3 - Piter Coper
"Atenção todas as unidades, suspeita de múltiplos homicídios na autoestrada principal."
Viaturas planam por sobre as ruas agitadas. Suas sirenes ecoam por toda a cidade, atraindo a atenção de moradores desavisados, ou qualquer um que fosse curioso o bastante para ver o que diabos estava acontecendo.
"Não há sinais de um potencial assassino... Há crianças no local, órfãos da mansão Hawkins... Até o momento são as únicas testemunhas oculares."
Luzes piscam sem parar, alternando entre vermelho carmesim e azul safira. Aquele era um péssimo dia para um assassinato acontecer, as coisas estavam complicadas na delegacia e não havia estrutura o bastante para suportar uma investigação decente. Era um crime bárbaro, com certeza. Ainda mais bárbaro para uma cidade pequena como Curselake. Se os boatos de que havia um assassino à solta se espalhasse, seria como tentar apagar um incêndio com gasolina.
"Atenção, há vítimas feridas no local. Solicitar o envio de uma ambulância imediatamente!"
"Entendido, solicitando apoio médico agora mesmo tenente Martinez."
—Mas que merda está acontecendo nesta cidade hoje! – Uma voz rouca e estridente gritou ao rádio.
"Delegado Coper? Está a caminho?"
—Claro que estou, seu idiota! – Bradou. – Como deixaram o desgraçado que fez isso fugir?
"Não conseguimos chegar antes senhor, as crianças ainda não deram o depoimento, estão muito assustadas... Mas tenho certeza que ninguém vai escapar em pune."
—Droga! – Mãos firmes agarraram o volante, com uma força quase inacreditável. – Solicitando a guarda estadual... Lise, pode pedir reforços por mim? Não vamos dar conta.
"É claro Delegado Coper... Eu já contatei a delegada do condado, estarão aqui em meia hora."
—Você é demais Lise! Não quero os malditos da capital enchendo o meu saco! – Concluiu, encerrando a linha direta com o rádio da polícia.
Precisava pensar, colocar os pensamentos em ordem. Estava uma pilha de nervos...
Mais do que o normal!
Piter Coper era um homem alto e robusto, forte como um touro bravo e tão feroz quanto. Se criara em Curselake, desde que viera com os pais, de outra cidade, poucos meses após o seu nascimento. Sempre foi conhecido pelo seu temperamento explosivo e colérico, embora fosse calmo, no momento em que bem lhe fosse útil. Seu pai era xerife, assim como ele agora era delegado, mas que em muito se diferia, em personalidade. Depois que o velho bateu as botas, assumiu o seu antigo cargo e passou a cuidar da mãe doente, até que ela enfim encontrasse a conclusão inadiável da morte, há quase um ano atrás.
Com um ronco baixo, a viatura encostou contra o meio fio, a está altura cheia de policiais caminhando despreocupadamente por entre outros veículos, cones e avisos deixados ao acaso. Algo que irritou muito, um já enfurecido, Piter.
Odeio este lugar!
—Martinez! – Berrou, em meio a multidão de timbres diferentes. – Por que não fechou a estrada ainda?
Um rapaz assustado surgiu por entre os seus colegas. Trazia no olhar a aflição de alguém que estava a beira de um colapso nervoso. O que seria ainda pior, dadas às circunstâncias. Curselake já não tinha muitos agentes disponíveis, e não podia se dar ao luxo de perder mais um.
—Eu já fechei senhor... – defendeu-se. – O tráfego foi desviado há cinco quilômetros daqui.
Piter trincou o queixo, descontente por não ter o que reclamar.
—Onde estão as crianças?
—Na ambulância senhor, uma delas foi baleada.
—O quê?!
—Mas não é nada grave, o garoto vai ficar bem logo. Só vai precisar de alguns pontos e...
—Uma criança tomou um tiro e você está calmo desse jeito? – A voz do delegado falhou, por um momento. – Mandem todos para o hospital.
—Mas senhor, ainda não sabemos o que houve...
—Martinez, eu juro que se não me obedecer, o próximo a ser baleado vai ser você!
