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Índia acordou assustada com o barulho das motos passando na rua, pareciam tiros. Ela odiava qualquer barulho, qualquer coisa que a lembrasse do que havia ocorrido. Se levantou da cama e procurou a porta do quarto, era estranho estar com o chão limpo, sem papéis, fotos, roupas, qualquer coisa jogada no chão mas tudo já estava empacotado, foi para a cozinha pegando um copo de água. Ela não queria deixar aquela casa para trás mas precisava, nada era o mesmo, as pessoas a encaram pela rua, falavam por aí, alguns tinham medo, a internet era a pior parte havia um grupo que achava que ela era a assassina e estava dedicado a provar isso, eles nem ao menos a conheciam.
Largou o copo na pia e voltou para o quarto. A janela já estava aberta quando saiu? A porta do guarda roupa estava mesmo fechada? E as malas, aquela era a posição que tinha arrumado? Índia começou a respirar rapidamente, sentia tudo queimar, barulhos, sombras, havia alguém ali? Ela se sentou no chão e começou a tentar se acalmar. Não há ninguém aqui, repetia para si mesma, não há ninguém aqui.
Voltou para a cama cobrindo todo corpo com a coberta. Odiava a vida que tinha agora, ansiedade, ataques de pânico, insônia, ainda não conseguia controlar a respiração, sua mente tentava lembrar das técnicas que tinha aprendido mas nada vinha em sua mente, ainda tremendo tirou a coberta do rosto e se sentou encarando o nada, a escuridão.
Não percebeu quando adormeceu, apenas acordou com a claridade que entrava pela janela, buscou o celular, eram nove horas da manhã, suspirou vendo a foto de Mateus em sua tela de proteção, ela gostaria que ele estivesse ali, talvez eles nem estariam juntos, mas ela gostaria que ele estivesse vivo. Se levantou e foi para sala, a mãe estava ali, sentada na mesa mexendo no celular e sorriu ao vê-la.
— Como foi a noite?
— Não foi das piores.— Índia foi ao banheiro e voltou a sala
— Bom dia minha flor.— Cecília abriu um sorriso
— Bom dia mamãe.— as duas se abraçaram forte— Então, o pai falou alguma coisa?
— Bem, ainda não, mas ele deve falar algo até de tarde. Índia, eu não sei se é uma boa ideia...
— Mãe,— colocou café na xícara que estava em cima da mesa— É claro que é uma boa ideia, finalmente vou sair dessa cidade...— Índia respirou fundo bebendo o café— Eu sei que está preocupada mas quero começar essa nova fase, a universidade...
— Eu não falo em relação a isso, fico preocupada é claro, mas sei que seu pai cuidará bem de você, digo em relação...
— Dois anos. Fazem dois anos e eu não consigo esquecer por um segundo. Eu preciso respirar um novo ar. O Unicórnio não pode me manter presa mais...
O debate foi interrompido pelo bater na porta, Cecília se levantou e a abriu, o pai de Índia entrou sorrindo, ela foi até ele trocando um abraço apertado.
— Você podia ter me avisado que chegaria agora. — Cecília encarou Antônio— Me dê uma previsão ou qualquer coisa.
— Eu sei... Mas saí cedo...
— Sorte sua que ela já arrumou as coisas.— Cecília pousou o olhar em Índia— Nunca vi tanto lixo sair de um quarto.
Os três riram. O café da manhã não se prolongou muito, Índia queria fazer tudo rapidamente, colocar as coisas no fundo do carro do pai não foi um problema, queria poder esquecer as lembranças ali, mas sabia que iriam com ela aonde quer que ela fosse.
A mãe a olhava com ternura, era a primeira vez que Índia ia para longe, mesmo a garota já tendo vinte anos ainda era seu neném. O pai não se cabia em felicidade, as coisas para ele corriam do melhor jeito possível, ele havia conseguido um emprego fixo, havia conhecido uma mulher e em menos de um ano já estavam morando juntos, Índia ainda não conhecia sua madrasta, nem a filha de nove anos dela, mas tinha a certeza que se daria bem com elas.
As duas da tarde Índia entrou no carro, ela e a mãe já haviam chorado todas as lágrimas de felicidade possível, estava quase pronta para partir, quase, ainda tinha um lugar que ela precisava se despedir.
— Você tem certeza disso? —perguntou o pai enquanto esperava o sinal abrir
— Toda.
