2-Só Você Está de Fora!

Descrição da imagem: Enquadrada em uma moldura, vê-se a protagonista, vestida no uniforme escolar, com uma expressão desconfiada. Ela segura um livro aberto nas mãos, usando suas pernas dobradas de apoio para ele. Há um grande travesseiro atrás de suas costas. A garota aparece em destaque em branco, e o fundo é cinza.

***

O cheiro de café coado espalhou-se pelo apartamento. Kely já estava arrumada para ir à aula, um colete sobre a camiseta branca, calça social e tênis escuro. No colete, estava bordado o emblema da UCNAM. Decidiu prender o cabelo para o dia. Kely olhou o relógio. Faziam quinze minutos desde que saíra da cama, e sua colega ainda estava dormindo. Deveria acordá-la? Ou ela teria colocado o despertador para mais tarde?

A questão deixou Kely realmente preocupada, e enquanto tomava o café, foi a única coisa em que pensou. Finalmente, decidiu despertá-la.

—Moça— ela deu alguns tapas no ombro da garota, que dormia de boca aberta— moça...

—Hã?...— ela abriu os olhos, ainda sonolenta—Ai! A aula!— ela pulou da cama e se chocou contra Kely. As duas se desequilibraram e acabaram caindo no chão. A outra já estava pegando o celular na mão, mas ele não ligou, estava sem bateria.

A garota se lamentou por não deixar o celular na carga e saiu correndo para a cozinha. Kely se sentiu meio tola por não saber o nome dela. Mas não era o melhor momento para perguntar, já que a outra corria de um lado para o outro como uma louca, não é?

Kely já estava praticamente pronta, então foi dar uma olhada na mochila, para checar mais uma vez se não havia esquecido nada. Depois de conferir, ela foi até a porta e parou. Até seu corpo estava indeciso, andava para a frente, mas as mãos seguravam forte a vista da porta. No final, saiu do apartamento fechando a porta bem devagarinho, e foi para os portões sem dizer nada.

⌁₊˚⊹˚₊⌁

Não acreditava que tinha conseguido se atrasar. E para sua infelicidade, não foi a única.

Quando Kely chegou ao portão, estava tudo uma bagunça. A multidão estava desorganizada, e ela não gostava da ideia de ficar presa e espremida naquela muvuca, então teve que esperar. O portão era apenas para proteger o portal atrás dele de invasores. A sensação de atravessá-lo foi como entrar em um lago. Naquele calor de fevereiro, parecia até mais refrescante.

A escola não era tão grande quantas fotos faziam parecer, mas estava longe de ser pequena. Tinha o formato de "U" e três andares, ao que parecia. No centro da construção, via-se o símbolo da escola, uma bromélia enquadrada em um círculo. Passava uma atmosfera de uma construção antiga, que tinha muito a mostrar para aqueles que se comprometessem a conhecê-la,e era feita de madeira. E não era apenas a escola que era grande, ela não conseguia ver nenhum limite de propriedade além do muro que se estendia atrás dela. Por outro lado, seria realmente difícil ver qualquer coisa que estivesse atrás do bosque que cercava a construção.

Quando um ombro esbarrou nela, ela parou de admirar a paisagem e continuou pelo caminho de pedras que levava até o pátio, que tinha alguns canteiros espalhados. A base da edificação era composta por arcos, que serviam de entrada. Dali, era possível ver as escadas e o refeitório. Os alunos subiam para suas salas apressados. Era como ver uma manada correndo de um predador.

E, pelos céus, como foi difícil encontrar a sala dela. Olhou a hora no telefone, não estava tão atrasada como pensava. Ou estava, pois haviam dois alunos sentados do lado da porta, uma garota de cabelo preso e um garoto de rosto fino.

—Você também é dessa sala?— o garoto perguntou.

—Sou sim— Kely respondeu, um pouco baixo.

—Vai ter que esperar também, a professora não nos deixou entrar.

Kely soltou um suspiro. Ótimo, provavelmente a achariam irresponsável. Ela sentou-se do lado da garota, que digitava freneticamente no celular. Quando ela olhou para o garoto, ele também já havia pego o aparelho. Sem opção, ela seguiu o exemplo dos dois.

Quarenta minutos depois, a professora surgiu na porta e deu uma bronca nos três sobre horários e não sei mais o quê, e entraram para a próxima aula. A sala de aula, pelo menos, não desapontava, parecia que já estava na faculdade. As mesas eram degraus, que subiam junto com a sala. A frente das mesas tinham padrões repetidos talhados na madeira. Ela pegou um lugar no centro, mas prometeu a si mesmo que viria sempre mais cedo para pegar um lugar perto da janela.

