09|Segredos
Sabe quando você olha para as pessoas ao seu redor e pensa sobre o passado de cada uma delas?
Saber que todo mundo esconde um segredo é estranho e desconfortável.
Saber que escondo segredos é difícil, ainda mais quando eu só queria gritar para o mundo. Queria estourar minhas cordas vocais em busca de justiça, justiça por uma vida que eu nunca tive.
Fugir para o Canadá nunca vai apagar tudo o que aconteceu nos últimos três anos, por mais que eu quisesse muito fingir que não era real, estava em mim, me mostrando que era sim real. Meu maior pesadelo era real, e não havia um dia se quer que eu pudesse me esquecer disso.
É frustrante olhar no espelho e ver tudo o que Rogério causou em mim, toda a destruição que suas mãos fizeram não só com meu corpo violado, mas tudo o que ele me tirou pouco a pouco.
Não que eu tivesse muito a ser tirado, mas do pouco que tive, sobrou apenas restos de um vazio que sempre esteve aqui.
Eu me lembro da primeira vez que aconteceu.
Era um dia comum em que eu havia acordado atrasada para escola e decidi ficar em casa, não pensei que a minha mãe estivesse no apartamento. Ela raramente estava.
Quanto a não ir para a escola, nunca foi me falado nada, na real, ela nunca se importou com nada. Quem me matriculou em uma escola foi o meu pai, uma das exigências dele para continuar pagando a pensão era que eu tivesse uma boa educação e é claro que a minha mãe se preocupava bastante com o dinheiro que garantia a manutenção dos seus vícios.
Eu me lembro que o apartamento estava uma bagunça, sempre fui muito preguiçosa com a arrumação.
Levantei da cama naquele dia e quando fui até a cozinha para comer alguma coisa, percebi que ela estava em casa.
Me arrependi amargamente de não ter ido à escola.
Aos onze anos eu já tinha aprendido sozinha o básico na cozinha.
Sabia fazer ovos cozidos e mexidos, era sempre o que o dinheiro dava para comprar.
Naquele dia, só havia dois ovos na geladeira que estava desligada porque haviam cortado a luz de novo.
Eu me lembro de escutar a porta do quarto abrir, e ignorei até perceber que não era a minha mãe.
Era um homem.
A minha mãe nunca havia levado homens para o apartamento e eu me senti estranha, com vergonha.
Ele me disse exatamente essas palavras, com uma voz gentil:
— Você sabe cozinhar?
Eu não respondi com nada além de um aceno e o homem que eu não conhecia ficou lá, me olhando terminar meus ovos mexidos.
— Você pode fazer um para mim também? — Ignorei.
Eu nunca estive tão desconfortável ao lado de alguém. Ele fedia como a minha mãe, devia usar as mesmas porcarias que ela. No seu corpo não havia nada mais que uma camisa, e seus olhos estavam muito concentrados em mim.
Eu não sabia da malícia que estava neles. Eu só tinha onze anos.
Nunca ninguém havia me ensinado o que homens fazem com uma garotinha sozinha na cozinha.
— Não tem mais ovos. — respondi rasa.
— O que você fez é suficiente para nós dois. Não acha?
Acenei com a cabeça.
Ele devia estar com fome, mas não era os ovos que ele queria.
Eu não tive medo quando ele chegou perto.
Eu ignorei-o todo segundo.
Comecei a lavar a louça porque não sabia o que fazer com ele tampando a passagem da cozinha.
Ele estava muito perto, eu não entendia o porquê, só sabia olha-lo curiosa.
Eu não me lembro da passagem da pia para a geladeira ser tão apertada mas ele passou por trás de mim. Com as mãos na minha cintura, passando suas genitálias eretas na minha bunda.
Eu não entendi o que tinha acontecido, eu não havia gostado como meu pai diz que gostei.
Fiquei assustada, nunca havia sido tocada por ninguém, muito menos sabia o que os homens tinham no meio das pernas.
Ele abriu a geladeira pegou uma cerveja e a abriu com os dentes.
Me estendeu a garrafa e eu neguei, confusa.
— Tem certeza? — ele perguntou com sua voz maliciosa.
— Eu só tenho onze anos e a vovó falou que eu não posso beber. — eu disse inocente.
— Você parece mais velha, sabia?
— Sério?
Ele assentiu com um brilho nos olhos que eu não mais esqueci.
Continuei a tarefa de secar a louça para guardar. Eu devia ter voltado para o quarto.
Ele chegou por trás novamente, repetindo os gestos anteriores.
A sua cerveja foi colocada no balcão ao meu lado.
