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Não era o melhor começo de semestre, a tarde estava quente, as mesmas caras, mesmos comportamentos espalhafatosos. Daniel mantinha o olhar perdido no quadro, mesmo sem professor em sala, ou algo no quadro, era o ponto em que a sanidade dele estava focada  principalmente com o assunto do momento, sendo sobre algo tão tosco. 

Todos falavam sobre o veterano que tinha recebido uma mão em uma caixa, uma mão sem o mindinho, e isso era o que mais o deixava receoso sobre aquilo tudo, não deixava de pensar em Sofia e Diego e misturado a isso estava Índia, não era uma boa ideia encontrá-lo, mas não parecia certo deixá-la abandonada, seria um bom assunto para conversar com a psicóloga. 

O professor entrou na sala e começou a explicar o plano de curso, fazendo Daniel se perguntar o mesmo que perguntava toda vez que lembrava de estar cursando engenharia. Como tinha chegado ali? Ele sabia bem todo o esforço que tinha feito, mas ainda parecia uma enorme brincadeira, como se tivesse simplesmente acontecido. Em meio a toda aquela cansativa explicação se distraiu com o celular, encarava o contato de Índia, talvez um oi... ou um...

— Daniel! — Levantou os olhos para ver Luan que estava virado estendendo um papel para ele — O plano de curso. 

— Valeu... — pegou o dele e passou os outros para trás

— Mais uma matéria pra lascar comigo. — Luan sussurrou 

— Como se você fosse o único. — Devolveu

Luan era a pessoa que tinha ficado mais próxima a ele no decorrer do curso, ou melhor dois semestres, não era o melhor aluno, Luan sempre estava arrastado em alguma matéria, perdido em outras, mas no fim conseguiu dar seu jeito, ele dizia que Daniel era o exemplo de aluno, dedicado e compenetrado, passava em todas as matérias com êxito, eram opostos, mas amigos.

A aula foi leve, somente o começo do tormento de cálculos, as próximas não foram também muito exigentes, se é assim que podia chamar sair da sala com algumas provas e projetos já com data marcada. Luan e Daniel saíram da sala indo direito pra lanchonete.

— Achei que tivesse se tornado adepto a comer só em casa. — Daniel brincou — Pagar quatro reais em um suco com salgado, não é vantagem. 

— Não vou pra casa agora... — Os olhos escuros de Luan estavam focados no bauru que ele mordia — Preciso entregar um documento no serviço.

— As vezes eu me esqueço que você é um adulto.

— Não é assim também, são só 3 anos de diferença. 

— Me sinto como se eu tivesse 15 anos, só que morando com minha tia.

Tia Sabrina era um anjo, a irmã do pai o tratava muito bem, fazia tudo que era possível para ele e cuidava de um jeitinho carinhoso. A decisão de se mudar foi tomada antes mesmo de passar no Instituto Federal, a única coisa que os pais conseguiam consentir era que ele devia sair dali, Luana continuava a mesma e ainda tentava mandar na vida do filho a distância, Daniel sentia falta somente de Rafael, o irmão mais novo estava cada dia mais crescido e mais distante.

— A sua tia é massa, praticamente uma santa, lembro até hoje da pizza que ela fez pra gente no primeiro semestre. 

—  A gente tirou três naquele trabalho. — Daniel riu se lembrando daquela decepção 

— Quer uma carona? — Ele encarou o corpo magro de Luan, os olhos escuros o encararam profundamente, as roupas escuras ressaltava a pele branca e o cabelo escuro cortado baixo 

— Não vou te atrapalhar?

— Eu só vou entregar o documento, e depois te deixo em casa.

— Bem... — Daniel olhou o telefone, uma mensagem da tia e depois o amigo que se levantava — Melhor é que eu vá pra casa...  É que a minha tia mandou mensagem. 

— Então eu te deixo primeiro.

— Não, você vai resolver seus problemas, o ônibus não demora. — Daniel se levantou — Rápido pra nós dois.

— Tá bom. — Luan revirou os olhos e estendeu a mão para ele — Até amanhã.

— Até. — Eles se cumprinentaram sorrindo e Luan começou a se afastar 

— Daniel! — Chamou sua atenção — Conversa com sua irmã. 

Luan sabia pouco de toda a história sobre o Unicórnio, suas informações iam até onde os jornais da época chegavam e depois contou uma historinha modificando o fato de Índia ser sua irmã, ele nunca tinha o pressionado a contar sobre o que tinha acontecido. Daniel pegou o ônibus rapidamente naquele fim de tarde e mais rápido ainda estava em casa. 

Tia Sabrina também tinha acabado de chegar, professora da rede pública, estava cansada depois de uma tarde de trabalho e morta de fome, passando um café na cozinha. Ela sorriu ao ver Daniel. 

— Seu pai ligou. Ele e Rafael vem pra cá no fim de semana que vem. 

— E a minha mãe? 

— Você sabe que ela não vem. — A tia não tinha medo de falar sobre Luciana, principalmente se envolviam falar algumas verdades — Ela não me suporta, desde sempre, ela sempre me tratou como se eu estivesse querendo envenenar seu pai contra ela. 

— Mamãe tem problemas com todo mundo. — Daniel abriu o armário atrás de pão mas não encontrou — Vou na padaria.