Na hora do intervalo, ela decidiu escolher seu lanche na cantina —muitas variedades de salgados, se sentiu em um buffet— e ir para a biblioteca.

A biblioteca era a maior que ela já havia visto em uma escola, com dois andares de altura, parecia uma versão reduzida de uma biblioteca de palácio. As plaquinhas em cada pilastra marcavam as subdivisões na biblioteca. Cada seção da biblioteca era composta de livros que faziam parte de determinado gênero, e, do lado de cada seção, haviam plaquinhas com datas. Lembrando um pouco do que ela havia pesquisado para um trabalho uma vez, Kely deduziu que cada uma daquelas seções estavam separadas por período histórico, e cada teto era pintado de acordo com a estética artística da época. Ela logo se perdeu em títulos de livros. O Que Não Te Contam Sobre A Era Antiga, Feitiços de Defesa, Misturas Básicas, e outras capas que ela queria levar, tudo de uma só vez. Procurando mais um pouco, ela logo encontrou a seção de livros de ficção. O teto daquela seção era um teto estrelado com planetas, e os mais destacados tinham personagens e referências aos livros mais famosos. Kely amava ficção. Era o gênero que ela mais lia, onde os escritores podiam criar e imaginar mundos à sua maneira, algo que ela mesma queria explorar. Ela teve a impressão que iria voltar muitas vezes àquela seção.

Mesmo com todo o encanto à sua frente, ela não conseguia se distrair.Tivera muitas más lembranças do ano passado, mas não se sentia forte o suficiente para reverter sua situação. Mudar sua personalidade era algo que ela não conseguia fazer.

Por outro lado, havia algo que poderia ajudar, dar um empurrãozinho até ela conseguir andar com as próprias pernas. Era um dos poucos feitiços obscuros que ela sabia executar...

Não, há coisas em que não se deve mexer...

Mas não faz mal se não afeta os outros, não é?

Mas poderia afetar minha cabeça...não foi isso que aconteceu com ela?Pare, você mesma sabe que não é assim que funciona, você só não entendia direito na época. É claro que todos que usavam eram meio malucos da cabeça, mas é uma questão de caráter.

Não não, é proibido, é criminoso, e eu não vou querer viver numa mentira. Mas é uma mentira tão mais confortável...

Pare. Nem seria você mesma.

Ser eu mesma é insuportável.

O som de passos ecoando ao longe a fez sair de seus pensamentos. Ela tentou esquecê-los e, alvoroçada, começou a procurar por um livro, qualquer livro, que servisse para ela poder fingir normalidade. Ela ouviu o som dos passos aumentar de volume, quem quer que estivesse ali estava cada vez mais perto dela. Kely pegou um livro de criaturas de uma série bastante conhecida e começou a folheá-lo. Estava com o olhar fixado no livro, mas pela visão periférica ainda podia ver a movimentação da figura. Ficou curiosa, não podia ver muito, mas tinha quase certeza de que a pessoa não estava usando o uniforme.

Então se lembrou que estava em uma escola nova, e para que não acabasse igual na escola antiga ela tinha que fazer um pouco de esforço e pelo menos olhar na cara das pessoas, e oferecer ajuda, mesmo que o resultado fosse um momento dolorosamente estranho. Ela ergueu o olhar imediatamente ao ter esse pensamento, mas logo se arrependeu. Olhos de um amarelo vívido com pupilas felinas encaravam o fundo de sua alma, e ela logo se sentiu desconfortável. A cor de seus olhos fazia parecer que brilhavam, e fazia parecer que o dono deles não era exatamente humano. Essa característica peculiar, junto com as manchas incomuns em seu rosto, foram o suficiente para querer dar um pulo para trás.

O olhar do garoto continuou firme e apavorante. Seu rosto manteve a falta de expressão que não comunicava nenhum sentimento. Sua postura estava um tanto rígida, e segurava um livro fino na mão direita.

—Bom dia. Eu só pego o livro e vou embora?— Disse o garoto, cortando o silêncio, apontando para o seu livro. Seu cabelo ruivo avermelhado era volumoso e precisava ser cortado. Usava uma roupa social demais para o ambiente escolar, uma calça preta, sapatos que estavam levemente sujos e uma camisa de botão impecavelmente branca. Por cima da camisa ele vestia um colete da mesma cor da calça e usava uma gravata vermelha por baixo do colete.