Eu não consegui me mover, mas ele não me segurava.
Eu não entendia porque havia um estranho me tocando daquela forma. Minha criança não conseguia perceber que aquilo não era normal.
Eu me lembro das suas mãos livres tocarem meus seios por cima da blusa rasgada que eu usava como pijama.
Não era uma roupa adequada como disse o meu pai. Era apenas uma calcinha de florzinha e uma blusa fina da vó que cobria minhas coxas, porque a vovó era robusta e suas blusas eram grandes.
Ele me tocou de forma que eu não conhecia.
Eu sabia que era errado porque o meu desconforto ardia no peito.
Mas eu não fiz nada. Nunca fiz.
— Eu não gosto disso. — tentei lhe dizer apenas uma vez.
— E o que você vai fazer?
— Vou gritar se você não parar.
— Quem vai te escutar, querida? — ele dizia no pé do meu ouvido. — Acredite em mim, a sua mãe não vai acordar.
— Vou contar para a vovó.
— Se você contar, sua vovó pode acabar sendo atropelada por acidente. — A risada estava nítida em suas falas. — Você gosta dessa ideia?
Não tinha saída naquele dia, eu não sabia o que estava acontecendo, eu não gostava daquele homem e quando comecei a chorar ele enxugou minhas lágrimas se divertindo com meu sofrimento.
Eu nunca esqueci daquele sorriso, aqueles olhos azuis e do maldito dia que eu deveria ter ido para a escola.
Depois que voltei pro quarto atônita, no automático, chorei como nunca havia feito, tanto que a fome nem me doía mais.
Eu senti naquele dia que o meu corpo não era mais meu, que eu não tinha escolha.
Depois, a minha mãe esteve mais em casa do que nunca. Sempre com ele, usando das drogas que ela usava na rua. Rogério não amava a minha mãe, era claro o interesse que ele tinha por mim, e ela possuía tanta inveja disso que fingia não ver o que seu namorado fazia todas as noites com sua filha.
Noites que eu nunca vou esquecer.
Noites que uma porta fechada era o convite perfeito para minha própria história de terror, onde os monstros não estavam em baixo da cama.
Nessa história, as criaturas sombrias viviam por cima de mim, matando todas as noites uma parte da minha alma, tirando-me a pouca infância e inocência que eu tinha, tudo para suprir os desejos de um homem que eu não conhecia.
Era torturante e ninguém parecia notar.
Eu me sentia vazia, enojada de mim mesma por deixá-lo invadir meu quarto e tirar toda a minha dignidade.
Eu era apenas uma criança, que não pediu para ser tocada.
Foi nessa mesma época que eu tive contato com as substâncias que a minha mãe usava.
Foi aos doze anos que eu injetei heroína na minha veia pela primeira vez.
Depois todas as malditas noites eu usava para me sentir menos vazia.
Com o tempo, as brigas entre mim e a minha mãe começaram a ser pelas injeções que eu roubava, e Rogério, com sua bela habilidade de resolver as coisas, começou a trocar o sexo forçado pelas drogas que eu queria.
Não era uma troca justa, mas comprava o meu silêncio.
Pelo menos até os catorze anos, quando fui parar no hospital porque na aula de educação física havia tanto sangue saindo de mim que assustou meus colegas.
Não era menstruação, era um aborto causado pela metanfetamina.
Com catorze anos, eu nem sabia o que era um aborto.
A médica que me explicou tudo o que havia acontecido ficou chocada.
Aos catorze anos, as meninas da minha sala estavam brigando por garotos da idade delas, mas eu, estava passando pelo inferno em um lugar que nunca foi o meu lar.
Grávida. O desgraçado fez um filho em mim.
Eu o perdi com quatro semanas, como disse a médica.
Nem cheguei a sentir o luto, por um bebê que eu nunca conseguiria amar.
A doutora fez uma denúncia ao conselho tutelar no mesmo dia.
Eu não fui para casa porque minha mãe não apareceu na delegacia e eu nem sabia o nome do meu pai.
Nunca havia falado com ele.
Eu sabia o seu telefone e era apenas isso, o que acabou sendo suficiente no final.
Lembro de ter ligado para ele e explicado a situação, naquele dia percebi o medo que eu tinha de homens mais velhos, o que também não me impediu de chorar no colo do pai que eu nem sabia o nome.
O meu pai seguiu todos os protocolos, fez a denúncia contra a minha mãe e me levou para a casa dele, na época.
Era uma casa grande, e ele tinha uma esposa bonita. Uma mulher que de primeira mão me aceitou de braços abertos.
