06| Os Hamilton's

05 anos atrás...

Vasculhei a geladeira do apartamento pela terceira vez ao dia e não havia nada como nas outras vezes. Não havia nada que saciaria o aperto na minha barriga, nada que eu soubesse fazer.
Minha barriga fez outro barulho estranho, céus, eu estava faminta.
Já era o segundo dia em que a minha mãe tinha saído, não era incomum, ela fazia muito, na verdade.
Na primeira vez que aconteceu, eu tinha seis anos e nunca fiquei com tanto medo de que ela não voltasse mais.

Eu sei que ela some para usar suas drogas e sei que ela não suporta estar sóbria ao meu lado, tudo bem, mas, ela nunca se preocupava em deixar algo para me alimentar, não que ela se preocupasse com minha alimentação.
As vezes acho que minha mãe se arrepende das escolhas que fez, pois, todas às vezes que estamos juntas ela me olha como um erro. Talvez eu seja mesmo um erro.

Fui ao congelador, em busca de gelo para saciar a vontade de comer.

Mamãe diz que já cozinhava na minha idade, mas ela nunca parou para me ensinar então eu nunca cheguei perto do fogão, mas, agora não me parecia uma ideia tão ridícula.
A dor da fome era muito ruim e às vezes não passava com gelo e eu tinha que dormir, às vezes nem assim funcionava e eu acabava desmaiando no carpete da sala onde eu dormia.

Ela vai voltar...

Eu não tomei conta de quando peguei no sono, mas aconteceu, e mais uma vez lembranças me tomaram, memórias que nunca vão me deixar em paz.
Memórias tão vívidas que parecem se repetir todos os dias, eu sei que estou segura agora, mas isso nunca muda.
Nunca mudou...

Sai da cama macia vendo que o céu ainda estava claro pela janela, será que já haviam chegado em casa? Eu estava com fome, pois, não havia me alimentado hoje pelo o incidente no refeitório e eu não queria ter que abrir a geladeira dos Davies como se estivesse na minha casa.

Entro no banheiro que leva direto ao espelho, vendo meu reflexo mais uma vez. Acabada.
Nada em mim parecia quebrado quando por baixo daquelas roupas eu escondia marcas que ninguém nunca verá, olhando para o espelho eu seria só mais uma menina qualquer.

Mas olhando para a minha alma, ela estava quebrada, quase inexistente.
O problema era que ela também não seria vista por ninguém, porque as almas não são vistas a olho nu, são sentidas com o coração, e ninguém nunca vai chegar perto o suficiente para isso.

Um sorriso. O espelho olhava de volta para mim, com meus olhos inexpressivos, sorrindo para mim. Tinha tanto peso naquele sorriso, pesos que ninguém carregaria além de mim.

Ainda focada no meu reflexo, passei minha blusa pela cabeça, expondo meu corpo, mostrando-me que não adiantaria fugir, eu era parte daquilo.

Cicatrizes. Estavam por toda parte.

Fui até a banheira, atônita, liguei a água quente e terminei de me despir sem parar para olhar o meu eu no espelho, a parte de cima já era doloroso demais.
Não posso me esquecer do que aconteceu, mas posso evitar me lembrar.

Eu estava sentindo faltar algo, e realmente faltava minha pulseira, ela sempre me ajudou a não me sentir só nessas situações. Eu espero de verdade que aquele idiota me devolva pacificamente, eu não sei o que faria para recupera-la, estava ali naquele objeto as minhas únicas lembranças felizes.

A água já cobria minhas pernas, então eu desliguei a torneira e me abaixei na água, a essência de menta refrescando o ambiente do banheiro.

Eu não me lembro mais do rosto dela, era muito parecido com o meu, mas não consigo me lembrar de seus traços. Nunca a vi sorrir para mim, minha mãe nunca sorriu para mim.
Nunca cozinhou para mim ou me desejou boa sorte, nem mesmo leu histórias para dormir.

Meg não era minha mãe, mas já havia me tratado muito melhor do que a minha um dia sequer havia tentado. E pode ter se passado apenas um dia, mas eu senti como se fossem semanas. Isso era carinho, então?