O pai dobrou a esquina e começou a dirigir, Índia tentou evitar de olhar para o antigo mercado dos tios de Wagner, o lugar agora era uma pizzaria chique, seguindo o caminho, passaram em frente a Escola Santa Borgonha, por fora tudo estava como antes, a mesma iluminação, as mesmas cores, mas as memórias de Índia haviam sido traçadas de sangue, o carro não parou, aquele era o lugar do começo mas não era da energia dali que Índia queria se livrar, continuou até parar em frente a um terreno abandonado.
Índia desceu do carro com as pernas tremendo, a casa continuava ali, agora mais velha e depredada, ela podia ver tudo em sua mente, ela, Daniel e Wagner entrando ali correndo, as paredes repletas de fotos, não emitiu nenhum som, apenas levantou a mão, mostrando o dedo do meio para aquela casa, para todas as coisas horríveis que tinha vivido ali, a lembrança Mateus morto pairou em sua mente, o sangue, o corpo, o assassino, o estômago embrulhou, Índia se conteve respirando fundo, cambaleou de volta ao carro, respirando vagarosamente, levou as mãos ao rosto, queria poder simplesmente apagar tudo de sua mente.
— Quer ir em mais algum lugar? — perguntou o pai e Índia balançou a cabeça — Então, vamos começar nossa viagem.
Índia não riu imersa ainda em seus pensamentos, mas tinha certeza que estava pronta para sair dali.
A viagem não foi tão entediante quanto ela esperava, mesmo passando cinco horas dentro do carro, conseguiu se manter animada, a placa indicando que estava entrando em sua nova cidade a fez bater palmas. Um novo começo.
O pai ia indicando os caminhos que a levariam para vários lugares, Índia não prestava atenção, sabia que levaria anos para aprender se locomover sem ajuda por ali, mas já se imaginava andando sem ser encarada. O carro dobrou a esquina e parou em frente a um condomínio, o portão foi aberto e Antônio acenou para o porteiro, parou em frente a um dos muitos prédios dali.
— E então? — O pai perguntou enquanto mexia no celular
— É grande... Diferente...
— Vamos? — Antônio desceu do carro, Índia o observou por um tempo, ele foi ao encontro de uma mulher que saía do prédio
Índia desceu do carro e andou até eles com as mãos suando. O que pensariam dela?
A mulher negra tinha os cabelos cacheados presos em um rabo de cavalo, ela e Antônio pareciam um casal apaixonado, a garotinha ao lado da mãe encarou Índia por alguns instantes e voltou a atenção ao celular.
— Índia, essas são Ruth e Stefany.
Ruth a cumprimentou com um abraço longo e apertado, enquanto Stéfany permaneceu vidrada no celular, ganhando um tapinha de leve da mãe, a garota apenas sorriu para Índia. Eles começaram a tirar as coisas do carro, teriam que subir pelo menos três lances de escada.
A casa era pequena mas ainda sim aconchegante, Índia correu para seu novo quarto o analisando de cabo a rabo, era pequeno, apenas uma cama de solteiro e um guarda roupa, mal ia sobrar espaço para encher o chão de bagunças, mas pelo menos o quarto ia ser só dela. Olhou as caixas no chão, analisando quais seriam mais rápidas para esvaziar, mas nenhuma parecia tão urgente, pegou o celular e voltou para a sala onde Antônio e Ruth conversavam.
— Pai, qual a senha do Wifi?
Assim que o homem terminou de digitar a sequência de números, o celular recebeu diversas mensagens da mãe, respondeu rapidamente e se manteve em uma mensagem quase surpreendente que tinha recebido. Daniel.
Eles tinham se perdido ao longo do tempo. Índia havia ajudado Daniel de todas as formas possíveis, talvez fosse culpa do destino, mas esfriou, o fato de serem irmãos os deixou confusos e não criou nenhum laço de sentimento fraterno, principalmente pelas lembranças do ensino médio, e então Daniel se mudou, as conversas foram ficando mais raras, aos poucos quase inexistentes, ela até tinha mandado uma mensagem sobre mudar de cidade, mas foi apenas visualizada, a última vez que se falaram de verdade foi sobre a morte de Sofia, aparentemente em decorrência de um assalto, e bom, isso já fazia três meses.
A mensagem era simples e bem a cara de Daniel.
Ei, o Antônio falou que
você tá vindo pra cá.
Me fala quando chegar.
Talvez a gente se veja.
É hora de esquecer os
velhos demônios.
Índia riu, ignorando o fato dele só ter se atentado a vinda dela porque o pai havia falado, os velhos demônios estavam completamente enterrados a sete palmos de terra, mas algo ainda não saia de Índia, era como se ela soubesse que uma cidade nova, vem acompanhada de novos demônios.
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