III - O CONFRONTO
Meicy adentrou em sua casa passando pelo estreito corredor que levava até a sala de jantar, onde no mesmo se encontrava a porta de seu quarto. Ele descansava as suas mãos em seus bolsos largos da calça e o seu olhar estava perdido para o vazio. O delineado natural de seus olhos se destacava na luz amarela que entrava por uma janela, contracenando com o ambiente pouco iluminado em que se encontrava.
— Meicy!
Ele escutou o chamando, interceptando o seu movimento na maçaneta redonda da porta de seu quarto. Reconheceu aquela voz grossa e rouca. Cerrou os dentes, não esperava encarar o seu pai tão cedo. Suspirou inquieto e deu meia volta caminhando em direção à sala de jantar.
Encontrou o homem de cabelos castanhos e ondulados sentado em volta da mesa. Ele levava uma espada a altura de seus olhos, observando o fio, seu reflexo e a lâmina recém polida. Além da espada, haviam alguns punhais e bainhas. Meicy observou bem o símbolo grafado nos punhos de cada arma. O pentagrama. Aquele era o símbolo da seita, presente em quase tudo, como na capa dos livros, nas paredes e piso do Instituto, até no uniforme que iria usar em breve. Nos livros que tinha em casa, não explicava aquela fascinação intrigante pelo símbolo, na qual o deixava frustrado.
— Sente-se! — O seu pai exigiu em um tom ríspido.
Meicy não queria obedecer, principalmente ao observar todo aquele armamento em cima da mesa. Pelo visto, o velho Jeon estava fazendo muita expectativa sobre algo que o garoto iria lhe decepcionar.
— Não é necessário. — Meicy falou sem ressentimento.
— Como assim? Não quer prestigiar as armas que comprei para você?
O tom de sua voz parecia calmo, mas o garoto já sentia a irritação naquelas perguntas. Temia por uma discussão, mas precisava enfrentá-lo naquele momento. Jeon o fitava através da lente de seus óculos, ansiando por uma resposta de seu filho. O cavanhaque cheio em sua face, ocultava as linhas de expressão de seus lábios, deixando-o aparentemente ainda mais monstruoso.
— Caçadores só usam armas a partir do terceiro ano no Instituto. Não entendi a sua pressa.
— Eu quero que familiarize logo, quanto antes melhor e espero que esteja preparado para o seu treinamento físico. — O fitou com desdém, observando os braços magros do garoto.
Meicy suspirou, sentindo o desprezo naquelas palavras. Ele girou o seu corpo, dando as costas ao seu pai.
— Então perdeu o seu tempo. — Ele disse, sem remorsos. — Eu serei bruxo.
Foram poucos segundos após Meicy falar a última palavra, mas como a velocidade do próprio vento, ele sentiu a extremidade da espada roçar sua nuca. O garoto arregalou os seus olhos, apesar de esperar aquela atitude de seu pai, ele temia aquela ameaça, pois sabia que ele era capaz de tudo.
— Eu espero não ter escutado direito. — Ele disse, sarcástico.
Meicy se manteve tranquilo, como se nada estivesse acontecendo. Cerrou os seus punhos dentro de seus bolsos e relaxou os ombros o máximo que pôde.
— Eu fui bem claro. Não quero ser caçador. Eu quero ser bruxo.
O garoto sentiu a ponta da espada apertar ainda mais em sua nuca. Contrariar os desejos de seu pai era o mesmo que pedir o castigo, mas Meicy não iria voltar com a sua palavra. Ele estava destinado a ser bruxo, pois, só o conhecimento de um bruxo responderia a todas as suas dúvidas.
— Jeon! — A voz de Susan ecoou pela casa.
A mulher deixou cair o pedaço de flanela vermelha que segurava. Estava paralisada, estupefata pelo o que os seus olhos escuros presenciavam. O seu marido não poderia estar louco a ponto de ferir mortalmente o próprio filho!
— Fique fora disso, Susan! — Ele ordenou, olhando para ela com o canto do olho.
— Você não vai me matar, eu sei disso. — Meicy falou no tom mais calmo possível. — Eu já entrei nessa droga de seita obrigado por você, por que não deixa ao menos eu escolher o que quero para meu futuro?
— Você não sabe o que quer. — Jeon disse entredentes.
Meicy sorriu disfarçadamente.
— Será que falhou miseravelmente como seguidor e quer inflar o seu ego me usando naquilo que nunca conseguiu?
O garoto sentiu o seu corpo sendo empurrado de encontro ao chão. Ele tombou de joelhos e cotovelos no piso liso. Percebia pelas costas a espada que ainda persistia em ameaçar sua nuca. Um choro de bebê soava abafado provindo de alguns dos quartos, irritando de vez aquele homem grotesco que empunhava a lâmina.
— Susan! Faça essa maldita criança calar a boca!
A mulher nem pensou duas vezes, correu imediatamente para o quarto acudir a sua filha caçula. Jeon voltou sua atenção a Meicy. Ele rangia os dentes diante da fúria que o dominava. Aquele garoto só tinha doze anos, mas se portava como uma adolescente rebelde e a seita nunca admitia esse tipo de comportamento.
— Escute bem seu moleque! — A voz dele soou monstruosa. — Ou você se torne um caçador, ou não entra mais nessa casa! ENTENDEU BEM?
☽✳☾
Meicy bateu a porta de seu quarto com força, girou a chave gorge na fechadura, conferindo mais uma vez se realmente a havia trancado. Ele suspirou alto, ainda estava sob tensão após o desentendimento com seu pai. Tudo o que ele menos queria era enfrentá-lo cara a cara, mas aquele homem precisava entender a sua decisão. Era tudo uma questão de princípios e Meicy precisava lutar pelos seus.
