12| Andando em círculos


— Não pode ser. — sussurrei surpresa, diante da mulher sentada preguiçosamente, com um cigarro pendente nos dedos.

— O que foi, ratinha? — Seus olhos verdes encontraram o meu em meio a escuridão, arrepiando cara centímetro do meu corpo. — Você não está feliz?

— Não pode ser real. — repeti fortemente, rezando para que não fosse.

— Se você tem tanta certeza… — um sorriso abriu por entre seus lábios, após uma longa tragada no cigarro.

Era real. O cheiro que subiu envenenou toda a minha cabeça, ácido e quente, entrou pelo nariz ardendo e ficou pelo meu corpo, tonteando meus pensamentos lógicos.

— Ratinha… você achou mesmo que eu não viria até você? — outra tragada no cigarro já pela metade. — Eu amo você, minha pequena aberração.

— Como você... — sussurrei novamente, tentando pensar de forma racional. — Tem que ir embora!

— Você não pode fugir de mim. — a cadeira rangeu e ela se levantou, meia luz do abajur iluminava suas feições chorosas. — A ratinha não pode fugir do labirinto.

— Não chegue perto! — disse quando minhas costas já estavam de encontro com a parede, ela já se aproximava com o cigarro em mãos. — Eu não tive culpa! Eu juro… por favor mãe!

— Você está feliz? — em segundos suas mãos frias estavam no meu queixo, fazendo-me encarar no fundo daqueles olhos, vazios, idênticos aos meus. — Olhe para mim… veja o que você fez.

— Por favor mãe... Eu juro que... — não havia palavras... Nunca houve.

Era milhões de explicações que faziam sentido na minha cabeça, mas diante dela e de seus castigos… se tornavam apenas sussurros vagos e sem sentido.

— Você acabou com a minha vida, sua imunda. — sua voz era tranquila, embora suas palavras fossem muito mais ácidas que o cheiro da maconha no cigarro. — Está feliz com tudo o que fez?!

— Mãe... Por favor... Ele...

— Sua vagabunda! — me interrompeu o tapa estalando no meu rosto.

— Não faça isso... Por favor...

Não havia compaixão, não havia amor nos seus olhos. Eram um profundo verde sem fim, mas não havia nada, era apenas o vazio da alma de uma mulher amargurada, incapaz de amar a própria filha.
Suas mãos que seguravam meu rosto choroso, estavam agora segurando meu braço firmemente, tentei me afastar, mas a dor tomou minha costela. Queimando.
Eu nem ao menos precisava olhar para ver seu cigarro pressionar minha pele, queimando e se apagando como uma parte de mim.
Fazendo mais uma marca na coleção de cicatrizes por todo o meu corpo.

Gritei de dor, esperando que lá no fundo eu conseguisse enxergar nos seus olhos um pingo de compaixão, mas nunca havia, nem mesmo quando a vida deixou seu corpo, não havia arrependimentos.
Apenas a mágoa e a raiva por algo que nunca foi minha escolha...

— Milenna, você é um fracasso. — sua voz fria queimando todo o meu corpo, gritei mais quando a dor já não estava na pele, mas por todo o meu tórax, esmagando meu pulmão, esvaindo todo o ar que eu precisava.

Jogada no chão, sozinha e chorando novamente.

Não era real. Não. Era. Real.

Porque doía como se fosse?

Porque eu ainda a via como se fosse?

Porque o cheiro era o mesmo?

— George! Chame uma ambulância! — Gritos que eram sussurros longe demais para que eu prestasse atenção.

Eu estava presa, dentro da minha própria cabeça fodida, e de mim não havia como fugir.
Desse monstro que morava em mim, eu não poderia escapar.

— Milenna, querida... Você tem que respirar! — a voz cada vez mais distante falava, desesperada, mas eu não conseguia mais distinguir o que era ou não real.

Tudo o que eu sentia era dor, e ela estava por todo o lugar, até nas partes onde as mãos aveludadas da senhora Davies tocavam. Tudo explodia dentro do meu frágil corpo, pulmões queimando em alto mar de mágoas e o coração explodindo como uma granada em guerra. A sensação familiar de estar morrendo me abraçando antes que tudo se tornasse trevas bem diante dos meus olhos.