— Querida, você está aí? — a voz da mulher que tomava meus pensamentos ressoou ao longe. — Temos visita para o jantar.

Visita?
Droga, eu já havia esgotado minha cota de socializações por hoje.

— Estou no banho — alertei — Eu já vou descer Meg.

— Ah! Não se preocupe, leve o tempo que precisar aí dentro.

Escutei a mulher se afastar, e corri para terminar o banho, me sentindo levemente melhor.

A ideia das visitas me assustava um pouco, não estava esperando que os Davies voltassem com visitas para casa.

Vesti uma roupa confortavelmente apresentável e desci para o andar de baixo, escutando apenas a voz de George conversando com Meg. Baixo demais.

— Acha que eles vão reagir tão mal assim? — Meg perguntou

— Eles não têm que opinar em nada, estamos seguindo em frente, Meggie. — o homem confortou a mulher.

— Eu sei, mas... — Ela parou de falar quando me viu. — Mily!

George se virou me olhando e direcionando seu típico sorriso casual.

O que quer que estavam conversando, pararam assim que eu cheguei, eu estranhei aquilo.
Com o que estavam seguindo em frente?

— Estávamos nos perguntando se nossos convidados iriam demorar, não é mesmo Meg?

A mulher acenou com a cabeça, distante, sua feição preocupada escancarada. Antes que eu pudesse falar alguma coisa, a campainha tocou anunciando que os tais convidados haviam chegado.

— Oh, falando neles! — Meg comentou, saindo do seu transe.

A mulher se retirou da sala indo até à porta para recebê—los, escutei vozes contentes vindo daquela direção e olhei para George esperando que ele me dissesse o que fazer.

— Apenas sorria e acene — ele brincou, com sua mão acenando no ar e me tirando uma risada curta.

— Assim? — Imitei seu movimento com a mão.

Ele concordou piscando um olho para mim, como se tivesse acabado de me ensinar um truque de amigos.

— Jonan e Dayse, essa é a Milena, a nossa intercambista. — A morena entrou anunciando-me aos convidados. — Milena, esses são Jonathan e Dayse Hamilton. Nossos amigos.

Foi automático, quando eu escutei aquele nome, tirei meus olhos de George e atentei rapidamente às duas pessoas que estavam do lado da minha host mom.
O idiota e sua namorada.

— Amigos? — perguntei arqueando as sobrancelhas para o rapaz.

E lá estava, o sorriso arrogante de quem se sente superior. O sorriso que eu queria poder enfiar no rabo dele.

— Vocês já se conheceram? — O mais velho perguntou.

— Não

— Sim

Respondemos em simultâneo, eu não conhecia aquela cara, ele só havia me roubado.

Vi pelo canto do olho, Meg sorri discretamente.

— Hm, se vocês dizem. — George afirmou desinteressado.

Apreensão tomava o cômodo, o desconforto dos mais velhos era quase palpável.

O Hamilton desviou seu olhar de mim e olhou com a mandíbula trincada para George, o sorriso desaparecendo. Sua namorada continuava parada lá, observando a cena.

— Que cheiro gostoso, tia! — a garota se pronunciou, enfim, distraindo o clima.

Meg sorriu torto e então respondeu:

— Ah! Eu fiz aquela torta de abóbora que você gosta, meu bem.

Os olhos da menina brilharam pela menção da tal torta enquanto Jonathan continuava parado lá, olhando com seu olhar mortal para George.

— Olhem só as horas, crianças, vamos comer! — o mais velho sugeriu com um sorriso sem graça.

— É, uma ótima ideia, querido. — a mais velha disse percebendo o clima pesado que o ambiente ressoava.

— Não vamos ficar para jantar. — o garoto disse com sua típica voz rouca.

Havia ódio ali, e ele não era direcionado a mim.

— Ah qual é, nós podemos fazer isso, Jonan. — Sua namorada disse acalmando-o. Segurando em sua mão, gesto que só observei por estar atenta às coisas, claro.

— Eu insisto que fiquem. Meg preparou o jantar pensando nos velhos tempos. — O mais velho olhou-o com confronto brilhando nos olhos. — Seria de grande desfeita.

