4 - Toca do Coelho

   Um zumbido insistente se meteu em seus ouvidos...

   Era alto, estridente e doloroso de se ouvir, como o ruído da TV quebrada, lá no orfanato. Velha demais até para os padrões menos exigentes. Stella não conseguia dizer onde estava, ou como diabos viera parar alí, até porque, ela estava aterrorizada demais para sequer cogitar a ideia de abrir os olhos. A cabeça doía, como se estivesse recebendo marteladas constantemente, alternadas entre uma batida e outra do seu coração apavorado.

   Queria chamar por Emmily, a que sempre sabe o que fazer, talvez Billy, e sua lógica irrefutável, ou, na pior das hipóteses, chamaria até por Joe, nem que precisasse aguentar as piadas, os apelidos e as pequenas discussões bobas. No entanto, Stella sabia que ninguém viria, não importa o quão fervoroso fosse o seu clamor. Então, só lhe restava permanecer encolhida sobre si mesma, com os olhos bem fechados e o medo assombrando os cantos mais obscuros da sua mente.

   Isso não é real... Isso não é real... Não é!

   Estalidos estranhos disputavam espaço com a estática, alguns distantes como o ladrar dos cães na madrugada, outros tão perto quanto passos pelo piso imaculado. Pouco a pouco, conforme os minutos passavam, as memórias de Stella começavam a se fundir ao ambiente decadente, misturando-se em uma sinfonia de desesperança e abandono. Ela podia sentir o frio tomando conta do corpo, paralisando os músculos e tomando cada uma das suas lembranças, percepções e anseios.

   Isso não é real... Não é real... É real?

   Já não sabia dizer há quanto tempo estava de olhos fechados, ou se algum dia voltaria para a luz novamente. Ser criança não importava mais... Ser órfã não importava mais... Estar viva não importava mais...

   —Stella, está me ouvindo? – Um sussurro chegou aos seus ouvidos, algo que parecia ser a voz de Emmily, embora distante e abafada. – Stella, acorde!

   Motivada pela ordem, a garota finalmente abriu seus olhos...

   —Emmily? – Disparou, em desespero.

   Mas ninguém respondeu desta vez...

   Stella arfava, sentindo um frio de arder os ossos, enquanto lutava para compreender o que estava, de fato, acontecendo. Diante das suas pupilas dilatadas, a sala da senhora Delfins se desenhou perfeitamente; exibindo o mesmo papel de parede engordurado, maneki nekos nos mais diversos tamanhos e cores, todos eles exibindo o mesmo sorriso felino doentio, e o aceno incansável de uma das patas dianteiras. Até mesmo a poltrona era a  mesma. Levemente torta para a esquerda, berrando em verde limão e o odor pungente de perfume vencido. Revistas, pôsteres, prateleiras, a coleção de selos do falecido senhor Delfins...

   Tudo igual... Com a única excessão de que, alí, o ar era mais parado, taciturno e gélido. Transmitindo a mesma morbidez de uma foto polaroide antiga.

   —Mas o que é que eu estou fazendo aqui? – Stella se perguntou, estranhando a própria voz.

   O som da estática continuava a dominar o ambiente, vindo da mesma TV velha, cujos botões estavam todos arrancados e a tela brilhando em uma profusão de pixels enlouquecidos. Stella ainda se sentia dormente, duvidando dos próprios pensamentos e se perguntando se aquilo era algum tipo de sonho esquisito.

   —Isso não faz sentido... – Voltou a falar, enquanto girava sobre si mesma.

   Agora que já estava desperta e um tanto quanto curiosa, a garota se aventurava pelo espaço deserto. Caminhando com uma certa lentidão, pois seu corpo parecia não responder aos comandos do cérebro. Após alguns segundos de confusão, ela finalmente lembrou-se de olhar para a porta. Já que estava no orfanato, bastava apenas sair da sala e buscar por Emmily, onde quer que ela e os outros estivessem.

   Se atreveu a dar um passo, depois outro e, quando se deu conta, já segurava a maçaneta fria e pálida entre os dedos da mão direita. Bastava apenas sair agora, era simples. Quem sabe toda aquela loucura com o Todd Clifford tenha sido apenas um devaneio desvairado, um pesadelo depois de um filme de terror, ou quem sabe uma das histórias malucas do Joe...

   Stella hesitou... Aquilo não parecia ser certo.

   —Tenho a impressão que isso já aconteceu antes... – Ela analisa o espaço uma última vez.

