9-Anselas e Corvo
Kely pensou na reação estranha de Daniel algumas vezes durante o dia, tentando entender o que significava. Odiava admitir, porque não havia muito fundamento em seu medo, mas temia que o garoto desconfiasse de seu uso de magia profunda. Ela pensou isso na última vez aquele dia, ansiosa sobre o que o próximo dia podia esperar. Kely dormiu com o colar no pescoço.
Em seu sonho, estava novamente vendo o mundo nos olhos de outra pessoa. As paredes do novo espaço não fugiam da estética do quarto do tal "Corvo", e o local era um tanto aconchegante, com pufes e poltronas arrumadas em semicírculo, e um tapete redondo persa no centro. Uma grande janela só fazia o serviço completo de iluminação. O local lembrou a Kely uma sala separada que havia em sua biblioteca onde os professores levavam os alunos para contar histórias. Na sala havia apenas homens, descontraídos e conversando em uma roda. Todos eles tinham pranchetas e canetas-tinteiro em mãos, com pequenos reservatórios de nanquim.
A porta foi aberta-chutada seria uma descrição melhor- e fez-se um silêncio pesado na sala. O instrutor de corvo entrava na sala com um grande quadro apoiado em um suporte com rodas. Nos segundos em que o instrutor arrumava a sua aula, nenhum dos homens ousou proferir uma palavra. Kely sentiu sua mão suar. Ou melhor, a mão de Corvo suar.
-Bom dia, pupilos- o professor quebrou a quietude desconfortável com palavras automáticas, puxando para si uma cadeira simples que estivera isolada em um canto.
-Bom dia, mestre- responderam em uníssono, o calor da frase destoante do clima da sala.
O quadro que o "mestre" havia trazido era um mural com vários papéis pregados em alfinetes. Corvo olhava fixamente para aqueles papéis, mas estava escrito em cursivo e a garota não conseguia decifrá-lo. O mestre chamou novamente a atenção dos alunos, agora sentado em frente a eles com a cadeira virada para trás, os braços dele apoiados nas costas dela.
-Há nesse quadro que trouxe para vocês algumas informações interessantes. Podem ver que são algumas de minhas anotações da época de meu labor no Palácio de Versalhes e fiz a descoberta da minha vida, a razão de todos vocês estarem nesta sala hoje, escutando tudo o que eu lhes digo: a magia profunda.
O professor levantou-se energético da cadeira. Kely torcia para que a expressão de seu rosto não aparecesse no de Corvo. O homem que via agora era Anselas. Marcus era Marcus. Marcus nunca fora Anselas. Estivera errada o tempo todo. E o mais impressionante, estava vendo de camarote as lembranças de um de seus pupilos.
Anselas estudava as próprias anotações, enquanto continuava:
-Tenho absoluta certeza que essa história os surpreenderá, e dará uma ideia do que espero de suas apresentações no fim desse curso. Mas antes, vou os lembrar que ontem pedi para que os senhores encontrassem algumas respostas para as perguntas que eu havia lhes passado. Chamarei alguns de vocês agora para compartilhar algumas delas.
Com um brilho malévolo, o mestre direcionou seu olhar cortante que fez a alma de Kely arrepiar.
-Primeiro você, Corvo.
Corvo engoliu em seco. Todos os olhares da sala estavam fixos nele, um tanto aliviados por não serem eles quem enfrentariam tal destino. Kely não sabia a história daqueles homens com o lugar, mas estavam longe de ficar confortáveis com a situação. Corvo começou a folhear a prancheta e estava pronto para contribuir, mas o professor o impediu antes que pudesse fazer qualquer som.
-Hã-hãn, levante-se e venha aqui à frente, para que todos possam te escutar.
Relutante, mas sem nenhuma opção, Corvo levantou-se da poltrona onde estava sentado e foi até a frente dos olhares temerosos, que lhe desejavam boa sorte ao mesmo tempo que estavam aliviados de não serem os primeiros. O professor apontou com a mão para a cadeira, e, com o pânico contido na garganta, sentou-se. Respirou fundo, e boa parte do medo foi embora.
-Boa tarde a todos. Estive procurando as respostas para as perguntas ontem à noite. Infelizmente, dormi antes de encontrá-las- alguns deram risadinhas, outros continuaram mortalmente petrificados- mas não vim aqui de mãos vazias. Descobri algumas coisas interessantes. Uma delas é que a pedra tem a capacidade de se transmutar com a vontade do portador, sem a necessidade de feitiço.