Passos, por todos os lados, soavam no carpete fino.
Eu não vi quando os paramédicos chegaram, mas estavam lá, me olhando recuperar a respiração aos poucos.

Uma mulher de meia ideia segurava minha mão, respirando calmamente, pedindo para que eu acompanhasse seu ritmo.

Não havia perigo… nunca mais haveria.

— Você está bem. — A voz calmante da paramédica soou próxima, enquanto eu recobrava a realidade.

— Estou… tonta.

— É normal, dado ao que aconteceu. — explicou. — Beba.

Suas mãos deixaram a minha para entregar uma pequena garrafa plástica de água.
Me sentei, com a garganta implorando por isso, minha cabeça ainda girava quando aproximei a garrafa da boca.

A mais velha, cujo nome eu não sabia, recolheu seus equipamentos do chão olhando para mim em seguida.

— Vou falar com seus pais individualmente e vou embora. — a morena constou. — Tudo bem por você?

Assenti com a cabeça novamente, confusa do que realmente tinha acontecido ali.

Não era real…

A mulher assentiu após minha confirmação e saiu do quarto acompanhada dos meus host parent's, me deixando sozinha com o Golden deitado na cama olhando a cena toda.

Half levantou sua cabeça, me olhando animado e abanando o rabo de um lado para o outro como se dissesse um "você está bem, humana!"

Estalei meus dedos chamando-o para mais perto, vendo o mesmo se aproximar, colocando sua grande cabeça no meu colo, pedindo por carinho.

Acariciei suas madeixas me deixando levar por aquele momento, esperando que tudo isso não tenha se passado de um pesadelo e eu já acordaria.

— Ele quem nos avisou que você precisava de ajuda. — a voz de George invadiu o quarto, assustando-me, estava sozinho e a preocupação transbordava seus olhos.

— Ele é um cachorro esperto...

— Não estávamos entendendo o porquê dele ter nos latido em plena madrugada, até escutarmos seus gritos… — seu cenho se franziu ao me olhar. — Ficamos tão preocupados.

— Me desculpe... — pedi, minha voz não passando de um sussurro. — Não costuma acontecer sempre.

— Não aja como se pudesse ter controlado. — Ele se sentou do meu lado, respeitando meu espaço. — Essas coisas simplesmente acontecem quando temos dores mal curadas.

“Você não precisa nos contar o porquê.” — ele continuou. — “Mas te ouvimos falar da sua mãe…”

— Ela não foi a melhor mãe do mundo… — digo insegura do que estava dizendo. — É muito…

— Complicado? — ele perguntou me interrompendo, tranquilo, com um sorriso amigo preenchendo seu rosto. — Eu sei como é.

— Sabe? — ironizei.

— Todos temos demônios que nos assombram aqui dentro. — seu indicador tocou minha cabeça. — E não aja um dia sequer que podemos parar de lutar... A sorte é que nunca estamos sozinhos.

— Bobagem. — Sussurrei. — Todos estamos sozinhos.

— Não, não mesmo, ninguém no mundo está totalmente sozinho. — Seu queixo se ergueu. — As vezes só estamos cercados de pessoas que desconhecem a nossa dor.

“Não tem como ser ajudado sem dizer que precisa de ajuda… às vezes os outros já estão ocupados com a própria dor, mas sempre vão estar lá, basta apenas um pedido e eles estarão a disposição. É assim que sabemos que não estamos sozinhos… quando ainda que cada um tenha sua dificuldade, sempre haverá espaço para a dificuldade do outro” — Ele continuou vago, além da nossa conversa.

— Eu preciso de ajuda…

— Nós sabemos, por isso vamos ajudar no que estiver ao nosso alcance. — ele disse assentindo quando uma lágrima desceu pela minha bochecha. — Já perdemos muito nessa casa, não vamos continuar perdendo.

— Acho que não era essa a experiência que vocês esperavam.

