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Seis meses não eram o suficiente para dizer que tudo aquilo tinha acabado, ainda estava vivo na cidade, no noticiário, a população não conseguia esquecer, toda vez que o Colégio Santa Borgonha era mencionado, tremiam com a lembrança, as coisas tinham colocado um pé na normalidade, as noites se tornaram um pouquinho mais seguras, para o sobreviventes era externamente desafiador cruzar a porta de casa, a todo momento um pedido de entrevista, algum desavisado tentando tirar foto ou até mesmo questionando o que tinha acontecido realmente na casa, as pessoas não se preocupavam, pediam os detalhes mais sórdidos que podiam e a internet não ficava atrás, chuva de mensagens e nem todas eram de apoio e para Índia Brandão a vida ainda parecia mórbida.

A garota estava sentada no chão do quarto enquanto esperava que Helena aparecesse.

Ao que parecia Helena havia sobrevivido por um fio, a facada de Joana gerou uma hemorragia interna e a rapidez do atendimento fez com que ela fosse salva, outra pessoa que também entrava na lista de feridos era Marta, a melhor amiga de Suzana, não havia sofrido nenhum ferimento físico mas muitos psicológicos, a garota ainda se culpava por ter brigado com Suzana e por ter invadido o quarto de Índia vestida como enfermeira, o que durante os depoimentos foi descoberto que o próprio Wagner havia dado a ela tanto a ideia quanto às roupas, alegando que ela se sentiria melhor, agora Marta estava fora da cidade procurando uma vida nova. Os únicos pais dos mortos que permaneciam na cidade eram os de Suzana, até mesmo Luciana havia se mudado. Falta, era a única coisa que todos sentiam.

Helena gritou por Índia, que correu para abrir a porta, as duas se abraçaram e entraram para o quarto de Índia.

- Oi!- Helena cumprimentou se sentando na cama de Índia

- Oi, como estão as coisas?- Índia perguntou se ajeitando no chão, era a primeira vez que estavam se encontravam sozinhas, sem polícia, pais ou médicos por perto

- Uma merda!- Helena riu, jogando o cabelo escuro para trás- Mas os meus pais estão mais calmos e eu tenho essa cicatriz horrorosa!- ela levantou a blusa, mostrando a cicatriz que marcava a pele morena- E você?

- Eu tenho a sensação que vou surtar a qualquer momento, quase tive um treco andando na rua quando eu achei que tinha alguém me seguindo!- Índia respirou fundo- Os tios do Wagner fecharam o mercado, picharam na parede "assassinos em família"... Eu não sei como tratar essa situação...

- Não podemos.- Helena respirou fundo- Temos que seguir em frente, é quase fim de ano, teremos muitas festas para ir daqui a pouco.

- Não, sem festas.- Índia riu- Como vamos seguir em frente?

- Eu não sei.- Helena se inclinou para frente- Eu acabei nessa coisa toda de paraquedas, eu não percebi em nenhum momento o quanto o perigo estava próximo de mim, eu enfiei uma faca na garganta da Joana, peguei o telefone do bolso da calça dela, eu avisei o Daniel e chamei a polícia, eu não fazia a mínima ideia de que a minha noite ia ser daquele jeito e terminaria no hospital, então basicamente, eu não sei.

- A vida é imprevisível.- Índia completou

- Eu achei que o Daniel viria também... Ele é um de nós.

- As coisas estão complicadas de mais para ele... Eu não o vejo tem três meses, a mãe dele me disse que o Daniel tá trancado no quarto, ninguém consegue tira-lo de lá...

- Você tentou?

- É claro! Eu tentei, os médicos tentaram, os pais dele não querem tira-lo a força de casa... Daniel acha que se abrir a porta, o Wagner vai pega-lo.

- Ele vai sair dessa ok?

- Eu não sei Helena...- Passos foram escutados, as duas se entreolharam enquanto não faziam barulho, os passos se extinguiram, viraram barulho de porta se abrindo e fechando- Apenas os vizinhos.

As duas riram e se encararam, vivas e bem, dez inocentes e dois assassinos estavam enterrados, o silêncio entre elas era ensurdecedor, ninguém sabia como começar aquilo, deveriam só comer? Ou falar alguma coisa? Só eles haviam sobrevivido e os outros ainda faziam muita falta.

- Puta merda...- Helena começou a chorar tentando se controlar colocando as mãos no rosto

- Eu sei.- Índia agarrou a mão dela

Helena respirou fundo, limpando a maquiagem borrada e encarrou Índia, nunca imaginariam estar frente a frente, como amigas.

- Então... Você vai na casa do Daniel hoje?- Helena sussurrou para Índia

- Talvez, o meu pai quer tentar falar com ele... Se você quiser ir tentar também, a gente pode ir....

- Não, eu sou horrível... a pior pessoa do mundo com sentimentos.- sussurrou de volta- Mas porque o seu pai ia querer falar com o Daniel?

- Nós somos irmãos.- Índia falou baixinho em um sopro

- O que!?- Helena não pode esconder a surpresa- Puta merda, tipo irmãos mesmo? Ou irmãos, sem um laços sanguíneo?