-E como isso ajuda em alguma coisa?- lançou Anselas, com uma expressão matadora. Ele estivera com o pupilo quando a pedra se transformou, e pareceu ficar impressionado na hora. Porque estava movendo suas peças contra ele?
O professor respondeu à pergunta dela com um sorriso sádico, como quem vê um inimigo se dar mal.
Por um momento, pareceu que Corvo não conseguiria montar uma resposta, mas talvez Kely estivesse o subestimando. Ele respondia bastante calmo às perguntas do mestre tendo em conta que alguns dos outros homens pareciam parar de respirar à cada palavra de Anselas. Ele estava sendo mais corajoso do que ela estava dando crédito.
Corvo pigarreou.
-Poderíamos mudar a forma da pedra para a ocasião que precisássemos, como um evento formal ou uma briga, ou simplesmente usar como acharmos mais confortável.
-Mas não foi isso que pedi para a lição de hoje. Você perdeu o foco novamente, como tem feito em todas as lições que tivemos.
No outro momento, a cadeira estava tombando para o lado. O choque inesperado com o chão causou ardência no lado do corpo. Sua cabeça quase foi de encontro ao chão, e agora Corvo tentava processar o que havia acontecido, enquando olhava os sapatos de seus colegas. O pupilo olhou direto para seu mestre. Ela também não teria coragem de olhar para o rosto de seus colegas.
Anselas puxou a cadeira quase caindo com o pé, o sorriso malévolo brilhante em contraste com seus olhos escurecidos. Os olhos tinham vida, detalhe que fez a garota se assustar quando percebeu. Não era o tipo de olhar que se ela esperava encontrar se um dia se encontrasse com ele -pelo amor dos céus, que isso nunca acontecesse- e era o mesmo olhar... nos olhos de Marcus.
Será que Marcus estava voltando à vida? Lembrou-se do que aquele fantasma disse a ela e Brasa antes de ganhar a marca. Vários fantasmas estavam sendo reunidos para formar algo maior.
-Se você não colaborar, vou te reprovar, e vou manter você aqui por anos, décadas se for preciso, até aprender a ter um pouco de disciplina.
Kely sentiu seu corpo esquentar.
-Como você me é muito querido e acredito no seu potencial, vou te dar até amanhã para entregar as respostas. Se falhar, pode ter certeza que vai ter que fazer o triplo para conseguir passar, fui claro?
O professor trouxe sua mão mais perto, como se quisesse estender a mão para ajudá-lo. Seu corpo parecia um chaleira com água fervente, seu sangue corria a mil por hora em suas veias. O próximo movimento de Corvo foi rápido, tirando do colar em seu pescoço uma adaga negra, da mesma cor da pedra.
Como no dia em que a pedra mudou de forma, o professor ficou impressionado, mas se esforçou para manter a expressão por poucos segundos. A adaga apontava para o pescoço do mestre, como se apenas a força de vontade do pupilo fosse suficiente para furá-lo, mas sua ponta já estava manchada de carmim, o mesmo que corria vagarosamente do corte na mão de Anselas.
Anselas chegou mais perto, os cabelos soltos querendo escapar do ombro, emoldurando sua expressão de ódio puro. O professor limpou a mão machucada no rosto de Corvo, e o levantou do chão pelo colarinho da camisa. Ou melhor, começou a arrastá-lo até fora da sala. Suas costas começaram a arder, o colarinho apertando o pescoço e o sufocando. Foi possível ainda ver seus colegas olhando para ele com expressões diversas, nenhuma positiva.
A última coisa que Kely sentiu antes de acordar foi um chute forte no estômago.
Ela acordou com um pulo, seu coração se retraiu de medo no peito, e demorou a entender que ela estava segura, dentro das quatro paredes brancas de seu quarto. Quando Kely percebeu que apenas ela usaria o apartamento, e que era o apartamento dela, começou a ir a gráfica pelo menos uma vez por semana. Agora as paredes estavam cheias de pôsteres, todos tematizados com obras que traziam alegria e acalmavam sua mente.
Agora aqueles pôsteres traziam um baque de realidade para ela. Estava em segurança, mas se fizesse uma escolha errada, poderia perdê-la.