— Você nem imagina a ironia que tudo isso é, pequena. — as palavras carregavam dor e vinha de dentro, mas eu as entendia completamente. — Descanse, ok? — assenti desistindo de falar algo. — Está tarde.

— George — Chamei-o quando ele se distanciou de mim indo em direção a porta. — Obrigada…

— Boa noite, querida. — sussurrou. — Nós… sentimos muito.

Seus passos deixam o quarto, o cachorro agora deitado na cama não dava o mínimo sinal de que o acompanharia, então lhe fiz companhia como uma agradecimento.

Deitei ao seu lado, seria uma madrugada longa, pois, eu seria incapaz de dormir a essa altura.


Levantei mais cedo, pois, era maçante passar tantas horas na cama acordada vendo Half dormir e babar no meu lençol.

Eram 5am e eu estava faminta por não comer nada antes de dormir, maldita festa e maldita vodka barata.

A dor do álcool não me atingiu nem um pouco, acho que não havia mais bebida no meu organismo depois de tudo o que rolou ontem, ou talvez tudo só tenha acontecido pela bebida.
Não sei dizer, eu meio que não bebi muito na festa então acho que é improvável… talvez eu só esteja louca e minha cabeça resolveu pregar uma peça.

Alcanço meu celular na pia do banheiro vendo as inúmeras notificações de mensagem dos meus amigos preocupados.
A conversa de Luke tinha 54 mensagens e 4 ligações.

“É bom você aproveitar o gostoso do Jonathan, ou vou ficar muito bravo com você” — Dizia sua última mensagem.

Sorri vendo que eles não estavam bravos, mas sim comentando sobre eu ter saído com o canalha do Hamilton da festa.

“Deus me livre” — respondi-o enquanto escovava meus dentes.

“Quem é vivo sempre aparece.” — respondeu ele ao mesmo tempo.

Desliguei meu celular terminando meu ritual matinal em pleno domingo.
Quando terminei, saí do quarto apreensiva de encontrar os Davies depois de ontem.

Por azar, Megan já estava na cozinha tomando uma xícara de chá.
Suas expressões neutras não estavam ali naquele momento, pois, seus olhos opacos e distraídos não me viram chegar até que eu estivesse bem na sua frente.

A mulher que sempre tinha algo a dizer, apenas me direcionou um sorriso, continuando a beber da sua xícara fumegante.

— Bom dia. — Sussurrei apreensiva.

— Bom dia, querida. — Sua voz era a mesma, mas tinha um sentimento diferente ali… talvez ela estivesse brava?

Me direcionei para o fogão, vendo-o ser totalmente diferente do que eu estava habituada.
As bocas eram lisas e não havia chama, procurei por uma panela que eu pudesse usar e então a mais velha notou minha inquietação.

Seus olhos agora normais me olharam em dúvida, e com o nariz se enrugando num sorriso gentil ela perguntou:

— O que você está fazendo?

— Eu estava pensando em fazer ovos mexidos… estou com um pouco de fome.

— Querida. — sua xícara encontrou a bancada quando ela se aproximou do balcão. — Deixe que eu faça seu café da manhã, sente-se na bancada e espere.

— Não precisa, eu sei me virar na cozinha.

— Milenna…— Sua voz era gentil e não havia ressentimento. — Deixe-me cozinhar para você, ok?

Assenti, sei que ela não desistiria tão facilmente.

— Senhora Davies… Sobre…

A mais velha enrugou a cara para mim, suas magras bochechas se contraindo.

— Achei que já havíamos dispensado as formalidades. — Era mágoa, sua voz estava magoada.

— Eu… me desculpe Meg. — ela já não me olhava mais, estava concentrada em quebrar o ovo dentro de uma tigela e adicionar um pouco de farinha. — Estou nervosa.

Sei que minha sinceridade a chocou, pois a mesma paralisou o movimento da espátula dentro da tigela e me olhou pelo canto do olho.

— Também estou. — sua voz não passou de um suspiro.

— Sobre ontem… eu não quis…

— Não peça desculpas por se deixar levar pela dor, querida. — Agora ela despejava um pouco da mistura em uma frigideira. — Está tudo bem.