   Com um puxão decidido, a porta se escancara para o mundo exterior, sem mais rodeios ou interrupções. E o que deveria ser o hall de entrada da mansão Hawkins, se tornou um potente clarão amarelado, forte o bastante para fazer Stella apertar as pálpebras e recuar. A sala havia desaparecido por completo, como se a foto polaroid houvesse enfim se desfeito. Em seu lugar, brotara um amplo espaço vazio, repleto de penumbra e silhuetas disformes, cujos gritos longínquos e pilhas de destroços abandonados lhes serviam como consolo.

   —Mas que... – Stella sussurrou, sem entender nada.

   Ela queria olhar para aquele lugar estranho, mapear a bizarrice evidente, antes que pudesse finalmente acordar.

   Não há tempo...

   Com um rodopio repentino, a gravidade se inverteu e jogou Stella para dentro da luz ofuscante. Levando-a ao momento em que tudo mudou na sua vida e fez dela o alguém de hoje. Momento este que não se recordava.

   Nem se quisesse.

***

   Stella estava dentro de um carro agora, sem ter ideia de como chegara até alí. Seus pensamentos corriam num ritmo acelerado demais para sua jovem mente compreender, o que fazia a dor lancinante na cabeça aumentar ainda mais. Ao seu lado, um bebê risonho e rechonchudo lhe encarava, sorrindo com os dentes que ainda não tinha e a curiosidade que só os bebês tem. A menina desconhecida parecia satisfeita, exibindo a pele escura, tufos de cabelo ondulado e grandes olhos verdes, traços dos quais Stella também era dotada.

   Mais confusa do que jamais esteve na vida, a garota encarava o bebê, acompanhando as curvas sinuosas da auto estrada estadual. Estavam saindo de Curselake, Stella sabia disso por conta das placas de sinalização naquele trecho. Nos bancos da frente, um homem e uma mulher discutiam vorazmente. Os gritos furiosos se perdiam pelo ar, cada vez mais intensos e ofensivos. Algo sobre bebida e divórcio, segurança do bebê, hipoteca, desemprego e infidelidade.

   —Não pode ser... – Stella concluí, ao finalmente perceber onde estava.

   Aquele era o dia do acidente, o dia em que seus pais morreram...

   —Como isso é possível?

   A discussão continua, cada vez mais acalorada. Stella tentava ter um mínimo vislumbre do rosto deles, saber como eram de verdade, mas, por incrível que pareça, ela não conseguia tirar os olhos do bebê.

   O ápice final estava se aproximando tão rápido quanto uma flecha em direção ao alvo. A ponte sobre o rio Silvercreek, o cervo surgindo do nada, a derrapada pelo asfalto congelado, o caminhão e, no findar deste trágico espetáculo, o choque violento da batida. Porém, milésimos antes de colidir com o suposto cervo, Stella foi tomada por um lapso de consciência e lançou sua atenção para a estrada.

   Só então ela o viu...

   Lá estava ele, exibindo a mesma cabeçorra de coelho, os dentes podres, os chifres retorcidos, os membros ossudos e os olhos rubros como sangue. Ele fizera seu pai frear de repente e perder o controle. Ele fizera o carro bater violentamente. Estava claro como a luz do dia agora...

   Mas como Stella sobreviveu? Como podia, ela era só um bebê?

   Disseram que havia sido um milagre... presa nas ferragens, enquanto os pais haviam sido arremessados para longe. Já não havia mais sinal do assassino de Todd Clifford, tão rápido surgiu quanto desapareceu na paisagem. Levando consigo a sombra escura e macilenta que formava sua pele enrugada.

   Stella via tudo em câmera lenta.
  
   O caminhão atingindo o carro, os estilhaços de vidro quebrado, os corpos arremetendo para frente. Ela havia transcendido os limites do próprio tempo para estar alí agora, revivendo o momento em que perdera tudo o que tinha importância. Desesperada, a pobre coitada se agarrou a versão mais nova de si mesma, esperando proteger uma ínfima fração de toda aquela tragédia.

   ***

   Um zumbido insistente se meteu em seus ouvidos...

   Espera... isso já não aconteceu antes?

   A estática, a TV quebrada, a angústia de se perder e o sussurro que lembrava a voz de Emmily... Estava acontecendo tudo de novo. Mais uma vez, Stella voltou ao início, ainda mais confusa e atordoada do que na vez anterior. Quando estava prestes a tomar consciência do que realmente lhe acontecia, os pensamentos simplesmente escapavam por entre os dedos, forçando-a a sempre seguir adiante, não importa quantas vezes fossem necessárias. 

