10- Morcegos

Kely abriu os olhos, e se viu na escuridão. Tentou mexer os braços, mas logo percebeu que estava presa a uma cadeira, com os pulsos e calcanhares amarrados. A garota tentou ao menos levantar a cadeira nas costas, mas era muito pesada. Na sua frente, uma chama se acendeu após um barulho de clique, iluminando os olhos da professora, a única luz presente no ambiente. Kely se debateu na cadeira, usando o pouco de força que tinha para tentar arrebentar as cordas, que pareciam ser mais duras que pedra.

—Ora, não fique alvoroçada, eu apenas vou te fazer umas perguntas e depois o chefe verá o que fazer com você.

Eva!? Não era possível, Marcus era o chefe dela também? Ele estava recrutando até os professores?

—Como está o grupinho rebelde de vocês, hein? O chefe não ficará feliz ao saber que o feitiço dele não deu certo.

Kely ainda estava tão chocada com a situação que quase não processou direito a pergunta.

—Vamos! Fale!—  a professora ameaçou, aproximando o rosto e a chama mais perto da garota

—N-n-não, e-eu não faço parte da rebelião— ainda estava difícil falar.

A mulher deu um sorrisinho. Segurava o isqueiro à sua frente de forma relaxada. Kely tinha medo daquele isqueiro, ou melhor, o que ela podia fazer com o isqueiro.

—Ah, isso é bem mais interessante. Então porque não me conta como conseguiu se livrar do feitiço?

Kely não disse nada. Pensava no que podia dizer, qual mentira podia contar.

—Como eu não tenho o dia todo para lidar com você, vamos fazer o seguinte.
Eva se levantou da mesa onde estava sentada e chegou mais perto da garota, cuidadosamente puxando um maço de cabelo preto e azul.

—Quanto mais tempo você ficar aí quieta, me encarando com essa cara de coelhinho assustado

— ela aproximou a chama do isqueiro da ponta do cabelo — mais seu cabelo vai ser destruído, o que é uma pena, eu o achei tão lindo.

As pontas estavam meio destruídas por conta da tinta, mas ela não tinha o direito de fazer aquilo.

A professora soltou uma risada.

—Talvez eu esteja com inveja.

A chama se aproximou do cabelo de Kely, perto o suficiente para fazê-lo estalar. A luz da chama atravessava os primeiros fios de fumaça.

—Eu fiz outro acordo!

Ela afastou o isqueiro. O rosto dela não era nada amigável, ansiava por mais confissões.

—Continue falando.

—Eu fiz um acordo com outro fantasma para tirar a marca.

Com a outra mão, Eva levantou o queixo de Kely, aproximando seu rosto do dela. Kely desviou o olhar.

—Pirralha, olhe nos meus olhos.

A garota tentava, mas era pressão demais. Mesmo quando sair inteira dali parecia depender daquela conversa, fechou os olhos, o medo vencendo e fazendo água brotar de seus olhos, um soluço escapando de sua garganta.

Eva soltou um suspiro desapontado.

A porta abriu, e duas sombras formadas pela luz do outro cômodo estavam paradas na porta. 

Não eram exatamente silhuetas humanas. Quando a luz foi acesa, Kely quase soltou um grito. As paredes do cômodo eram formadas por ripas de madeira, o que deixava impossível ela ter uma ideia de onde estava, mas o que tomava toda sua atenção eram as duas figuras... monstros? Ela não tinha certeza.

O homem–homem? Qual era a palavra certa para descrevê-lo?–e a mulher–?– eram duas criaturas misturadas, de um modo que Kely nunca havia ousado imaginar. Eram bípedes e sua fisionomia e silhueta lembravam humanos, mas as orelhas eram muito maiores e ficavam na parte de cima da cabeça, pontudas e com as conchas muito mais profundas. Os quadris também lembraram humanos, mas eram peludos e um pouco mais avantajados que o normal, e as pernas terminaram nas patas com três dedos, com pequenas garras nas pontas. Os dois tinham asas, mas as do "homem" eram consideravelmente menores, um traço vestigial de suas raízes.

Os dois olhavam um pouco assustados para a cena, mas não fizeram perguntas.

—Mei, o chefe passou aqui mais cedo para deixar uns papéis para você assinar.

A professora lançou um olhar que podia matar.

—E vocês não podiam esperar um pouco mais não? Não estão vendo que estou ocupada?

—Que estressadinha— retrucou o homem do grupo —quem é essa humaninha?

—Não é da sua conta, agora saiam!

—Vamos Dat— chamou a outra mulher, mas o homem queria provocar Eva.

—Então, mini-humana, o que você fez para deixar minha irmãzinha tão irritada.

—Não responda.

Kely ainda estava apavorada, e sua cabecinha ainda processava as informações.