Quando ficou mais calma, começou a se arrumar para a escola. Não podia negar que continuava nervosa, mas por outro motivo. Aquele tal de Daniel talvez falasse com ela de novo, pedindo outra coisa.
Quem queria enganar. Ele nunca mais iria trocar uma palavra com ela. O acordo já estava feito. Talvez ele já tivesse descoberto como tirar a marca do pulso por si mesmo e ela ficaria no esquecimento.
Para a surpresa de Kely, depois da aula, sua professora de português, Eva, a chamou para uma conversa.
-Querida, temos que conversar sobre as tarefas. Já faz alguns dias que você não tem feito a lição de casa. Talvez você venha de uma escola que não cobrava as lições, mas aqui somos um pouco mais rígidos. Tenho que avisá-la que, se continuar assim, suas notas vão baixar, e vamos ter que ligar para seus pais.
Isso não era bom. Ficariam alarmados. Ela estava esquecendo sim, chegava no apartamento depois do "trabalho" no final do dia e nesse horário estava cansada e era mais fácil se distrair com outra coisa. Teria que se organizar ou teria problemas.
-Sinto muito professora, vou tentar não esquecer mais.
-Ah, querida, você é uma garota muito boa.
Houve algum tempo de silêncio até a professora perguntar, em tom de obrigação, Kely teve a impressão.
-Não está acontecendo nada de ruim com você, não é?
Kely decidiu que naquele momento ela iria contar tudo. Agora que não estava mais sobre o feitiço, ela podia.
-Posso falar com você um instante?
As duas ficaram na sala por alguns minutos, e a garota contou sobre Marcus-tinha que se acostumar que não era Anselas-, a máquina, basicamente tudo que ela sabia. A professora a escutava atentamente, não desviando o olhar, mas de um modo estranho. Quando terminou, a garota olhava para baixo, aguardando ansiosamente pela resposta da professora.
-Kely, olhe para mim.
O clima da sala era desconfortável, mas mesmo assim a obedeceu. Eva soltou um suspiro.
-Receio que eu não possa fazer nada sobre isso, querida.
Kely discordou.
-Podemos sim! A gente pode falar para o diretor, chamar a polícia...
-Não, não precisamos incomodar os policiais com essa história.
A ficha caiu. A professora não acreditava nela. Kely não a culpava. Também não acreditaria em uma história daquelas. Mas estava tudo bem. Ela não precisava acreditar. Apenas precisava de um plano, algum estratagema para chamar a polícia e verem que ela não estava louca. Ela podia fazer aquilo.
-Tudo bem, professora, eu vou sair para o recreio-mesmo tentando esconder, o tom de voz saiu baixo, derrotado.
-Não saia ainda. Por favor, sente-se na cadeira.
Eva ofereceu a própria cadeira, a mesma que ela estava sentada momentos antes, e abriu seu melhor sorriso para Kely.
-Venha-Ela chamou novamente.
Kely obedeceu, hesitante. A garota acomodou-se e a professora, atrás do assento, colocou as mãos em seus ombros.
-Agora, feche os olhos.
Ótimo, agora a professora a faria meditar. Não tinha paciência para aquilo no momento.
-Profe, eu estou com fome, vamos fazer isso outra hora.
-Vai ser rápido, agora feche os olhos.
Kely decidiu ir na onda da professora. Quanto antes acabasse, antes ela iria sair dali.
A mulher tirou as mãos dos ombros da jovem. No instante seguinte, Kely sentiu um solavanco, e ser arrastada para baixo. Como era de se esperar, ela abriu os olhos. A mão da professora a empurrou mais. Estava afundando no piso de madeira, e já estava soterrada na altura da cintura. Ela empurrou o corpo para cima com os braços moles, mas parecia não fazer diferença. Mal podia segurar o próprio peso por muito tempo naqueles brinquedos de parque, como lutaria contra a própria terra a puxando? Para dificultar, a professora continuava a empurrá-la. Era irônico ser soterrada no primeiro andar da escola.
-O que é isso? Faz parar!-A garota suplicou, olhando no fundo dos olhos da tutora, mas ela a olhava de volta com um sorriso vazio e pura indiferença.
-Vai ficar tudo bem querida, apenas colabore. Se está assustada, feche os olhos.
Kely não fechou os olhos. Continuava a tentar voltar para cima, sem sucesso. Apenas fechou os olhos quando não tinha mais opção, e sua cabeça virou uma só com o piso. Depois disso, veio o vazio.
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