Ela ficou um tempo processando, a peculiar aparência do garoto, sua pergunta imprevisível e a HQ que ele tinha em mãos, que não era exatamente da sua faixa etária.

—Oi, então, você tem que ir lá embaixo e registrar com a bibliotecária.

—Muito obrigado.

Mesmo depois de ter feito a pergunta, ele continuou a encarando por alguns segundos, e então continuou.

—Você sabe se nesse lugar tem algo sobre doenças?

Kely não tinha certeza, mas julgando pelo tamanho do lugar, os livros universitários também deveriam estar ali.

—Deve ter, não sei onde, mas deve ter. Quer ajuda?

—Eu ficaria agradecido.

Então os dois caminharam pela biblioteca em busca dos livros de saúde. O menino não falava muito, e sempre que Kely olhava para ele, o garoto mantinha a mesma expressão e olhava para ela com frieza no olhar. Arrepios subiam a coluna dela toda vez que ele a fitava com seus olhos amarelos.

Depois de um tempo procurando, chegaram à seção de medicina, e Kely encontrou livros com uma linguagem um tanto difícil, até achar um que apresentasse uma linguagem mais leiga.

—Esse aqui parece bom. Quer dar uma olhada?

O que o garoto estivera fazendo desde que chegaram ali era abrir os livros, folheá-los um pouco e devolvê-los às prateleiras. Não parecia ter muita sorte em sua busca.

—Pode procurar por remédios para queimaduras?—E continuou a folhear os livros.

—Tudo bem... —ela abriu o sumário, e abriu na página indicada —Que tipo de queimadura que é?

—O que?

—Qual o grau da queimadura? É mais superficial, média ou profunda?

—Superficial. O remédio que usamos tem efeitos colaterais que... vale mais a pena continuar com a queimadura.

Kely não entendeu o que o garoto queria dizer, mas leu as informações do livro em voz alta. O garoto continuava confuso.

—Podemos tentar encontrar outro livro— ela sugeriu. Ele ficou com a expressão desanimada, mas agradeceu mesmo assim.

—Obrigado por ter ficado comigo até aqui. Queria conseguir informações de alguma outra fonte mas...

Ele parou de falar de repente e puxou o punho de Kely para analisá-lo cuidadosamente. Ela pôde ver mais de perto as marcas de seu rosto, e perceber que... pareciam musgo?

—Você ainda não tem a marca. É aluna nova?

—S-sim, porque? Eu tenho que ser marcada?— Ela não sabia o que estava falando.

Sua expressão suavizou-se.

—Bem, depende, ter a marca significa que teve seu desejo realizado. Gostaria de ter um desejo realizado?

A resposta a fez ter mais perguntas.

—Hã? Como assim?

—Eu tenho um chefe que, em troca de um favor, realiza um desejo pra você.

Kely deu um passo para trás.

—Como assim?

O garoto mostrou irritação por ter que repetir.

—Ele te pede um favor e te concede um desejo.

—Beleza, mas como ele faz isso.

Ele deu de ombros.

—Com magia.

Ai, nossa, que simples.

—Isso não é... muito convincente.

—Magia ué. Magia não faz essas coisas?

—V-você quem me diga! Magia comum não... não faz isso.

O garoto desistiu de explicar.

—Olha, eu não sei como ele faz isso, mas vou te mostrar uma coisa.

Kely estava curiosa, e seguiu o garoto estranho até a porta da biblioteca. Os dois avançaram pelos corredores da escola, o garoto tinha o passo apressado. Ele era alto e suas pernas eram longas, então a jovem quase tinha que começar a correr para acompanhá-lo.

Ele parou em uma janela, um andar acima do chão. Kely reconheceu que estavam acima da cantina.

—Agora olhe para os pulsos dos alunos. Não os da sua sala, porque eles ainda não entraram.

Interessante escolha de palavras, entraram, como se tivessem entrado para um clube ou uma sociedade secreta. Mas ele não estava brincando. A maioria dos alunos estavam de camiseta, por conta do calor que fazia, e todos que ela olhava tinham uma marcação no pulso. De longe, parecia um desenho, mas ela não conseguia dizer o que era por causa da distância.

—Essa é a tal da marca? O que ela faz?

—Mostra que a pessoa teve o seu desejo realizado—o menino disse, já cansado de repetir a mesma informação.

Você realmente acredita nisso? ela quis gritar para o garoto. Toda a situação era extremamente estranha.

