BRENNO
De três tiros, todos acertaram o alvo.
Luísa era muito boa, Brenno Hansberg tinha de admitir. Ele ficaria de boca aberta se ele mesmo não fosse um bom atirador. Exímio atirador, ele fazia questão de corrigir. Não era o tipo de correção arrogante de muitos homens da polícia que se achavam melhores do que todos, em especial melhores do que as mulheres, e por isso não deixariam barato se alguma lhes mostrassem como era acertar o alvo, como Luísa sempre fazia.
O som ensurdecedor ecoava na sala de tiros. Logo quando chegou ao novo trabalho, Luísa mostrou toda sua habilidade com as armas. Ele sabia como era preciso provar para policiais mais velhos e rabugentos que a pouca idade não significava nada.
Ela descarregou a arma mais uma vez; todos os tiros no alvo. Brenno fez um sinal para ela tirar os fones de proteção.
— Nem vai acreditar no que aconteceu ontem — contou, tirando os fones. — Eu estava de serviço, ainda não era meia-noite. Um cara apareceu lá na delegacia. As mãos estavam presas... por uma barra de ferro.
— Como assim? — Ela tirou os óculos de proteção.
— Ele estava no chão. — Brenno juntou as mãos, mostrando a ela. — As mãos dele estavam assim, algemadas. Fiquei me perguntando quem teria forças para dobrar uma barra de ferro como aquela. Tiveram de serrar a barra. Depois descobriram que era um assaltante. Uma mulher estava dando queixa quando ele apareceu. Coincidentemente, ele havia assaltado essa mulher. Nos poupou um bom tempo.
Pôs os fones e os óculos de proteção novamente. Luísa fez o mesmo. Ele atirou três vezes no alvo de papel do outro lado da longa sala de tiros. Depois tirou os fones mais uma vez.
— Sabe o que é mais engraçado? Quando perguntaram quem havia feito aquilo com ele, o cara respondeu que foi uma mulher. Ela usava uma capa vermelho-escura, ele disse. Mas isso não é tudo, não. Disse que o rosto dela parecia uma caveira, branco como papel. Os olhos, nariz e boca completamente pretos.
— Drogas? — Luísa perguntou simplesmente, com as sobrancelhas erguidas.
— Fizeram testes, deu negativo. Mas o roubo provavelmente foi para isso. Só que a Catrina pegou ele antes disso.
— Catrina?
— Você não sabe? Parece que é o nome dela. Muitos do que já chegaram assim na delegacia disseram que esse é o nome dela. Catrina, a representação de esqueleto da festividade mexicana. A do Dia dos Mortos.
Atiraram por mais uma hora, até Keila, a policial novata que estava ajudando-os no caso, aparecer avisando que os funcionários do Hotel Atalaia tinham chegado para o interrogatório. Disse que eram três: o gerente, o segurança e a recepcionista que havia feito o check-in. Era uma boa notícia, assim terminariam logo com os funcionários do hotel. Avisaram que, quando os três chegassem, era para deixarem cada um em uma sala, para que não se vissem e nem se falassem. Os peritos envolvidos na investigação estavam apurando as filmagens das câmeras de segurança, impressões digitais sendo analisadas e o corpo de Albertoni Moretti estava na autópsia. Segundo disseram, alguns resultados sairiam ainda na tarde dessa segunda-feira.
Os dois caminharam até a sala de interrogatório. O primeiro era o segurança; um homem tão forte quanto Brenno e de pele tão negra quanto a de Luísa. Ele estava sentado na cadeira, ouvindo atentamente quando ela começou a falar, depois do parceiro ligar o gravador.
— Sou a investigadora Araújo. Esse é o meu parceiro, investigador Hansberg. — Ela colocou os óculos de aro preto e olhou para o papel, conferindo a ficha do segurança. — Interrogatório do senhor Marcos Rodrigues, segurança do Hotel Atalaia há cinco anos. Estava de serviço no Hotel Atalaia no dia vinte e um de outubro, entre meia-noite e três horas da madrugada de sábado?
— Sim — respondeu o segurança, com a voz grave. — Fui o primeiro a chegar até o corpo.
— O senhor notou se a vítima ainda apresentava algum sinal de vida?
— Não. Pode me chamar de você, por favor. E, não, ele já estava completamente morto. Com uma queda daquela ninguém sobreviveria.
— Certo — ela continuou. — O que o senh... você viu naquela noite, pode descrever para nós?