O rapaz vacilou sobre o olhar furioso do seu chefe. Estava fazendo o que podia, embora fosse apenas um funcionário, perdido no meio de uma confusão de proporções catastróficas e cochichos esparsos. Com um aceno tímido, ele escapuliu por entre a estatura imponente do delegado e dispensou a ambulância, que partiu, imediatamente.
Teria longas horas de interrogatório para relatar, mais tarde...
—Onde estão os corpos? – Piter Coper tomou as rédeas da investigação, caminhando pesadamente contra o terreno.
—Ainda não terminamos a perícia. – Alguém respondeu, um tanto quanto aterrorizado. – Nunca vi uma coisa dessas antes...
Um arrepio congelante subiu pela espinha de Piter, assim como a brisa morna da tarde, a qual muito em breve se tornaria noite. Não havia uma só pessoa, em Curselake, que não notasse a atmosfera tenebrosa que rondam aqueles bosques. Como se houvessem olhos espreitando de longe, vigiando, procurando qualquer brecha, por mínima que ela fosse. Desaparecimentos eram comuns naquelas matas, durante todo o ano, não importa o quanto a guarda florestal alertasse alpinistas ou desbravadores inexperientes, que insistiam em fazer percursos desconhecidos e, na maioria esmagadora das vezes, arriscados demais.
Mortes também aconteciam com uma certa frequência. Isso quando alguém escorregava de uma encosta ou era atacado por um puma faminto. Dava trabalho para encontrar os corpos, levava dias e sempre era um pesadelo se deparar com um crânio esmigalhado por uma pedra, ou o rosto de alguém parcialmente mastigado. No entanto, por mais que eventos assim fossem um pouco comuns, eles nunca haviam acontecido tão perto da cidade. Que puma iria se arriscar a tomar um tiro ou ser perseguido por cachorros?
A maioria deles fica nas montanhas, à quilômetros de distância de qualquer ser humano que se preze...
Não, não poderia ter sido um ataque animal... Que tipo de fera teria forças para matar quatro garotos com tamanha violência?
Um urso talvez?
Não se vê um urso pardo por estas bandas já fazem quase duzentos anos... Pode crer, há um registro no cartório que comprova o fato com exatidão.
Autenticado e tudo!
—A arma tem registro? – Piter perguntou aos seus subordinados, apontando para o revólver, jogado contra a terra fofa.
—Pertence à George Clifford, senhor... Desde 2012. – O tenente Martinez respondeu, prostrado a poucos centímetros de distância. – O carro apreendido estava no nome do filho mais velho dele, Todd.
—Merda! – Coper concluiu. – Tinha que ser o filho daquele cara?
Com o cenho levemente franzido, o delegado se dirigiu até uma massa compacta de ossos e carne dilacerada, tapando o nariz, para conter o cheiro ferroso e inebriante de sangue. Não reconheceu a vítima, ninguém reconheceria, se não fizessem um exame mais detalhado. As roupas estavam empapadas de sangue, assim como uma confusão disforme de órgãos pisoteados e algo que julgou ser o couro cabeludo dourado do rapaz. Separado do crânio, em grandes porções de tecido, nervos e tendões arrebentados.
Nem sinal dos olhos, ou de um coração...
—Os outros garotos... Onde estão? – Piter se voltou para o estagiário, com medo de olhar aquela atrocidade por mais tempo.
Perturbados, os dois homens seguiram por uma tímida trilha, que antes era caminho de pequenos roedores. Até se depararem com uma clareira aberta para o nada, limitada por um círculo de pedras negras, onde árvore nenhuma ousava crescer. A não ser pela relva levemente amarelada, ou dentes-de-leão próximos ao período de florir. No centro, a silhueta tortuosa e enrugada de um tronco se elevava da terra, apenas como a mera lembrança do que antes havia sido um maciço e longevo álamo. Restando dele apenas raízes retorcidas e o avanço constante da podridão, infiltrando-se através da sua celulose decomposta, servindo de alimento para colônias numerosas de cupins, enquanto era lentamente consumida pelo avanço do tempo.