   De novo, de novo e de novo...

   Ela seguia o roteiro, sem se importar. Sua ânsia de escapar se tornara vazia e sem propósito, de modo que só restasse o loop, e as infinitas voltas que dava, para chegar em lugar nenhum. E por mais que uma parte diminuta da sua mente implorasse para que se libertasse da armadilha, Stella não se sentia capaz de obedecer. 

   —Tenho a impressão de que isso já aconteceu antes... – Repete, se detendo um pouco mais desta vez.

   "Acorde..."

   Uma voz sussurrada ecoa das profundezas dos seus sonhos...

   E desta vez não era Emmily.

   "Acorde... Antes que seja tarde!"

   —Quem está aí? – A garota praticamente grita, quebrando o ciclo vicioso em que estava profundamente imersa.

   Mais do que depressa, Stella desiste de abrir a porta e solta um silvo agonizante, pois a dor que sentia era forte o bastante para fritar os seus miolos. Por um momento, o cenário, antes sólido e concreto, começou a se desintegrar e derreter, como se estivesse sendo exposto à um calor absurdo.

   —Mas que droga está acontecendo aqui? – Stella berra, apertando a cabeça entre as mãos.

   No seu entorno, as paredes, os móveis e a TV quebrada perdiam os seus contornos originais. Se misturando em uma gelatina pastosa e gosmenta, cada vez maior, a medida que blocos de concreto e circuitos elétricos eram convertidos em uma espécie de petróleo borbulhante. Stella só conseguia sentir pânico, enquanto lutava desesperadamente para abrir aquela maldita porta e enfrentar o seu passado, nem que seja por mais cem vezes seguidas. A garota esmurrava a porta, gritava até perder o fôlego e se debatia loucamente, mas nada adiantava. Agora, não havia luz, não havia mais sentido no universo e tudo o que ficou para trás, era a mais absoluta e densa escuridão.

   Isso até uma silhueta alta e ossuda saltar de dentro do mar de gosma...

   Um berro altíssimo calou a histeria de Stella, virando-se, para encarar a criatura responsável pelo acidente sobre o rio Silvercreek, há quase quatorze anos atrás. Alí estava ele, exprimindo todo o terror em sua existência miserável. Como se a carne houvesse deixado toda a extensão do esqueleto torpe, e os órgãos se misturado em porções generosas de tripas e sombras quase corpóreas. Os dentes tortos e serrilhados se impuseram com orgulho, voltando cada um a sua posição inicial, enquanto músculos e tecidos tomavam a derradeira aparência.

   Ele estava pronto para destroçar Stella alí mesmo...

   "O alçapão embaixo de você, rápido!"

   Sem pestanejar, a garota olhou para baixo e viu os contornos tímidos de diversas ripas estreitas, unidas umas às outras com pregos e parafusos enferrujados. Stella não tinha visto aquilo, durante os breves momentos em que se permitiu inspecionar o espaço, mais atentamente. No entanto, esse não era o momento adequado para se ater à detalhes tão pequenos. 

   Ainda mais com um monstro de dois metros de altura se materializando bem embaixo do seu nariz...

   Stella não perdeu tempo, reuniu forças de onde não tinha, entornou uma dose generosa de coragem e se lançou para dentro do vazio, instantes antes de ser apanhada pela criatura. Não se importava se fosse terminar em outro loop, contanto que escapasse daquela visão do inferno, já se dava por satisfeita.

   Ou pelo menos ela achava que sim...

   —Rápido! – A voz misteriosa voltou a se manifestar, bem mais nítida desta vez. – Não podemos deixar ele passar!

   Stella sente a gravidade se inverter mais uma vez, obrigando seu frágil corpinho magricela a emergir do chão duro, enquanto mãos gélidas e fortes lhe agarravam pelos ombros. O berro furioso vinha ao seu encalço, bem mais inflamado do que antes, embora soasse abafado por toneladas de terra seca e detritos diversos. Então, assim que Stella pôs os pés para fora da sala, o alçapão se fechou com um estrondo barulhento, forte o bastante para selar o monstro dentro da sua própria jaula. Pelo menos por um tempo, até que ele encontrasse uma brecha.

   —Puta merda! – Stella concluí, ofegante.

   Ela nem se deu ao trabalho de agradecer a alma gentil que lhe apontou o caminho para fora daquele pesadelo. Do jeito que estava, Stella se permitiu desabar contra o chão arenoso e vomitar até o que ainda não havia comido. Sentia o corpo inteiro tremer, os olhos pesarem e cada músculo seu implorar por uma pausa.