- Por parte de pai, o Wagner usou isso para tentar nós atingir, quando a gente namorava, não sabíamos, nem imaginávamos isso!

- E eu achando que não ia ficar pior.- Helena riu- Desculpa... Eu disse que era horrível.

- Porque não comemos a assistimos algo? Ou qualquer coisa?

Helena concordou e as duas foram para a sala se esparramando no sofá, escolheram a um filme clichê adolescente e conversavam enquanto assistiam. Felizes, sem ameaças, sem mortes, sem Unicórnio. Era assim que as coisas deveriam ser.

- ...minha mãe quer que eu vá para a faculdade bem longe daqui...- comentou Helena- se fosse possível ela me mandaria para outro país!

- Acho que eu vou morar com o meu pai... Ele acabou não conseguindo o emprego por aqui e voltou para Conquista.- Índia apontou para a televisão e as duas riram

- Eu não me importo em ficar para trás.- Helena disse enchendo pegando o celular - Agora as coisas estão a nosso favor, agora estão sobe nosso controle.

- Somos sobreviventes.- Índia completou

- As pessoas me chamam assim, comentam isso nas minhas fotos, muita gente começou a me seguir por que eu sou a outra sobrevivente.- ela pegou o celular e mostrou para Índia- Popular.- piscou para Índia, como fazia com Mara

Terminaram o filme e continuaram a conversar, uma hora ou outra o assunto caia na mesma lacuna, Wagner Pacheco, o garoto que tinha se passado por bonzinho e na verdade era um monstro, ou melhor, um Unicórnio. Índia contou sobre o que ele tinha dito sobre a festa de Halloween e nenhuma das duas se lembrava de alguém vestido de Unicórnio, não era uma novidade, não se lembravam de quase nada. Wagner estava morto e vários segredos haviam sido enterrados com ele.

A investigação havia respondido algumas perguntas, as câmeras nas casas eram fruto de pequenas invasões e momentos oportunos, como festas e trabalhos de escola, acreditava-se também que foi nessa deixa de trabalho escolar que Wagner conseguiu explorar a casa de Daniel e descobriu a verdade sobre a paternidade, existiam ainda mais filmagens sobre Índia e Daniel, Joana sempre esteve na cidade, havia trancado a faculdade muito antes da morte de Pablo e em seu computador existiam diversos textos de ódio aos estudantes da escola Santa Borgonha, incluindo um plano de como invadir a escola e explodir boa parte dela e as primeiras mensagens trocadas por ela e Wagner.

Helena contou sobre Mara, sobre a Mara que ela conhecia e sobre como ela era pior melhor amiga do mundo, falou um pouco sobre Raphael, não eram nada além de conhecidos que se desgostavam, Índia participou da conversa falando coisas muito pontuais, já que não conhecia nenhum deles de um jeito profundo, sobre Mateus, ainda não se sentia pronta para falar nem sobre ele e nem sobre o sentimento que ele havia deixado. Deram algumas gargalhadas entre a conversa, nem tudo era tristeza, existiam boas lembranças sobre o ensino médio.

Laura, Paloma, Rafael, Jonas, Pablo, Suzana, Leonardo, Mara, Augusto e Mateus. Nunca seriam esquecidos.

Helena foi embora antes que escurecesse, a garota saiu sorridente e Índia esperava que aquilo durasse, as duas haviam amadurecido.

Índia fechou a porta e voltou para dentro do quarto, pegou o celular, sua foto de bloqueio de tela era Mateus, era uma foto zuada, uma pose estranha, que ele mesmo havia mandado enquanto trocavam mensagem, era uma bonita foto que começava a sobrepor a lembrança do corpo dele no chão ensanguentado, Índia se controlou e respirou fundo.

Desbloqueou o telefone e discou o número de Daniel, não esperava que ele fosse atender, o rapaz agora tratava o celular como uma arma, entendia que a qualquer momento uma mensagem ameaçadora chegaria, mas quando a chamada foi atendida Índia quase chorou de emoção ao ouvir a voz do rapaz do outro lado da linha.

- Eu quero te ver.- Índia disse- Você precisa abrir a porta para mim. Daniel, por favor.

- Eu preciso de você.- ele disse é logo em seguida desligou

Índia pulou da cama, calçou os sapatos e correu até a casa de Daniel, era distante e parou na porta ofegante, Fernando abriu a porta encarando a garota e a deixou entrar, ela correu enquanto subia a escada quase tropeçando e encarou a porta do quarto do Rapaz, respirou fundo antes de bater na porta.

Assim que a porta foi aberta Índia se jogou para dentro do quarto, a luz do corredor iluminou um pouco a escuridão e ela e Daniel se encontraram em meio a um abraço apertado e lágrimas, tombaram no chão, tantas lágrimas que não podiam ser contidas, Índia segurou o rosto de Daniel analisando-o, estava mais magro, com olheiras profundas e cabelo grande.

- Tudo está bem agora! Acabou!- Foi a única coisa que Índia disse voltando a braço-lo

Tudo que ela havia pedido por longos meses era paz e agora, finalmente, parecia que ela havia a encontrado, com Daniel ao seu lado.

Índia Brandão, sabia que agora podia levar sua vida em paz.

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