Sobre o chão desnudo, três corpos se amontoam uns contra os outros, intactos, se comparados ao estrago que fora feito ao herdeiro dos Clifford. Todos mortos devido a um ferimento longo, aberto na base do pescoço, fundo o bastante para alcançar a jugular e drenar dela todo o sangue que houvesse em suas veias.
—Isso não faz sentido... – Piter disse para si mesmo, sem reprimir um suspiro. – Quem são esses três?
—Quentin Luccas, Barry Morrigan e... Diego Valez... Meu primo. – Martinez respondeu, um pouco pesaroso, ao dizer o último nome. – Meus tios vão ficar arrasados.
—Sinto muito tenente. – Toda a fúria do delegado se dissolveu. – Nenhum destes garotos merecia um fim tão terrível.
Silêncio, Martinez pareceu concordar com a fala do seu superior.
—Acha que foi um urso? Ou um bando de lobos?
—Não... Por que lobos matariam quatro pessoas apenas para comer uma só delas?
—Podem ter sido provocados, não acha? Meu primo e os amigos dele não eram lá... Muito comportados.
Isso era verdade...
—Ainda não faz sentido tenente... O que as crianças disseram quando foram resgatadas?
—Nada que fosse muito conclusivo... – Suspirou. – Fugiram feito loucos mata adentro. Carregando o pirralho baleado... Só disseram que uma coisa enorme surgiu do nada e matou o Clifford.
—Coisa enorme?
—Uma sombra, ou sei lá... Uns dois metros de altura.
Piter coçou o queixo, estava precisando se barbear...
—Acho melhor eu mesmo conversar com os órfãos. – concluiu. – Cuide de tudo por aqui Martinez... E se fizer cagada, esfolo você!
—Sim, chefe. – Embora a ofensa tenha soado séria, o tenente não deixou de rir.
Sem olhar para trás, e com a cabeça nublada de imagens perturbadoras, Piter voltou para a sua viatura. Tinha de descobrir o que aconteceu, antes que o babaca do George Clifford chamasse os federais.
Eles têm uma insistente mania de fuçar em tudo que não era da conta deles...
E isso não seria nada bom.
***
Emmily estava na sala de espera do hospital, contando os segundos no relógio da parede, apenas para distrair seus pensamentos. Ao seu lado, Stella e Billy se mantinham calados, aparentemente pensando em tudo o que acabara de acontecer. Estavam todos muito sujos, cobertos de folhas secas e o sangue do falecido Todd Clifford, já seco, por conta do clima levemente abafado que se abateu contra a cidade.
Ela não sabia se conseguiria dormir tranquila novamente, pois mesmo morta de cansaço, se recusava a pregar os olhos.
Seus pensamentos corriam como um borrão confuso e nublado, tentando inutilmente dar ordem aos momentos que se seguiram logo após o ataque. Emmily se lembrava de agarrar Joe pelo braço e o arrastar para longe daquela cena, sem tempo para hesitar. Também tinha leves vislumbres de Stella puxando Billy pelas mangas da sua camiseta comprida, muito maior do que o seu corpo pequeno e magricela. Mas que insistia em usar em todos os sábados, desde que o conhecera.
No entanto, por mais que se esforçasse para lembrar, Emmily não sabia dizer para onde foi ou como conseguiu carregar um desfalecido Joe por quase quinhentos metros bosque adentro. Sua cabeça só sentia a mais aterrorizante necessidade de fugir daquela criatura, dos seus chifres tortos e dos olhos avermelhados, focados unicamente em destroçar Todd.
—Emmily... – Stella sussurrou, estava tão assustada, que não ousava se desprender da proteção da amiga. – O Joe vai ficar bem?
Silêncio...
—Vai sim Stell, – Respondeu, com uma certa dificuldade.
—Mas ele perdeu tanto sangue.
—Não acertou um ponto vital, se for tratado do jeito certo, não vai morrer... – Billy completou, num tom de voz monótono.