— Não existem mais velhos tempos. — os dois homens na sala travavam uma batalha silenciosa. — Você sabe que não.

— Garoto, quando foi que se tornou assim? Tão teimoso. — O Hamilton não respondeu. — Fique para jantar conosco, eu insisto.

— Nós ficaremos. — A garota se pronunciou.

— Ótimo! — Foi Meg quem protestou o alívio.

O olhar de Jonathan caiu sobre mim de novo, dessa vez havia nojo em suas feições, seu olhar não durou muito quando ele foi puxado pela namorada até a sala de jantar.

A mão de George encontrou minhas costas em um carinho delicado, me induzindo até o cômodo que o garoto entrou a pouco, estava um clima pesado, todos haviam notado, e eu tenho certeza que era tudo culpa daquele imbecil.
O que eu não entendia era o porque os Davies convidaram-os para sua casa se eles não eram amigos e o porque haviam os apresentado como tal, quando o moreno havia deixado claro sua aversão ao casal.

Talvez estivessem tentando me enturmar com pessoas da minha idade, mas cara, péssima tentativa.

Quando entrei na sala de jantar a mesa estava posta novamente, como na última noite, mas dessa vez haviam mais duas pessoas já sentadas nela enquanto Meg terminava de adicionar os condimentos em cima do móvel.
George já se sentava no mesmo lugar enquanto o meu assento era tomado pela menina, Dayse.
Ao seu lado, Jonathan tinha uma postura dura, imperfurável. Suas feições eram indecifráveis, até mesmo para mim, e eu queria muito saber o que se passava na cabeça daquelas pessoas. Tudo aquilo parecia perigoso, me amedrontava saber que ninguém gostaria de me contar o que estava acontecendo.

Minha host family escondia algo, e eu não sabia o que era.

Meg enfim se sentou também no mesmo lugar e eu me sentei ao seu lado, de frente para o moreno carrancudo, encarando-o para deixar claro que nossa aversão era mútua.

— Eu amo essa torta, Meg! — a garota disse se servindo da travessa.

— Eu sei querida, sempre soube. — ela tinha nos olhos aquele sentimento de saudade novamente.

— Ela sabe? — O babaca vociferou com raiva, olhando para mim com sua mandíbula travada.

— Jonathan! — sua namorada o repreendeu.

— Ela sabe? — ele perguntou novamente, entre dentes.

O silêncio era alto na mesa, ninguém se atreveu a responder à pergunta do rapaz. O que eu não sabia? Eu estava torcendo para que ele fosse impulsivo e me contasse, eu queria muito saber.

— Não. — Foi Meg quem se arriscou em um sussurro quase silencioso.

Seus olhos já não estavam mais em mim quando ele entrou em um transe, e novamente, a mesa entrou em silêncio.

— Meg, pode me passar as ervilhas? — perguntei para minha host mom e a mais velha me estendeu a vasilha com bolinhas verdes.

Eu nunca havia comido ervilhas e esperava que fosse bom porque seria horrível se meu paladar rejeitasse isso agora.

Brinquei com as bolinhas verdes no prato antes de furar uma com o garfo, levando a boca e experimentando.

Tinha um gosto massento, uma textura estranha no paladar, mas não era tão ruim. Engoli não querendo comer o resto que estava no prato, me distraindo com os grãos.

— E então, como foi a escola, crianças?

— Foi legal, eu conheci três pessoas hoje. Uma delas não era tão legal, mas as outras duas me trataram muito bem. — ressaltei o não tão legal olhando para o garoto na minha frente e depois para a menina, esperando sinais de que falariam algo sobre o vídeo no refeitório.

— Que bom! Traga-os para cá quando quiser. — a morena sugeriu — E você perguntou a Dayse sobre as líderes de torcida?

— Ahn... não. — Então, essa era a Dayse.

— Dayse, meu bem, Milly gostaria de entrar para as líderes de torcida. — Eu gostaria?

A menina me olhou analisando-me.

— Bom, eu não faço mais parte das Cheerleaders, mas, posso arranjar um lugar para você lá. — Ela sorriu para mim e o seu namorado deu um sorriso debochado ao seu lado.