O garoto se direcionou até a sua velha estante feita de uma madeira escura, quase preta. Ele olhava para os dorsos de seus livros, passeando os dedos por entre os títulos grafados em cada um deles. Parou no antepenúltimo da fileira superior e vislumbrou o selo dourando do pentagrama. O Puxou para si, pegando-o com as duas mãos. O volume pesado, de folhas amareladas, exibia uma capa verde-água e outros detalhes em dourado, que por sinal, já estavam bem danificados pelo tempo. Ele levou até a sua cama e sentou em seguida, abrindo na primeira página.
Ele analisava as letras do material em suas mãos. Havia sido escrito por uma máquina de escrever, das mais antigas que poderia supor. Notando isso, poderia dar uns cem anos a aquele livro, a mesma idade de inauguração do Instituto de seguidores que ele iria ingressar em Hidda.
— Itano Siristh. — Meicy sorriu após ler aquele nome.
Itano Siristh, era nada menos que o grande Ancião mestre. "Pupilo" de Karen. Aquele livro foi escrito por ele próprio, além de sua história e do Instituto, aquela obra também remontava algumas leis e regras a serem obedecidas na seita, desde a integração, à formação e o trabalho como seguidor.
"Itano Siristh nasceu em uma pequena vila na região de Sunira no planeta Sagnows..."
Meicy lia alguns trechos, destacando as frases importantes com um lápis. Já havia lido aquele livro, mas seria interessante aprender um pouco mais sobre aquela organização em queria iria fazer parte.
"Após o desaparecimento da deusa Isth, Karen convocou seus primeiros seguidores para capturar Luciano Antunes e aprisioná-lo em um sarcófago. Os cincos anciões, membros do conselho e tendo como principal líder, Itano Siristh, fundador da seita: Seguidores de Karen."
"O primeiro Instituto de treinamento foi fundado em Sagnows, na antiga cidade de Sidelena — Primeira cidade isthiista e de onde surgiu o idioma dos deuses, o sidelênico. — Dois séculos depois, o Ancião mestre fundou o Instituto de Hidda — A única cidade isthiista do planeta Karkariá. "
Meicy grifava com o lápis as letras miúdas no rodapé da página.
" *Isthiismo – Religião em adoração a deusa Isth, datada desde a origem dos tempos. "
"* Isthiista – Quem segue o isthiismo ou lhe é relativo. "
Meicy pulou alguns tópicos e passou a próxima página, seus dedos tremeram na folha. Ele bufou ao ler o seguinte título do tópico.
CERIMÔNIA DE CONSAGRAÇÃO
Essa cerimônia era um tipo de batizado aos novatos que adentravam na seita e aos formandos do Instituto, na qual o último, recebia a "imortalidade". O garoto fechou o livro ao se lembrar que na próxima semana seria a sua vez de pisar seus pés no glorioso Templo Isthiista de Hidda. Ele estava meio que receoso. Estariam presentes centenas de seguidores e principalmente o Ancião mestre Itano Siristh. Meicy desconfiava de coisas estranhas que estavam acontecendo com ele, aqueles poderes... Não, ele não poderia ser a reencarnação de Luciano Antunes, ele não poderia ser um feiticeiro.
Ele escutou batidas na porta do quarto, despertando-o de seus devaneios. Olhou de relance, ainda atordoado pela série de pensamentos.
— Meicy! — A voz soou abafada, mas Meicy reconheceu. Era a sua mãe.
O garoto se levantou da cama, colocando seus pés descalços no chão. Destrancou a porta e a abriu. Susan segurava um bebê de mais ou menos quatro meses, uma menina de cabelos escuros que dormia em seus braços. Era a irmã caçula dele. Sora.
— Eu fiquei preocupada, como você está? — Ela perguntou.
Meicy notou a face chorosa de sua mãe. O seu pai era mesmo um imbecil, ele o odiava de corpo e alma. Além de sempre estar ferindo os sentimentos de sua mãe, o pressionava e o obrigava a realizar seus desejos.
— Cadê ele? — Meicy perguntou, se referindo ao seu pai.
— Voltou para o Instituto.
— Deveríamos ir embora desse lugar, fugir dele!
Meicy lhe deu as costas, retornando a sua cama. Susan entrava no quarto em seus passos lentos.
— Não fale assim, ele é o seu pai. Quer o seu bem.
— Meu bem? — Meicy a encarou com seus olhos negros e arregalados. — Ele não pensa em mim, não pensa em você, só pensa nele mesmo! Eu já sei qual é a dele!
Susan balançava a criança em seu colo, temendo o seu despertar após escutar o tom elevado da voz do garoto.
— O meu pai não gosta de você! Nunca gostou. Eu sei que o casamento foi arranjado e tudo o que ele queria era um filho para ser aquilo que ele nunca conseguiu ser. Um ancião! Por isso ele quer me obrigar a ser um caçador, pois só um caçador consegue uma promoção desse tipo.
Susan continuava calada, meio que abismada pela informação que o seu filho sabia, pois, ninguém nunca comentou com ele sobre o seu casamento com Jeon.
— Eu serei um bruxo mãe! — Meicy continuou. — Com ele aceitando ou não. Nem que eu passe as noites com os cães de rua.
— Você acha que eu irei deixar o seu pai te expulsar dessa casa?
— Eu acho. Sinto muito em lhe dizer isso, mas... Você não tem voz contra ele e só peço que tome cuidado. — Meicy se pôs de pé. — Ele é capaz de tudo.
Com isso, o garoto saiu do quarto, deixando a sua mãe um tanto pensativa.
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