— Foi uma noite comum. Pessoas entravam, saíam, tudo normal. Até ele cair na calçada do hotel. Foi horrível! Parecia um saco de batatas, mas saco de batatas não sangra. Nunca vi isso antes em todos os meus anos de profissão.
— Então nada lhe chamou a atenção antes do acontecido? Pode pensar por um momento, se quiser.
— Não, nada. Foi tudo absolutamente do mesmo jeito, como outras vezes antes. Me desculpem se não posso descrever melhor, mas é que ainda estou com sono. Quem trabalha à noite dorme durante o dia, vocês devem saber.
Foi a vez de Brenno falar:
— Você conhecia a vítima?
— Apenas de vista. Ele frequentava o hotel, uma vez por semana, se me lembro bem.
— Ele sempre aparecia sozinho ou nesse dia alguém o acompanhava?
— Sempre chegava e saía sozinho.
Luísa anotou as partes mais importantes em um caderninho. Agradeceram o comparecimento do homem e o dispensaram. Saindo os dois da sala, Keila perguntou quem seria o próximo. A funcionária que havia feito o check-in de Albertoni estava na sala de Luísa e o gerente estava na de Brenno. Decidiram ir primeiro com a recepcionista. Keila entregou a ficha para ele.
Entraram na sala, a mulher estava sentada. Brenno ligou o gravador, então saudaram a mulher dizendo seus nomes como havia sido com o segurança. Dessa vez, foi Brenno que começou a ler a ficha dela.
— Interrogatório da senhorita Paula Lisboa, trabalha no Hotel Atalaia há três anos. — Largou a ficha na mesa e olhou para ela. — Estava trabalhando no Hotel Atalaia entre meia-noite e três horas da madrugada de sábado do dia vinte e um de outubro?
— Sim — ela respondeu prontamente. — Trabalho às madrugadas.
— O incidente — Luísa tomou a palavra —, ocorrido com o senhor Albertoni Moretti... Você poderia explicar para nós como aquilo aconteceu?
— Eu estava na recepção, como sempre. O movimento estava fraco, não havia muitos hóspedes. Foi de repente. O Marcos, segurança do hotel, foi o primeiro a ver o senhor Moretti na calçada. Ele gritou por ajuda, todos os outros seguranças correram, todos nós corremos para ver. Infelizmente, o senhor Moretti já estava morto, não havia nada que pudéssemos fazer.
Pelo menos a história do segurança bate, Brenno pensou.
— Entendo — disse. — Foi você quem fez o check-in dele?
— Sim.
— Ele estava sozinho?
— Sim, ele sempre chegava sozinho. Sempre saía sozinho também.
— Não havia ninguém estranho ou de comportamento estranho no hotel? E se houvesse, você teria notado?
— É difícil dizer. — Ela ponderou por um momento, esfregando os olhos. — Não sei dizer com certeza, mas não havia ninguém assim que eu tenha visto.
Luísa perguntou, levantando os óculos no nariz:
— Sabe dizer se o senhor Albertoni Moretti estava se comportando de maneira estranha?
— Não — a moça respondeu. — Ele sempre aparentava o mesmo semblante. Ele não falava muito, veja bem. Principalmente com a gente, os funcionários. Ele conversava bastante com os gerentes. Eu fiz apenas o registro dele no hotel, mas ele não trocou nenhuma palavra comigo.
— Como isso aconteceu, exatamente? — Brenno quis saber.
— Bem, ele chegou ao hotel. Nosso gerente, Cláudio, estava lá. Os dois se cumprimentaram. Então meu gerente veio pedir o cartão do quarto da cobertura e para que eu fizesse o registro do senhor Moretti. Foi ele quem entregou o cartão. Depois disso, o senhor Moretti foi para o bar do hotel. Não sei quanto tempo demorou por lá até subir.
— Ele sempre pedia o mesmo quarto e nunca falava com você? — ele perguntou novamente.
— Sim, sempre o mesmo quarto. Durante todo o tempo em que eu trabalho lá, o senhor Moretti não trocou uma palavra comigo. O gerente sempre tomava conta pessoalmente do senhor Moretti.
Aí está, ele se deu conta. Luísa anotou o que foi dito. Os dois agradeceram e indicaram a saída para ela. Keila estava do lado de fora para entregar a última ficha. Seguiram para a sala de Brenno para o último interrogatório do dia com o pessoal do hotel.
Ele abriu a sala. Um homem estava sentado, o rosto fino impaciente.