   —Você ainda está viva? – A voz obriga Stella a olhar para o alto, um pouco mais alerta do que cinco segundos atrás.

   Talvez o perigo ainda não houvesse passado...

    Com os olhos arregalados, a cativa recém liberta conteve mais um grito, ao reencontrar a garota do beco. Aquela que havia provocado um surto em Billy e desaparecido sem deixar rastro, através da rua escura. Seu vestido carmesim ainda era o mesmo, assim como os sapatos de couro, a palidez anormal, a máscara de coelho velha e surrada, exatamente igual.

   —Sim, estou... – Stella respondeu, sentindo o medo voltar a agitar a vontade de sair correndo.

   —Isso é incomum. – A garota torce o pescoço, fazendo meia dúzia de ossos estalar. – A maioria dos sonhadores já está bem morta...

   Stella era puro espanto.

   —O quê?!

   —Sonhadores... Você sabe... As pessoas assassinadas. Estão todas aqui. 

   —Então você está...

   —Morta? Sim, com certeza... Mortinha da Silva!

   Stella engoliu em seco, voltando a sentir aquela vontade louca de gritar e fugir. Se suas pernas pudessem aguentar o esforço...

   —Eu sou Johanna Crisp, é um prazer! – Apresentou-se a garota, cuja voz era suave, embora estivesse abafada pela máscara. – Qual é o seu nome?

   —Stella... Stella Hamith. – Ela retribuiu o cumprimento, sentindo dedos frios pressionarem sua mão direita.

   —Nome bonito!

   —Obrigada...

   Silêncio. Stella não conseguia acreditar que estava falando com um fantasma. E, a julgar pela roupa e pelo leve sotaque antiquado, era um espírito bem antigo. Tudo o que Stella mais queria agora, era saber o que fazer, para onde ir e com quem falar. Mas, tudo o que conseguia pensar era no carro derrapando, os gritos histéricos e o choque aterrador do impacto, lançando seus pais pelo vidro quebrado.

   —Não podemos ficar aqui... – Johanna se adiantou, voltando a ficar de pé. – Ele vai voltar logo. Papai não gosta quando saímos dos nossos quartos.

   —Espera um pouco... papai?! – Stella arqueou as sobrancelhas.

   —É assim que devemos chamá-lo. – Deu de ombros. – Vem comigo... Acho que sei quem pode tirar você daqui.

   As duas garotas estavam diante de um imenso aterro sanitário, na mais branda e aceitável das definições, por assim dizer. Milhares de colinas de lixo se erguiam do chão, arranjadas do modo desordenado, apenas para confundir qualquer um que ousasse perambular por entre destroços, entulhos e os mais diversos tipos de tralhas. A penumbra gelatinosa recaia por todo o local, tomando a imensidão de um céu sem nuvens, estrelas ou lua. No entanto, apesar do breu evidente, grandes focos de luz rasgavam o firmamento. Na forma de esferas esbranquiçadas, cujo brilho pálido refletia no topo das colinas e lhes dava um ar mais vigilante.

   Stella nunca esteve tão confusa e desorientada em toda a sua vida...

   —Para onde estamos indo? –  Pergunta, depois de alguns minutos caminhando sem rumo.

   —Não sei direito... – Johanna responde, para o desespero de Stella. – Precisamos encontrar uma pessoa... ou melhor, um lugar. Mas as coisas aqui nunca estão onde deveriam estar.

   Stella franziu o cenho, cogitando a ideia de que estava sendo atraída para uma armadilha.

   Trilhas estreitas serpenteiam por entre as colinas de destroços, juntando-se e separando-se em intervalos aleatórios de distância. Era como contemplar uma quantidade absurda de córregos e regatos de areia escura, escorrendo como vasos sanguíneos por debaixo da pele. Tudo o que Stella conseguia ver eram as esferas luminosas e as pilhas de entulho, se perguntando onde deveriam estar Emmily e os outros. Já que nem sequer se lembrava de como havia chegado naquele lugar tão estranho.

   —Você tem alguma ideia de onde exatamente estamos?

   —Não tem um nome específico... Mas foi o Papai quem fez. – Ouvir isso fez Stella ter um calafrio. – Eu chamo de Toca do Coelho, mas é um nome fofinho demais para um lugar tão escuro. Aqui nunca fica de dia.