Não demorou muito e a minha mãe junto do Rogério foi presa com reclusão de dois anos.
Mas tudo era bom demais para ser verdade.
A vida do meu pai era bagunçada, com poucas semanas na sua casa, Jennifer, a mulher dele foi embora porque a secretária de meu pai estava grávida dele.
Com a chegada do bebê e de toda essa reviravolta, meu pai desistiu da guarda.
Com minha mãe presa e o meu pai desistindo de mim, foi a vovó quem me acolheu.
Mesmo com a falta de dinheiro e em moradia precária, havia muito amor.
Eu a amava como uma mãe e foi a vovó Celia quem resignificou minha vida. Me mostrou que eu podia ser mais que todo o vazio e tristeza. Uma pena que minha alegria morreu com ela no dia 10 de dezembro.
Meu aniversário.
Dia em que Róger saiu da cadeia por bom comportamento e acertou uma bala na cabeça da minha avó, na Avenida Paulista, quando estávamos voltando da feira.
O sol estava no meio do céu, mas meu coração estava no chão assim como a vida que se esvaiu da vovó.
Tudo começou aos onze anos, melhor, tudo começou quando nasci.
Tive minha vida destruída a cada segundo depois de nascer. Nunca houve um momento bom que eu possa memorar.
Todas as boas lembranças vêm da vovó Célia, e elas também estão manchadas de sangue.
Me arde o peito esconder tudo isso, me arde o peito saber que meu passado não é bonito.
Dói querer contar e não poder, porque ninguém pode fazer nada para ajudar.
Tortura querer vomitar todos os segredos e ter medo de como as pessoas vão reagir.
Por isso entendo o porquê dos meus host parents terem seus motivos para esconder algo.
Todos temos um passado, que vai nos assombrar toda manhã ou vai trazer saudades.
Por isso não entendo porque o Jonathan quer tanto se intrometer em algo que não é da conta dele.
O que eu não podia negar, é que aquele vídeo tinha mexido comigo, não só o vídeo como todas as brincadeiras sexuais que envolviam o meu corpo e nacionalidade.
O fetiche americano pelas brasileiras era real e odioso.
Me subia a bile só de pensar que quem havia feito uma asneira dessas fora o Hamilton.
Meu ódio por ele se construía cada dia mais, toda vez que eu o olhava, tentando decifrar seus segredos para atingi-lo na mesma moeda, da mesma medida.
Eu o odiava, cada vez que lembrava do vídeo.
Eu tinha medo de que ele tivesse descoberto meus pontos fracos.
O celular tocou, me tirando dos devaneios naquela manhã de sábado, muito parecida com a manhã onde tudo começou.
— OS MEUS PAIS DEIXARAM! — A voz de Sarah soou animada no outro lado da linha
— Que bom! — tentei dizer no mesmo tom que a garota.
— Mas tem um probleminha.
— Diga.
— Os meus pais querem que você venha almoçar aqui para te conhecerem. — ela disse receosa.
— Porquê?
— A minha mãe quer saber quem vai me acompanhar na festa e ela já conhece a Alyssa.
— E o Luke? — perguntei.
— Minha mãe vai conhecê-lo em outra oportunidade. — ela disse tensa novamente. — É que eu falei seu nome e… tem problema?
— Não, tá tudo bem. — o “hm” dela não pareceu confiável. — Juro.
— Tá bom, te espero às 12. — ela fez uma pausa. — Esteja limpa, vista roupas mais compridas e tire o sapato antes de entrar.
— Ok — eu disse não entendendo o porquê.
A ligação foi terminada no mesmo instante que alguém bateu na porta.
A mulher de cabelos pretos entrou pedindo licença, o Golden logo atrás dela.
Os dois adentraram o quarto, e a mulher que parecia engasgada me olhou.
— Posso me sentar? — disse se referindo a cama, o assunto parecendo ser sério.
Ela iria me contar?!
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Notas da autora ❤️
Oiii, desculpa o atraso novamente 😁
Gatitos, segurem os corações com esse capítulo.
Como eu deixei nos avisos é uma história que envolve gatilhos, e não seria um dark romance se não envolvesse.
Essa foi só a ponta do Iceberg, porque a Milenna é um personagem que tem muitas camadas emocionais. (Spoiler: nosso bad boy gostosão também kkk)
Claro que a história que ela resumiu nesse capítulo vai ser mais desenvolvida no decorrer da história. Afinal tem um ano de high School pela frente!
Então perdoe-me se eu errei em algum momento na escrita desse capítulo.
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