Ele tinha os olhos vazios, sem se fixar em nenhum ponto específico. Emmily sabia que este era o jeito de Billy expressar seu medo, quando alguma coisa o aterrorizava demais.
O hospital afundava na quietude, como se a própria fosse um agouro denso e pesado, recaindo sobre paredes claras, ofuscando as luzes da recepção, ou calando aqueles que mais se atrevem a falar. Sirenes ecoam ao longe, celulares tocam, mães carregando seus bebês passam apressadas pelos três órfãos, com medo de serem atacadas também. Só o relógio na parede continua o seu tique-taque corriqueiro e ritmado, sem parar, enquanto Emmily contava cada segundo antes de surtar.
—Ei Você! – Cansada de tanto esperar, ela se levantou e correu ao encontro de uma enfermeira.
A mulher se virou para ela, num sobressalto repentino.
—Onde está o Joe? – Emmily se adiantou, antes que ela reclamasse.
—Perdão?
—Joe... Joe Mateo Diggs. – Repetiu, se certificando de que Billy e Stella estavam logo atrás dela. – Ele tomou um tiro.
A enfermeira franziu a testa, visivelmente assombrada.
—Ele...er...ele está se recuperando bem, só precisou arrancar alguns estilhaços da bala, que ficaram para trás.
Stella reprimiu um gritinho.
—Onde ele está? Podemos vê-lo? – Emmily voltou a perguntar, com urgência.
—Eu não sei... Talvez sim, eu só... Venham comigo!
A enfermeira ajeitou sua postura e começou a caminhar apressadamente, mantendo o máximo de distância que pudesse das crianças. Por onde passavam, as pessoas se recolhiam, dirigindo olhares furtivos e cheios de espanto, como se três órfãos encardidos fossem o tipo de atração bizarra que o mundo inteiro tem o prazer de vigiar. É claro que todos estavam curiosos para saber o que havia acontecido com o menino metido dos Clifford, de modo que, apenas algumas horas após o seu falecimento, várias teorias descabidas corressem soltas pela cidade. Alguns diziam que fora esfaqueado durante uma briga, atacado por um bando de cachorros raivosos ou mesmo assassinado por um serial killer maluco. Igual esses que aparecem nos telejornais, de vez em quando.
Apesar das falácias, todos concordavam em dois parâmetros. Primeiro: o crime era horripilante. Segundo: somente aqueles quatro pirralhos da mansão Hawkins sabiam o que aconteceu de verdade.
—Ele está aqui. – Reforçou a enfermeira, apontando para uma porta, no fim de um corredor vazio e mal iluminando. – Na última sala, à direita. Não se importem se ouvirem gritos, o senhor Frederick é bem inoportuno às vezes.
Emmily concordou, com um aceno curto e determinado. Ainda não estava preparada para encarar lugares escuros...
Pelo menos por um bom tempo!
A enfermeira partiu, com pressa demais para se demorar alí e não cumprir seu turno, aparentemente tranquilo. Sem pensar duas vezes, deu meia volta e desapareceu sem deixar rastro, aqueles três que se virassem a partir de agora.
Aqui vamos nós!
Temerosa, Stella se agarrou ao braço de Emmily, e até mesmo Billy, que é rígido em relação ao seu espaço pessoal, se aproximou da garota. Juntos, os três só conseguiam pensar naqueles chifres, nas orelhas, nas garras e nos olhos.
Aqueles malditos olhos vermelhos!
Com o coração saltando à boca, Emmily conseguiu chegar ao quarto indicado pela enfermeira, se enchendo de alívio, ao encontrar um ambiente inundado de luz, ocupado apenas por uma cama, um armário caindo aos pedaços e uma pia, onde médicos lavavam suas mãos.
—Vocês quase me mataram de susto! – Joe protestou, com a voz embargada.
Estava sob efeito de analgésicos bem fortes...
—Joe! – Stella se desprendeu de Emmily, voando em direção ao garoto.