Ele estava mesmo me subestimando? Eu não queria entrar para as Cheerleaders, mas foi aquela merda de sorriso que me motivou.

— Eu adoraria!

Vi seu sorriso vacilar, sua expressão caindo, seus olhos focados na lareira do cômodo.

— Ótimo! — Meg comemorou com um sorriso genuíno, a apreensão ainda tomava a mais velha.

— Vocês vão se dar muito bem ainda, deem uma chance. — George sugeriu olhando o homem mais novo na mesa.

— Preciso ir ao banheiro. — ele disse se levantando, sua cadeira fazendo um barulho alto na madeira do chão, Jonathan estava ignorando as tentativas de George.

— Ele vai aceitar isso uma hora ou outra. — Dayse disse para a mais velha, confortando-a.

— O que vocês querem que façamos? — o homem na mesa perguntou. — Estamos seguindo em frente.

— Do que vocês estão falando? — tomei a coragem de perguntar, decidindo não ficar na sombra do assunto.

As pessoas naquela mesa se olharam, sem saber o que responder.

— Nada, querida. — a mais velha respondeu tomando coragem novamente.

E aquilo encerrou o assunto. Seja o que for, eles têm de ter seus motivos.

Minutos depois, Jonathan retornou à mesa e se sentou em silêncio. Ninguém disse mais nada, todos comendo em silêncio. O clima ruim ainda estava presente, mas ninguém ousaria dizer uma só palavra.

Assim que se seguiu o jantar, conheci a tal Dayse e descobri que não só eu tinha questões com Jonathan Hamilton.
Não eram as melhores pessoas, tenho certeza, mas tinham uma história com minha host family.

O que tornou tudo mais curioso, foi que logo após o jantar eles saíram da casa com muita pressa, como se o ambiente não pertencesse a eles, e eu percebi que isso deixou Meg muito chateada, ela parecia gostar mesmo daqueles dois.

Após terminar de ajudá-la a limpar a mesa do jantar, a morena me convidou para assistir a filme em família com eles, o que eu neguei hesitantemente. Não queria deixá-la na mão, mas era muita informação para processar em um só dia, eu pelo menos esperava que a morena entendesse.

Eu também não queria ir dormir, estava sem sono algum. Maldito fuso horário!

Assim que entrei no quarto, vi Half sentado em minha cama e logo fui até o cachorro, ele gostava mesmo daquele quarto e eu gostava daquele cachorro.

Fui logo me aproximando para alisar suas madeixas mas quando cheguei próximo à cama, eu vi.

Minha pulseira.

Na mesa de cabeceira.

Ele havia colocado lá, havia invadido o meu quarto e colocado minha pulseira lá.

O filho da puta não teve coragem de me devolver pessoalmente.

Peguei a pulseira esculpida de prata com os pingentes de rosa, colocando-a no pulso. Finalmente no lugar onde não deveria ter saído.

Havia também um bilhete escrito no papel higiênico que dizia:

" Se quiser saber a verdade"

Acompanhado de um número de telefone.

A verdade...

Eu queria saber o que tinha acontecido no jantar hoje, queria mesmo, mas, não queria que fosse ele a me contar. O cara tinha me roubado e entrado no meu quarto sem que ninguém visse, o que mais ele poderia fazer?

No que mais ele pode ter mexido? Pensando nisso procurei sinais pelo quarto que indicariam sua invasão, mas não havia nada, ele era habilidoso, eu tinha que confessar.

Sem mais alternativa, me deitei na cama pensando no que fazer. Eu não ligaria.
Senti Half se deitar ao lado das minhas pernas, não fechei a porta porque eu não dormiria essa noite, eu não estava com sono e isso seu passe livre para o cachorro se juntar a mim na cama.

O que eu deveria fazer agora?

Todo o dia de hoje martelava na minha cabeça. O vídeo, a pulseira e o jantar... O Hamilton.

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Notas da autora:

Era para ter saído mais cedo gatitos, mas eu tive uma caralhada de compromissos hoje.

Boa leitura, gatitos!

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