—Marcas aparecem depois de acordos. Qual é o favor que eu tenho que fazer para o seu chefe realizar um desejo?

Ele coçou a nuca.

—O chefe te explica. Ou então você pode falar com Gael.

Kely estava pensando. Não queria ter que procurar esse tal de Gael. Se ela chegasse e apenas perguntasse do que se tratava, poderia fazer sua escolha e descobrir qual era o esquema.

Mas sua maior dúvida era: por que tanta gente estava fazendo parte do que qeur que fosse aquilo?

—Se quer uma opinião, se não aceitar, só você vai ficar de fora.

Kely o encarou por alguns instantes.

—Que tipo de desejo ele realiza?

—Qualquer coisa.

—Qualquer coisa mesmo?

—Sim, eu já vi ele mudar totalmente a personalidade de alguém, fazê-las populares, inteligentes, confiantes, curar doenças, apagar memórias... etcetera.

Ela ficou alerta. Magia comum não podia fazer aquele tipo de coisa, apenas mudava as coisas superficialmente. Mudar a personalidade de alguém...

—Seu chefe mexe com que tipo de magia?

Ele olhou para ela, genuinamente confuso.

—Tem tipos de magia?

Ela desistiu.

—Deixe quieto, então, onde está esse tal chefe?

—Posso te levar até ele.

Engolindo em seco e não sabendo exatamente onde estava se metendo, ela aceitou.

—Então vamos.

⌁₊˚⊹˚₊⌁

A dupla andou pelo pátio da escola até um local abandonado, uma construção pequena, do tamanho de um banheiro, de concreto que parecia mal conseguir sustentar o próprio teto e com certeza bastante antiga. Ela viu duas garotas e um garoto com o uniforme da escola irem correndo até a entrada daquele lugar. Por um tempo, encararam Kely e o garoto, dando a impressão de que não era uma cena comum, mas saudaram o garoto com um respeito exagerado, como se o garoto fosse uma figura superior, e até mesmo com um chamamento:

—Bom dia, Gerenciador Brasa.

—Bom dia— Ele respondeu, coçando o pescoço, meio desconcertado. Depois que os dois adolescentes seguiram caminho confiando que aquela construção não cairia na cabeça deles, Kely perguntou, curiosa.

—Seu apelido é Brasa?

A postura do garoto não mudou.

—Brasa não é meu apelido, é o meu nome. Acho que não é muito comum entre humanos.

—Hum— fez um ruído de concordância, balançando a cabeça, apesar de ter ficado ainda mais confusa. Brasa era realmente um nome incomum "entre humanos".

Ele mantinha um olhar sem direção, quando cortou o silêncio.

—Porque paramos?

Eu não sei, não é você que está na minha frente?

Os dois se aproximaram do que um dia fora alguma coisa, e o medo de Kely se confirmou: eles iriam entrar ali. Ela começou a rezar para que aquela espelunca não resolvesse cair e eles não morressem. De longe, espiou o que havia do outro lado da porta.

Escadas que levavam para baixo, como se levassem até um porão macabro. Então uma chavinha virou na cabeça da garota. Aquele era provavelmente o caminho para o presídio que estava soterrado abaixo da escola.

Porque estavam indo para lá? Porque todos os alunos da escola estavam concordando em fazer um acordo com um estranho qualquer? Ou eram loucos, ou burros, ou desesperados.

Kely olhou para o absoluto breu abaixo de si, por onde seu guia avançava sem nenhuma relutância. Era como se a escuridão a encarasse com um olhar esmagador e um sorriso provocativo, rindo que ela estivesse amarelando e a provocando se ela queria voltar correndo para o colégio.

—Apenas Gael tem uma lanterna, eu me dou bem no escuro, mas se estiver com medo, pode pedir para ele te levar— Brasa sugeriu com uma voz atenciosa. Kely se sentiu como se estivesse zombando dela, agora no escuro, seus contornos eram apagados, mas a cor dos olhos se destacava.

—Não, não! J-já estou indo!—Kely respondeu, e forçou suas pernas a seguirem em frente. De degrau em degrau, tomando cuidado para não correr o perigo de pular algum, ela mergulhou na escuridão, sabendo que era esperta o suficiente e que não seria mais uma, condenada a lutar com um problema muito complicado para jovens resolverem. Sim, ela sabia que sabia muito mais.

O medo da escuridão que ela sentia naquele momento não seria nada no futuro. O plano do chefe de Brasa dizia respeito a todos os jovens daquele colégio, e quem com uma ideia daquelas não estaria determinado a fechar sua meta?

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