia derramar uma só lágrima na frente das pessoas, eu não era digno do sofrimento.

Quando voltei para a escola após um ano sabático, ninguém sabia o que tinha acontecido, todos diziam que eu havia surtado com o namorado da minha irmã e era só isso.

Harry não era um cara popular, tanto que nem mesmo notaram sua morte.

E ainda sim, continuo sofrendo enquanto as pessoas que compartilhavam da mesma dor estão agora tentando substituí-lo por uma garota que nem conhecem.

É demais para mim, é muito para tentar entender.

Ainda continuo parado, a dois anos atrás naquele terraço tentando compreender aquele olhar de angústia que nunca tinha estado lá.

Ainda continuo perdido nas melhores lembranças que tenho dele, dos momentos e de cada tradição que não faremos mais.

Harry perdeu a vida que tinha pela frente, jogou todos os nossos planos de fazer faculdade, morar na mesma cidade e ter filhos tão amigos quanto nós éramos.

Ele morreu aos 17 enquanto eu continuo sobrevivendo a cada ano que passa.

Cada um dos dias vinte e quatro de junho parece uma tortura na qual eu mereço, mereço por não ter percebido, por não ter notado antes.
E toda vez que entro naquela maldita escola e leio cada cartaz colorido nas paredes, tenho ânsia, cada mensagem anti suicídio nas paredes me deixa tonto.

Os cartazes só ficam lá durante o mês de setembro, mas, as pessoas não ligam nem se quer neste mês.
Meu melhor amigo morreu e embora todos pensem que foi acidente, não era importante o suficiente para que os alunos comentassem.

Só mostra o quanto uma vida é tão insignificante no mundo onde ninguém mais liga para o próximo.
Me pergunto quantas mortes por suicídio tem nesse distrito e as pessoas só se importam em contar no mês de setembro.

Me pergunto se eu não tivesse sido uma dessas pessoas, Harry estaria vivo agora.

Esse foi meu quinto erro.

Se eu apenas tivesse me atentado aos sinais…

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Notas da autora

Oioi, gente!
Em comemoração aos 12k de leitura (que veio muito rapidamente) estou postando esse capítulo de madrugada para vocês já acordarem com surpresinha 🤠

Boa leitura, votem comentem e curtam bastante!

Obs.: Se chegar aos 15k de leitura antes da semana acabar, vai sair capitulo duplo!

Beijinhos da Moranguinho 🍓❤️

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