   Johanna salta por sobre um skate quebrado, dribla dezenas de pneus de bicicleta enferrujados e cruza uma pequena ponte feita com palitos de churrasco. Para ela, era familiar perambular sozinha por aqueles ermos desertos, sem se lembrar para onde estava indo, mas ciente de que estava buscando algo.

   —Cuidado com as pilhas... Teddy não gosta quando eu tiro as coisas do lugar. – Ela recomenda, mas nem precisava, até porque Stella estava assustada demais para tocar em alguma coisa.

   —Quem é Teddy?

   —É o meu melhor amigo. Você vai adorar conhecê-lo. – A fantasma praticamente cantarola. – Se tem alguém que pode mostrar a saída, esse alguém é o Teddy. Mas ele não gosta de receber visitas, então é melhor eu falar primeiro.

   Ignorando a trilha, Johanna subiu a colina mais alta entre as centenas da área. Um tanto quanto desajeitada e temerosa, pois o terreno se mostrava extremamente instável. Ao chegar ao topo, olhou em volta, apesar da máscara tapando a face, e então voltou correndo para o lugar onde Stella esteve plantada. Havia algo naquele lugar que a deixava muito incomodada, fosse o frio de arder os ossos, ou não saber se aquela garota estranha, e aparentemente morta, era ou não confiável.

   —Encontrei! – Exclamou, cheia de empolgação. – Não é longe daqui, mas vamos precisar nos apressar.

   Dizendo isso, Johanna agarrou o pulso de Stella e desatou a correr como se não houvesse amanhã. Não houve tempo para protestar e, antes mesmo que se dessem conta, estavam diante de uma gigantesca mansão abandonada, plantada bem no meio da intersecção de diversas trilhas. Tinha um telhado lilás desbotado, janelas quebradas e hera crescendo por todas as paredes. A cerca retorcida guardava os seus alicerces, corroída pela ferrugem e manchas que lembravam sangue seco. Do lado de dentro, o quintal aparentava ser muito bem cuidado, onde cataventos de papel giravam incansavelmente, hasteados de forma aleatória pelo perímetro. Não obstante, além de ser uma visão admirável, havia um simples detalhe que tornava aquele monumento decadente ainda mais singular.

   Ele era inteiramente feito de plástico, como uma casa de bonecas...

   —Está quase na hora do chá! – Johanna dava pulinhos de alegria. – Nunca trouxe ninguém aqui antes.

   Stella estava surpresa demais até mesmo para manifestar uma opinião sobre o que a garota morta havia dito...

   Sem perder mais tempo, Johanna abriu os portões, que rangem em discordância, pois suas dobradiças raramente recebiam um tratamento adequado. Stella, em contrapartida, se mantém parada por alguns momentos, admirando a imponência do momento, sem acreditar que uma coisa daquelas fosse possível. Ela ficaria parada alí por muito mais tempo, se uma sombra enorme não tivesse se erguido atrás dela, grande o bastante para abraçar seu corpo inteiro.

   —Teddy! – Cantarolou Johanna, enquanto Stella era tomada por um profundo desespero.

   Lentamente, ela se virou para encarar um gigantesco urso de pelúcia encardido. Tinha rasgos grandes e remendos coloridos por toda a extensão do seu corpo, locais onde o enchimento esbranquiçado se fazia perfeitamente visível, tão felpudo quanto nuvens de algodão. Um dos braços jazia arrancado, assim como um dos olhos de botão, de um vermelho profundo e assustador. Mas, mesmo sem ter uma expressão humana, Stella podia jurar que ele estava com raiva.

   —Teddy, está é a Stella. – Johanna diz, assim que um silêncio momentâneo se instalou. – Stella, este é o Teddy Bear...

   Sem dizer mais nada, o enorme urso de pelúcia avançou contra a invasora, exibindo garras longas e um rosto comprimido em fúria. Seu porte avantajado pareceu crescer repentinamente, pronto pra expulsar uma já apavorada Stella, antes mesmo que ela pudesse dizer qualquer coisa.

   Ou berrar, o que certamente faria em situações como aquela...

   —Teddy não faça isso! – A voz de Johanna ecoou pelas pilhas de entulho mais próximas, fazendo algumas delas desabar. – É minha amiga, não machuque ela.

   Ao ouvir essas palavras, se é que um urso de pelúcia pudesse ouvir alguma coisa, Teddy recolheu as garras de sua única pata dianteira restante e voltou a exibir a mesma expressão congelada de antes. As orelhas se inclinaram para a esquerda, o focinho se remexeu impaciente, enquanto seu único olho bom dava uma boa olhada em Stella.