— Pera. — Sabrina abriu a geladeira — Traz leite, queijo, e pamonha se tiver. — colocou dinheiro sobre a mesa e voltou para o café

Daniel largou as coisas no quarto e foi ao banheiro, pegou o dinheiro e foi até a padaria. Não era o caminho favorito, escuro e silencioso, mas estava acostumado, a padaria em si estava em uma rua movimentada o que o fazia se sentir um pouco mais seguro... mas Suzana tinha sido pega em plena luz do dia dentro de casa, imagine ele, sozinho em uma rua escura... afastou o pensamento, nos últimos meses estava difícil de controlar as coisas ruins voltam a sua mente quase aleatoriamente, mas ele tinha parado de ver Wagner, isso garantia que os remédios ainda estavam fazendo efeito.

Wagner tinha se tornado uma figura recorrente  nos dias de Daniel,  morto o Unicórnio conseguia atormentá-lo, aparecia em pesadelos, quando estava com a cabeça vazia, chegou ao ponto de vê-lo e ouvi-lo, as vezes debocha  outras prometia o amor eterno, mas os remédios e as consultas tinham feito o fantasma desaparecer. Chegou na padaria pegando leite e queijo e indo pra fila do pão, só não achou a pamonha, pagou, agora teria que fazer o caminho de volta. 

Talvez o vento estranho e frio o fez pensar que algo estava errado, olhou em volta, ninguém, ninguém saía da padaria, ou andava pela rua, ou saia do condomínio ali perto, era apenas sua impressão. Andou calmamente pela calçada, até o celular tocar rompendo com qualquer silêncio existente, irritante, pensou puxando o celular do bolso e desligou a ligação, ainda com o celular na mão recebeu uma mensagem de um número restrito. 

Você ainda anda por 
ruas escuras à noite.
Onde está o seu senso de perigo?

Olhou em volta por impulso, como era de se esperar, não havia ninguém ali. Respirou fundo, aquele era o número que mais tinha durado, suspirou ao pensar que algum engraçadinho tinha descoberto seu número novamente e mandava mensagens, quando voltou a andar o celular apitou novamente.

Acredite quando eu digo,
Você está em perigo. 
Eu quero te ver sangrar.

Daniel guardou o celular no bolso furioso e dobrou a esquina, Eu quero te ver sangrar, muito engraçado, a lembrança de Wagner morto passeou em sua mente, sacudiu a cabeça, tentando focar sua vista em alguma coisa, o poste a alguns metros, apenas continuou pelo passeio, apertando o passo, o celular tocou novamente, dessa vez ele meteu a mão no bolso e atendeu com raiva. 

— Me diz aí, você é o Unicórnio e vai me matar? Ou é minha culpa todo mundo ter morrido? Eu sou o Unicórnio? — Daniel soltou um suspiro nervoso

— Daniel... — O sussurro lento e robótico — Isso não é uma piada... 

— Nunca é! — Continuou andando possesso de raiva 

— Quando a Índia matou o Wagner, quando a Helena matou a Joana, eu vi. Sem vida, eles ficaram mais bonitos, mas você deveria ter sido mais ativo, sabe, ter morrido pelo menos.

— Você é um babaca. 

— Daniel, a gente se vê no inferno.

Foi o suficiente para Daniel travar, as mesmas últimas palavras de Wagner, só podia ser coincidência, da mais absurda que fosse, ninguém sabia daquelas palavras, nem Índia. Olhou em volta, tentando se mexer enquanto seu rosto apenas encarava quem se aproximava, o escuro não o deixava enxergar direito, a roupa preta de quem se aproximava não o ajudava muito.

— Por que você não corre? Eu te assustei? — Não consegui responder a voz robótica do outro lado da linha — É a sua vez de ir para o inferno. 

A ligação desligada fez Daniel buscar o máximo de ar possível, a figura correu na direção dele e Daniel tremeu por um instante pensando no que realmente ia fazer, mas as pernas não se mexiam, chegava a ser uma cena ridícula, tão ridícula que a pessoa de preto parou de correr e começou a andar, parando o suficiente para que Daniel identificasse a máscara de Unicórnio e a faca em sua mão.

— Porra. — Sentiu a perna descolar do chão e seu corpo ser tomado pelo caos — Porra. 

Correu como nunca tinha corrido antes, atravessando a rua em desespero, subiu o passeio aos tropeços, ainda segurando as compras  e o telefone em mãos, quando dobrou a esquina sentiu seu corpo se chocar com alguma coisa, e rolou pelo chão. 

— Caralho. — Resmungou a outra pessoa com quem ele tinha se chocado, começando a se levantar — Você ta b... — parou de falar assim que viu o Unicórnio que andava em direção a Daniel, ignorando-o — Eu vou chamar a polícia! — Gritou em meio ao desespero, vendo o Unicórnio encarava e depois correr 

— Merda... — Daniel resmungou baixinho, vendo o pão espalhado e o leite derramado no asfalto

— Você tá bem? — O rapaz correu até ele — Que merda foi aquela? 

— Normal. — Respirou fundo tentando se levantar e vendo o joelho completamente ralado e sangrando 

— Normal!? Cara, isso não foi nada normal. — O rapaz o ajudou a levantar, Daniel encarou o cabelo cacheado e a barba rala dele — Seu joelho... 

— Eu to bem... — Pegou o celular do chão — Quebrou. — tentou ligar o celular novamente e nada — Puta que pariu! — jogou o celular no chão assustando o rapaz 

— Você não tá bem, vamos até a casa da minha amiga, lá você pode ligar pra alguém e damos um jeito no seu joelho... — Ele observou Daniel mancar e esfregar a testa completamente tenso — Eu sou o David.

— Daniel. — Segurou a mão dele e depois o sentiu passar o braço em suas costas para ajudá-lo a caminhar

— Eu sei.

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