Ele tinha um grande curativo, colocado abaixo da sua camiseta branca, que descia do ombro atingido até a axila. Seu rosto era uma confusão de cabelos negros desgrenhados, caindo sobre a face morena. Disputando a atenção com os cortes e pequenos hematomas, gerados nas vezes em que desmaiou, enquanto Emmily o carregava. Salvo às escoriações, ainda era o mesmo Joe de sempre, um tanto quanto grogue e dolorido.
—Stella, sai de cima de mim! – protestou. – Ai, ai... Tá doendo!
—Deixa de ser frouxo Joe! Foi só um arranhão. – Stella provocou.
—Então vou arranhar a sua cara, da próxima vez!
Com uma risada alta, ela e Emmily abraçaram Joe, que reclamou veementemente, mas não pôde deixar de transparecer o quanto havia gostado daquela recepção calorosa.
Billy apenas observava a cena, sentia-se um pouco constrangido, é claro, mas nem ele poderia esconder um tímido sorriso, brotando em sua face, toda vez que via Joe reclamar daquele jeito.
—O que está fazendo parado aí Bill? – O garoto perguntou, notando a ausência do amigo.
—Não vou abraçar você. – Billy se adiantou, cruzando os braços.
—Não queria mesmo!
—Mentira!
—Diz logo que não pode viver sem mim! – Joe fez uma pose dramática, o que só ficou mais engraçado, por conta da sua voz estranha.
—Vai esperando! – Billy rebateu, com uma careta.
Stella e Emmily riam como débeis.
—Eu tomei um tiro... Sou o herói! Quero que todo mundo me trate como um rei!
—Você tá fedendo!
—Você que tá!
—Não tô não!
—Pior que um gambá Bill...
Dizendo isso, Joe saltou sobre o garoto. O que é muito extraordinário, para alguém "à beira da morte", como ele mesmo pensava estar. Billy lutou contra o aperto, mas Joe teve ajuda de Stella e Emmily para prende-lo num abraço forte, emaranhado e muito possivelmente fedorento. Porém, depois de alguns segundos de puro desconforto, Billy se acostumou com a proximidade dos amigos e agora se espremia na pequena cama onde Joe fora instalado.
Órfãos não tinham plano de saúde, portanto, o Estado se encarrega de lhes dar o mínimo de um atendimento médico decente. Por isso Joe não poderia ficar num quarto maior, junto com outras pessoas. A única coisa que teria direito, seria uma enfermaria no fim de um corredor escuro.
Mas, no final de todas as contas, isso não importava nem um pouco...
—Alguém aqui sabe dizer o que era aquela coisa? A que deu cabo do Todd... – Joe finalmente tocou no assunto.
Todos ficaram em silêncio. O ar, antes leve e morno, se tornou frio e tenebroso...
—Não parecia ser humano. – Emmily respondeu a pergunta, com um suspiro.
—Vocês contaram para a polícia? – Joe continuou perguntando. Quando foram resgatados, ele havia desmaiado.
—Ninguém estava pensando direito... Eu disse que era uma sombra... E que não fui idiota o bastante pra ficar e ver o que aquilo era... Acho que eles engoliram.
Silêncio...
—Acha que a gente deveria contar a verdade? – Stella diz, sentindo seu corpo afundar contra o colchão.
—Não vão acreditar na gente. – Billy conclui. – Quem iria levar um "homem coelho gigante de olhos vermelhos" à sério?
Ele tinha razão, era uma ideia estúpida.
—Mas vamos ser chamados pra depor em breve... Nós quatro. – Emmily fitou o teto, com uma certa desesperança nublando a sua mente. – Podemos falar que foi um urso... O Todd estava nos perseguindo, entramos na mata pra fugir dele e acabamos topando com um urso.
—Curselake não tem ursos. – Mentir deixava Billy levemente incomodado.
—Sabemos disso Bill. – Joe lhe deu um olhar cansado. – Mas é como você mesmo disse, ninguém acreditaria no "Homem Coelho Assassino". Juro que isso é nome de filme de terror fajuto.
Os quatro voltaram a se calar, maquinando algum tipo de solução viável para o problema.
—Imagina dizer uma bobagem dessas no tribunal? – Stella supôs, com um olhar travesso.