   Provavelmente estranhando o fato de ela não usar uma máscara, assim como Johanna.

   —Peço desculpas por ele... – Ela diz, já ao lado de Stella. – Desde que foi abandonado, Teddy não confia muito nas pessoas... Mas ele me ouve, então você estará segura.

  Stella concordou, seu coração batendo forte contra o peito.

   —É claro...– Ri, ainda relutante. – Você mora aqui?

   —Não exatamente, – ela baixou o tom de voz. – Estou procurando uma coisa, mas faz tanto tempo, que acabei me esquecendo do que era.

   —Sinto muito...

   —Tudo bem, mais cedo ou mais tarde, o que foi perdido sempre há de voltar para seu devido lugar... – Johanna riu. – Isso era o que minha mãe costumava dizer, toda vez que eu perdia minhas coisas.

   Agora do lado de dentro do quintal de Teddy Bear, Stella e sua mais nova amiga fantasma se sentaram em uma mesa pequena, embaixo de um pergolado repleto de trepadeiras e flores de tecido. Tudo alí era feito de plástico reforçado, desde as cadeiras até as vigas que imitavam a aparência de madeira envelhecida. Já sem sombra de animosidade, Teddy se sentou no chão, provocando um baita estrondo, assim que seu corpo desabou pesadamente. Stella se sentou na direção oposta, com medo do que o urso faria, caso tivesse outro acesso de fúria repentino, enquanto Johanna ocupou um lugar entre os dois.

   Silêncio...

   —Então... Teddy... – Stella começou, sem ter certeza do que estava fazendo. – Você sabe como sair daqui?

   Em resposta, ele apenas inclinou a cabeça, sem dizer uma só palavra...

   —Ela ainda está viva. – Johanna explicou. – Pode ser uma marcada... Os marcados conseguem chegar até aqui ainda vivos.

   —Como assim marcados? – Stella salta, sentindo o coração acelerar.

   —Papai escolhe sonhadores todo ano... Mas, às vezes, algumas pessoas olham nos olhos dele... Daí elas conseguem vê-lo de verdade.

   —E o que acontece com os marcados?

   —Os que sobrevivem enlouquecem, mas se forem pegos se tornam sonhadores também. – Johanna pareceu estar triste, por um instante. – Você tem pouco tempo... Sinto muito.

   Stella olhou para o chão, visivelmente aturdida. Se o que Johanna estava dizendo fosse verdade mesmo, o assassino de Todd viria atrás dela e seus amigos muito em breve.

   —Quanto tempo? – Pergunta, com os olhos salpicando de lágrimas.

   —Uma semana... É o tempo que o Papai sai da toca. – Explicou. – Depois ele se alimenta de nós, os sonhadores... Nós nunca podemos sair de nossos quartos, mas eu fugi, então estou livre, até ele dar um jeito de me trancar...

   Silêncio. Teddy acompanhava a conversa, sem dizer uma palavra. Em parte porque era mudo, e porque não havia nada que ele pudesse dizer para ajudar. Desesperada, Stella começou a chorar copiosamente, com medo de terminar morta ou louca, igual o velho Frederick. Como forma de consolo, Johanna lhe abraçou, embora seu toque fosse gelado e rígido como uma pedra.

   —Sinto muito ... – Disse, com a voz levemente entristecida. – Mas nem tudo está perdido, ainda há...

   Um berro furioso ecoou por toda parte, longo e agonizante, porém cheio de ódio.

   —Papai escapou! – Johanna estremeceu. – Teddy, está na hora, tire ela daqui. Se for pega aqui dentro, nunca mais vai acordar.

   Teddy se levantou de repente, sumindo para o interior da mansão. Alguns segundos se passaram, até que ele retornasse, trazendo consigo uma caixa cheia de fotos velhas e empoeiradas.

   —Escolha uma, rápido! – a garota praticamente grita, em pânico. – Segure com as duas mãos e não tire os olhos da foto!

   Sem perder mais tempo, Stella tomou uma antiga fotógrafa da casa Hawkins, quando ainda era um casarão requintado e belo de se observar. Naquele momento, pensou em Emmily, em Joe e em Billy, e que diriam, quando soubessem do destino que os aguardavam. Era tão cruel quanto a sombra que caiu sobre os seus olhos, assim que o mundo escureceu e a Toca do Coelho foi deixada para trás...

   Não pela última vez...

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