—O que... são vocês?— ela perguntou.

—Homens-morcego, nunca havia visto um antes?

Kely balançou a cabeça.

—Essa é nossa irmã, ela é tão assustadora quanto nós— o homem-morcego apontou para Eva, que chegou mais perto dele e o estapeou. Ela não estava com paciência para as brincadeiras do irmão.

—Você não tem serviço para fazer não?— ela suspirou fundo —olha, eu vou interrogá-la aqui rapidinho e levá-la para o Marcus, então é bom que você vá fazer suas coisas, e vê se não me interrompe de novo!

Droga. Eles iriam levá-la para o Marcus. Isso colocaria tudo abaixo.

—Eu hein, você não diz que qualquer um pode ser nosso cliente? A gente poderia usá-la para...

—Dá pra você calar a boca?!

Kely não podia ficar ali, e ali estava uma oportunidade de fugir. Em suas mãos, ela fez uma pequena faquinha para cortar a corda. O coração da jovem quase saía do peito, ela teria que ser rápida.

A corda caiu ao redor dela, e ela correu para a porta a velocidade total, derrubando a mulher morcego, que estava apoiada na porta. Foi quando ela percebeu que não sabia onde estava e não tinha ideia para onde ir, então não poderia usar o impulso muitas vezes. A garota tentou ao máximo lembrar de algum feitiço que a ajudaria a sair dali, mas não conseguiu pensar em nada. 

O único modo era improvisar.

Mas Kely não conseguiu nem sair da segunda sala. Algo pulou em suas costas e a jogou no chão. Ela podia ouvir a respiração lenta e furiosa da professora, mas algo de um grunhido fino.
Ali, com o rosto colado no chão, lembrou-se de outra situação. Lembrou-se de máscaras e mentiras, trajes chiques e criaturas selvagens, espionagem e perseguições. Ligou os pontos, e agora sabia qual era a criatura que o trio teve que fugir na noite do baile.

—Talvez se eu acabar com você agora mesmo, ninguém tenha que se estressar mais contigo. E Marcus tem as ferramentas certas para ninguém nem perceber o seu desaparecimento.

Eu vou morrer assim, sem nem ter direito a fazer um testamento? Esperava que seu irmão mais velho tivesse o bom senso de cuidar bem do notebook dela, e apagasse tudo do telefone.
O queixo de Kely ardia, e estava difícil respirar. O homem-morcego entrou em seu campo de visão.

—Humana, você sabe jogar vôlei?

Kely não era muito boa em volêi, mas mentiu, balançando a cabeça com vigor, porque ficava cada vez mais difícil respirar. Era sua única opção de sair bem dali.

—Viu, eu não disse?

Ela sentiu o peso no peito afrouxar, e tomou uma lufada de ar para dentro de seu pulmão.

—Venha aqui.

A professora não estava mais em sua forma humana, mas apesar de seu rosto peludo, suas feições eram as mesmas, definidas do modo ideal. Sua franja era presa em um rabo atrás da cabeça, pequeno em comparação com o comprimento do cabelo. Ela foi atrás de um dos balcões da salinha que mais parecia uma recepção. As paredes da sala pareciam estar caindo aos pedaços. Eva tirou um folheto de trás do balcão.

—Se você ganhar o prêmio desse campeonato para a gente, não falamos de você para o Marcus, se não ganhar, você já sabe.

O folheto não era muito convencional, por isso Kely o analisou bem. Uma placa dourada redonda anunciava o campeonato, e era rodeada de silhuetas incomuns. Kely sacou que uma delas na parte inferior era de homem-morcego, e havia outra que parecia humana, o resto era outra história.

Outro ponto era que ela não entendia o que estava escrito no folheto.

—Do que se trata?—perguntou.

—Vôlei em duplas. Será daqui a duas semanas.

Apenas duas semanas? Era muito pouco para ela aprender a jogar.E o mais importante, era vôlei de duplas, onde encontraria uma dupla? Quem iria querer jogar com ela?

Vou ter que me virar.

—Então tá— ela dobrou o folheto e o guardou no bolso da calça.

Na verdade...Se eles trabalhavam diretamente para Marcus, poderia descobrir com eles qual era o verdadeiro plano dele. O que aquele fantasma havia lhe dito no primeiro dia, a história de "coletar" espectros para fazer algo maior, não se encaixava.

—Ei, concordo com uma condição, se eu ganhar o campeonato, vocês vão me repassar as informações que eu quiser.

Eva soltou um começo de uma gargalhada.

—Você sabe que não está em condições de exigir, não é?

A garota não conseguiu pensar em uma resposta. Mas para a sorte dela, a mulher estava disposta a colaborar.