—Vão perguntar que tipo de pó você anda cheirando. – Joe respondeu, de imediato.
E, mais uma vez, os quatro caíram na gargalhada...
Embalados por uma adrenalina estranha e estimulante, o grupo de crianças esfoladas continuaram rindo, rindo tanto, que até perderam o ar dos seus pulmões. Em parte pelo que Joe tinha dito, e outra por conta da sua própria desgraça. Não havia o que ser feito, a polícia nunca iria levar a verdade em consideração, assim como a morte de Todd e sua gangue seria obrigada a cair no esquecimento. Tudo o que restava a se fazer agora era aguentar a curiosidade monstruosa da cidade, os interrogatórios longos da polícia e o ego de Joe, o qual iria se inflar exponencialmente nas próximas semanas.
Stella pedia a Deus para que ele não saísse no jornal. Ou iria ficar convencido para o resto da vida!
Enquanto riam, os quatro mal pareceram que havia alguém a espreita, parado diante da porta entreaberta, apenas observando o desenrolar daquela conversa. Ele teria ficado imóvel alí por muito mais tempo, até que se descuidou e deixou cair sua bengala, provocando um barulho brusco e alto o bastante para matar alguém de susto.
—Quem é você? – Num movimento impressionante, Emmily se colocou de pé, montando guarda entre o estranho e os seus demais amigos.
O desconhecido apenas riu.
Ele era velho, mas muito velho. Toda e extensão do seu rosto longo era enrugada, saltada de veias arroxeadas, azuis e verdes, como um emaranhado de linhas multicoloridas. Usava um macacão hospitalar longo, que lhe cobria o corpo esquelético, sendo o próprio um amontoado de pele frágil e ossos evidentes. O topo da cabeça era liso, salpicado de manchas escuras, assim como os seus olhos, de um azul tão denso, que lembrava o céu noturno.
—Vocês estavam falando dele... – O estranho balbuciou, num semblante rabugento.
—Quem é você? – Emmily voltou a perguntar. Mais alto desta vez.
—Frederick Olson. – Sua voz era profunda e vacilante, como se estivesse vindo de um disco de vinil antigo. – Vocês estavam falando dele!
—Dele quem?
—Aquela abominação demoníaca... Foi ele quem matou o filho do George Clifford? – Frederick tossiu. – Maldito fedelho aquele George... Tão ganancioso quanto o pai!
—Não sei do que o senhor está falando. – Emmily continuou, um pouco mais calma. – Nós não tivemos nada haver com isso...
Atrás dela, Joe, Billy e Stella encaravam o velho, cada um com o seu coração saltando o peito. Havia algo no olhar daquele homem, que beirava a mais profunda insanidade.
—Menina mal-criada... Não te ensinaram que não se deve mentir para os mais velhos? – O ancião deu um riso de desdém. – Só podia ser uma rejeitada mesmo!
A fúria queimou dentro do peito de Emmily.
—Eu não sei o que o senhor quer aqui... Mas nós não sabemos de nada que possa interessar.
—Me diga menina, você olhou nos olhos dele?
Emmily permaneceu em silêncio desta vez. Congelada pelo pânico...
—São vermelhos, não são? – Frederick continuou. – Assustadores... Todos vocês olharam, não é?
Como ele poderia saber de uma coisa daquelas? Será que estava tentando assustar alguém? Talvez ele seja o tipo de idoso que tenha um senso de humor um tanto quanto macabro. Mas, mesmo que seja uma brincadeira, Emmily sabia, no âmago do seu ser, que aquele homem sabia mais do que aparentava.
—Nós não olhamos nada... – Ela disse, já com medo de encarar suas grandes íris azuladas.
—Ele vem todo ano... Escolhe as pessoas, das mais doídas e sofridas, então tortura elas até a completa loucura. Depois mata, come os olhos e o coração... É assim que é, desde que aquela coisa anda pelo mundo.
Ao dizer isso, Frederick Olson cuspiu no chão, voltando o seu olhar para Emmily.