— Eu sei, mas não queria assustar vocês.

— Não nos assustou, Milly. — ela confessou se virando para mim.

Os seus olhos claros investigando cada centímetro do meu rosto.

— Mas de qualquer forma…

— De qualquer forma, vamos cuidar de você. — brandou firme me interrompendo. — Vamos dar a vida para que você se sinta bem conosco.

— Meg…

— Você é uma menina especial, Milenna, eu estou apegada a você. — Sua atenção agora já estava na frigideira novamente. — Não vamos ser negligentes, não de novo…

— Eu não sei o que dizer…

— Não sinta a necessidade de falar… — soou gentil. — Vamos mudar de assunto.

A conversa de ontem surgiu na minha cabeça, junto com uma ideia totalmente surpreendente… mas no entanto, que fazia sentido.
Eles não eram inférteis… e George me disse que eles já haviam perdido demais… Meg me tratava como uma filha e George disse para Meg que estavam seguindo em frente no dia que os Hamiltons vieram.

— Você já foi mãe. — Não era uma pergunta, era uma constatação.

— Como foi a festa ontem?  — a mais velha colocou um prato de panquecas na minha frente, ignorando totalmente minha fala que foi totalmente audível.

— Meg… — os olhos da mulher na minha frente ameaçaram se encher de lágrimas e eu rapidamente tentei consertar a situação. — Foi legal, eu me diverti bastante.

— Viu Jonathan por lá? — não pude dizer se ela estava chorando porque agora suas expressões estavam voltadas para dentro da geladeira enquanto a mesma pegava um spray de chantilly e um pote de mel. — Não está com raiva dele ainda, está?

— Ah, estou sim! — soei ignorante. — Não consigo ver motivo pela delação dele.

— Ele estava preocupado, Jonathan sempre foi muito próximo de nós. — A morena defende ele. — Ele passou por muitas coisas desde pequeno e pode ser uma pessoa difícil às vezes… porém, merece uma chance sua.

— Ele é irritante, com todo respeito. — Ela sorriu levemente pelo comentário enquanto eu me servia das panquecas e ela me entregava um copo com suco.

— Ele só tem um gênero forte. — Justificou novamente. — Você vai ver.

— Sem ofensas, mas eu espero que ele fique bem longe de mim.

E então a mais velha gargalhou, dispersando o clima ruim.

— Ele vai vir almoçar hoje.

— Está brincando, não é? — Gemi frustrada quando a mais velha negou com a cabeça.

Merda.

— Da última vez que ele veio, parecia odiar vocês, por que ele está vindo novamente? — Perguntei cada vez mais desanimada.

— Acho que ele já superou o último jantar. — disse ela rindo enquanto eu terminava minhas panquecas deliciosamente gostosas.

Lambi meus dedos vendo a mais velha rir em aprovação pela minha reação exagerada à sua comida.
Minha vovó que me desculpe, mas Meg era a melhor cozinheira que eu já conheci.

— Eu acabei esquecendo de contar… consegui uma vaga como líder de torcida e uma na aula de artes. — Contei-a envergonhada como se estivesse contando um segredo bem atrasado. — Agora falta só o serviço voluntário.

— Isso é ótimo, querida! — a dos cabelos pretos começou a limpar a bagunça. — Já decidiu o que vai fazer?

— Sarah disse que conseguiria para mim no Asilo que os pais dela ajudam.

— É uma opção boa, lembro quando o pai de George se hospedou em um. — Animou-se. — Os idosos são muito gentis.

— Eu acho que vai ser bom, lembrar um pouco de como era com a minha vó. — constatei baixo e ela apenas assentiu insegura do que dizer. — Vou subir e tomar um banho.

— Claro, fique à vontade! George deve chegar daqui a pouco, ele precisava… pensar um pouco.

“Por minha causa” era o que estava no ar.
Apenas assenti subindo as escadas para o meu quarto pensando em que cara eu olharia para Jonathan depois da noite de ontem.

Depois de sentir cada músculo das costas dele grudados no meu peito desprovido de sutiã…

Merda.


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