—Mas tudo bem. Aceito sua negociação,mas vou aumentar a aposta para o meu lado também. Se você perder, você me entrega o seu cabelo.

Kely agarrou as pontas dele instintivamente. Não entendia aquela mulher e nem queria entender alguém que pedisse algo que parecia querer destruir.

—Não é um pouco demais?

—Minhas informações não valem menos que isso. Aceita ou não?

Seu corpo estava congelado de pavor, ela sentiu os músculos contraírem. Porém não conseguia pensar em outro modo de sair dali.

—Combinado— ela respondeu, de cabeça baixa.

—Ótimo, vamos fazer a sua inscrição.

Eles entregaram um formulário em papel para Kely, e ela ficou impressionada que aquele tipo de coisa ainda existia. Tudo o que aconteceu depois foi rápido demais para ela processar, cobriram seus olhos, a levaram de volta para cima, e a lançaram na grama sem nenhuma sensibilidade, e quando sentou-se, ninguém estava ali com ela. Ela pegou o folheto do bolso e ficou o encarando, se sentindo uma idiota. Não fazia ideia de como campeonatos esportivos funcionam, e nunca teve verdadeiro interesse em esportes. Ela deitou a cabeça na grama. Se tudo desse errado, ela pegaria uma transferência, sumiria dali e ela poderia esquecer tudo.
Como se fosse uma possibilidade.

⌁₊˚⊹˚₊⌁

Kely tinha um sabonete na mochila e uma ideia. Ela foi para o banheiro feminino depois das aulas e se fechou em umas das cabines. Noite passada, havia bolado um plano. Faria sabonetes e encantaria eles para tirar o feitiço de Anselas em quem o usasse. Agora que o tinha em mãos, dúvidas começaram a rodear a sua cabeça.

Não, não estava bom. Também não estava interessada em saber quem não lavava a mão, e poderia colocar os outros alunos na mesma situação que ela havia passado. No dia seguinte traria algo melhor. Ela o colocou de volta na mochila e saiu correndo.

—Ei!— Kely parou ao ouvir uma voz chamar sua atenção— Kely, preciso falar com você.

Era a voz acelerada de Daniel.

—O feitiço de ontem. Deixou todos da rebelião estranhos.

—Estranhos como?

O garoto aproximou o rosto e respondeu, a voz beirando a um sussuro.

—Fui falar com Azikel hoje. Ele parecia evitar as perguntas que eu fazia para ele e as jogava contra mim, como se quisesse tirar alguma informação.

Kely apenas escutava.

—Você conseguiu anular o feitiço em mim. Você não consegue fazer isso com todos os outros?

O plano do sabonete veio à cabeça de Kely, mas ela decidiu não comentá-lo. Não era bom.

—É... amh...

—Tudo bem, tudo bem, vamos criar um plano juntos— ele passou o braço por cima dos ombros dela, gesto que a fez se sentir desconfortável— na verdade, nem precisa se estressar, apenas me diga como conseguiu tirar o feitiço.

Ela não contaria sobre a magia profunda, e como não tinha uma mentira melhor, reciclou a que havia contado antes.

—Fiz um acordo com um fantasma.

—O quê? Com Marcus?

—Não, outro.

—E?

—E ganhei um amuleto que anula o contrato com Marcus.

Ele olhava para ela como se ela tivesse feito péssimas escolhas na vida. Era irônico, já que ele havia feito o acordo com Anselas. Por outro lado, na versão dela, havia feito um contrato duas vezes.

—E esse outro fantasma, como você encontrou ele?

Ele perguntava demais.

—Não vou te contar. Não cometa o mesmo erro que eu.

Daniel não se preocupou em esconder uma expressão desapontada. Ele estava escondendo algo.

—Talvez outro dia, hoje eu tenho muita coisa para fazer.

Ela tirou o braço dele de cima do seu ombro e andou em um passo apressado. Não ouviu os passos dele atrás dela. Era um bom sinal.

—Egoísta.

A jovem parou. E se virou de volta para ele.

—Desculpe, disse alguma coisa?—perguntou, mesmo ouvindo muito bem o que havia dito.

Os passos do garoto ecoavam pelo corredor, mas nos ouvidos dela, pareciam estampidos. A proximidade com ele fazia com que todos os músculos dela congelassem. Eu não sou egoísta, apenas sei que você não tem boas intenções.

—Seu olhar não esconde nada. Você ouviu bem o que eu disse.

Duas forças brigavam dentro dela, a raiva, que a impulsionava para e socar a cara dele – o que era fácil já que ele havia se aproximado– versus o medo e o constrangimento, que congelavam seu corpo, fazendo com que nem um mínimo músculo se movesse. O medo falava mais alto.

O medo sempre falava mais alto. E ela se odiava por isso.

—Não.