—Aquilo é um demônio... – continuou. – Uma aberração, uma perversão maldita... Ele dá a marca da loucura pra quem olha nos olhos dele!
Os quatro encaravam o velho como se o próprio fosse uma assombração vinda direto do pior círculo do inferno. Todo o calor que existiu dentro daquela sala se esvaiu, deixando em seu lugar, uma brisa gélida, forte o bastante para paralisar as almas de quatro crianças inocentes. Que, mesmo sem ter nada haver com isso tudo, acabaram sendo sugadas para uma lenda macabra e cheia de mistérios.
Digna de um filme de terror!
—Menina, – Frederick avançou contra Emmily, rápido demais, até para alguém tão doente. – Você olhou nos olhos dele? Olhou? Vocês estão condenados! Condenados! Vão acabar matando uns aos outros...
E então, inesperadamente, o velho agarrou os ombros da garota, fincando o seu olhar maníaco no semblante aterrorizado dela. Lá dentro, bem no fundo da pupila dilatada, Emmily podia jurar, com todas as suas forças, que vira o rosto da criatura. Bem alí, fitando-a através de um terceiro, enquanto suas mãos lhe prendiam num aperto tão forte, que chegava a ser sobrenatural.
Emmily teria ficado alí, encarando os contornos estranhos de um par de orelhas e olhos rubros, até que sentiu outras mãos puxar os seus braços.
—Solta ela, seu velho babaca! – Joe brada, acompanhado de Billy e Stella.
Na ânsia de salvar a companheira, até tinha se esquecido de reclamar da dor...
Os três agarraram Emmily, tentando à todo custo, arrancar as mãos esqueléticas de Frederick dos seus ombros. Lutavam com fúria e determinação, embora o oponente fosse maior e, assustadoramente mais forte. Emmily, que até então estava imersa em um transe hipnótico, despertou quase que imediatamente, jogada de volta no mundo real da forma mais brusca que se tem notícia.
—Ele vai perseguir vocês! – Frederick avisava. – Vão todos enlouquecer e perecer! Estão condenados! Condenados!
Assim se dava a gritaria mais esquisita da face da Terra. Joe xingava o velho, Stella e Billy tomaram um braço para cada um e o puxavam em direções opostas. Enquanto Emmily e Frederick gritavam um com o outro, chamando a atenção do hospital inteiro. Ele entoando promessas de morte iminente, ela apenas berrando de desespero...
—MAS QUE ZONA É ESSA AQUI?! – Uma voz alta sacudiu as estruturas do hospital inteiro. – Vocês deviam ter vergonha! Atacando um senhor nessa idade?!
Parado sobre a porta, exibindo o porte de um gigante e o semblante de um cão raivoso, estava Piter Coper, mastigando o próprio bigode, de tanta indignação.
—Ele que começou! – Joe disparou, em sua defesa.
—Vocês vão todos morrer! – Lamentou Frederick.
—Olha ai, esse velho quer matar a gente!
—Condenados, estão todos condenados!
—Solta ela!
—JÁ CHEGA!!!! – Piter berrou, em plenos pulmões.
Agora, até mesmo o xerife havia se metido naquela briga ridícula. Com a única diferença de que Piter era mais forte e valente que o velho e "frágil" Frederick Olson. Sem muito esforço, Emmily foi finalmente libertada, voltando para a proteção dos seus amigos, enquanto um ensandecido ancião era arrastado por um brutamontes duas vezes mais pesado do que ele.
Ainda jurando todos de morte...
—Emmily, você está bem? – Billy perguntou, antes mesmo que tivessem tempo para recuperar o fôlego.
—Estou... –Ela respondeu, à beira das lágrimas. – Eu só... Me assustei muito.
Joe suspirou de alívio, Billy deixou-se cair contra a cama, Emmily contou até dez e Stella... Bom, Stella sentiu uma forte dor nas têmporas, intensa o suficiente para se ver estrelas.
Com um grito agudo, a garota tapou seus ouvidos. Mas, antes que se desse conta, já não estava mais acordada.
Na parede da recepção, o relógio cessou o seu tique-taque costumeiro...
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top