—Você não se importa com seus colegas? Já faz um ano que procuramos um modo de parar o chefe, e você só prefere dar as costas. Poderia ter ido às reuniões, mas onde você estava?

De novo essa conversa?

—E o quê você já fez?

Isso o deixou sem palavras por um tempo. Era impossível ele ter conseguido fazer algo contra, ele não poderia sabotar o projeto, nem escrever nenhuma informação contrária, nem dar uma informação errada. Kely estava como gerenciadora por tempo o suficiente para saber as regras.

—Posso não ter feito muito, mas me comprometi muito mais do que você.

Kely já estava cansada do garoto.

—Não vou mais falar com você. Pode encontrar outra pessoa da rebelião para me pedir ajuda, mas eu não vou mais falar com você.

Ela havia prometido a si que não ficaria se mostrando com os poderes, mas a última coisa que ela queria era que Daniel a seguisse, então ela se teleportou até o portão, um feitiço um tanto complicado, mas não quando ela tinha uma ajuda da magia profunda.

Seus pés pousaram nos tijolos de pedra da entrada do portal para os condomínios, e ela tomou seu caminho para casa. Estava com fome e tinha que ter muita energia para mais tarde, tinha que começar a treinar para o campeonato.

No dia seguinte, quando estava indo para a sala antes do sinal tocar, ela ouviu alguém a chamar.

—E aí Kely, tudo certo?

Era a voz aveludada de Gael.

—Oi, tudo certo sim...

Fez-se um silêncio constrangedor antes de ele continuar. Porque tinha que ter encontrado ele logo naquele momento?

—Então, estava muito ocupada com a missão? Você não apareceu para dançar...

A garota havia se esquecido completamente, fora uma mancada das grandes.

—Ai nossa, me desculpa, me desculpa, eu esqueci, eu estava tão focada na missão, e acabei esquecendo, me desculpa.

Gael a olhou com uma expressão estranha.

Me desculpa, me desculpa, me desculpa, me des...

—Tá, tá tudo certo. Então talvez possamos... sair algum dia. Podemos sair amanhã de tarde, umas quatro horas, o que você acha.

Bem no horário do treino dos garotos de vôlei, ela pensou, bem agora que ela precisava arranjar todo o conhecimento possível, o tempo era curto demais. Teria que recusar. Isso com certeza o deixaria chateado.

Ela quase aceitou, mas parecia que um pouco de senso despertou em seu ser.

—Me desculpa, não vai dar. Eu tenho um trabalho bem longo... fazer um vídeo, pra depois de amanhã. Vou começar a fazer hoje e provavelmente vou passar a tarde de hoje e amanhã fazendo. Demora bastante, até gravar e editar, sabe? Ainda mais eu que sou super perfeccionista...

Ele assentiu com a cabeça.

—Entendo. Então que dia você acha que...

Nesse momento, o sinal tocou e Gael soltou um grunhido, claramente desaprovando o barulho, e logo em seguida foi levado embora pelos seus amigos o agarrando pelo braço e correndo e rindo. Gael esbaforava sua desaprovação pra cima deles.

Então sua mente voltou a ecoar a primeira parte da conversa: ela havia deixado o garoto sem par no baile. Ela nem havia o procurado e nem o havia visto. Se sentia horrível, um monstro –depois se lembrou que Brasa era um monstro e voltou atrás com esse pensamento, ele não merecia ser comparado com ela.

Os acontecimentos, sejam bons ou não, viram nossa memória e alguns ficam como a marca de uma mensagem. Alguns deles viram parte de algo maior, nossas crenças, como água sendo levada dos córregos para os rios. A água do rio nutre a vegetação das bordas. O que ela tinha feito com Gael tinha feito um grande rio alagar para além dessas bordas. Uma região de mata fechada que há tempos criava uma vegetação muito selvagem, estava tão grossa que era desafiador apará-la. Pior, não se sentia capaz.

O rio alagava rapidamente, e a água tinha que escoar para algum lugar. Era a pior hora possível, a aula ia começar. A garota tentou respirar fundo para parar de chorar, sabia que estava sendo extremamente dramática. Kely só podia sentir raiva. Sentia que não podia confiar em ninguém, nem nela mesma.

■————◆

Olá pessoal, como vcs estão?

Tristeza profunda dessa nossa Kely, não é mesmo? Mas acho que o novo personagem do próximo capítulo vai animá-la um pouquinho hehehe.

Fiquei duas semanas sem postar capítulos. Já venho aqui pedir desculpas. Vou fazer o que posso para que não aconteça de novo. Mas vocês podem ficar tranquilos, esse livro vai até o final, ele já está praticamente pronto, só estou fazendo mistério toda semana kkkkk

Até a próxima👋

Beijos, Red❤️

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