— Vocês demoraram, não tenho o dia todo — reclamou.
Os dois policiais trocaram um olhar. Brenno tirou o gravador do bolso, colocou em cima da mesa e o ligou.
— Então vamos começar — disse Luísa. — Sou a investigadora...
— Sim, sim — o homem interrompeu. — Sei quem vocês são. São policiais, o nome não importa tanto. Essa aí deve ser minha ficha — apontou com o dedo longo e ossudo —, então não preciso me apresentar. Podemos ir ao que interessa.
— Desculpe — Brenno disse, sem perder a paciência. — Esse é o procedimento. Estamos gravando esse interrogatório e a ficha precisa ser lida.
O homem revirou os olhos. Luísa segurou o riso e depois recomeçou:
— Sou a investigadora Araújo e esse é meu parceiro, investigador Hansberg. Interrogatório do senhor Cláudio Carvalho, gerente do Hotel Atalaia. O senhor estava de serviço na madrugada de sábado, dia vinte e um de outubro, entre meia-noite e três horas da madrugada em questão?
— Sim, sim, eu estava — ele respondeu com a voz entediada, os olhos mais entediados ainda. — O senhor Moretti faleceu nessa noite, infelizmente.
— Pode nos contar como foi aquela noite?
— O senhor Moretti chegou um pouco mais tarde naquela noite por conta da chuva. Não sei exatamente, mas acho que era quase onze da noite, penso eu. Sempre passava uma hora no bar do hotel. Sempre pedia uísque. Passado esse tempo, ele subiu, pegando o elevador até chegar ao quarto na cobertura.
— Ele era um hóspede frequente? — Brenno perguntou.
— Digamos que sim. Uma vez por semana.
— Sempre nos mesmos dias?
— Não.
— Ele sempre pedia o mesmo quarto?
— Sim. Não são todas as pessoas que conseguem bancar uma noite na cobertura do Hotel Atalaia. Nem você com todo o seu salário de investigador conseguiria.
Brenno decidiu deixar aquela passar. Aquele magrelo já estava passando dos limites com toda aquela petulância. Olhou para Luísa, para que ela perguntasse agora. Ela segurou o riso de canto de boca e perguntou:
— Ele sempre frequentava o hotel sozinho?
— Chegava e saía sozinho, mas não ficava lá sozinho, se é que me entende.
— Prossiga.
— Havia uma mulher que sempre se encontrava com ele. Uma mulher... como posso dizer? Uma mulher da vida.
— Uma prostituta? — Luísa disse sem rodeios. O homem fez uma careta, como se estivesse ofendido. Mas assentiu mesmo assim. — Ela sempre estava com ele no hotel?
— Sim — respondeu ele, trocando as pernas. — Ele frequentava o hotel para se encontrar com ela.
— E como ela é, essa mulher? — Brenno perguntou.
— Loira, branca... O que posso dizer? Vestia-se bem, vestidos bonitos, cabelos sempre tão bem-penteados, bolsas caras, sapatos bonitos... Ela sempre chamava atenção, tanto de homens quanto de mulheres. Aquela mulher é um espetáculo!
— Espetáculo? — ele perguntou, confuso.
— Bonita, lindíssima... Gostosa, para usar uma expressão horrível que vocês homens das cavernas usam.
Dessa vez a parceira de trabalho soltou um risinho. Ela abaixou a cabeça, escrevendo o que o gerente disse. Então perguntou:
— Depois de Albertoni ter... caído da cobertura, a mulher ainda estava no quarto?
— Não, não. Ela saiu pouco antes disso. Eu vi quando ela passou pela recepção. Andando rápido, para constar. O que é estranho, pois os dois saíam apenas pela manhã. Claro, eles não saíam juntos. Imagina o escândalo!
— Ele não parecia estranho naquela noite? — Brenno perguntou dessa vez.
— Ele parecia preocupado, mas claro que eu não perguntei do que se tratava.
— Notou alguém com comportamento estranho ou alguém que nunca frequentou o hotel aparentando algum comportamento estranho?
— Não. Nada disso. Apesar de que sou um bom observador, não notei nada disso.
— Os hóspedes dos quartos ao lado não disseram nada na recepção antes do acontecido, não reclamaram de barulho, nenhuma discussão, nada?
— Não, nada do tipo. Estava chovendo canivete, não dava para ouvir nem o próprio pensamento.
— Tudo bem — Luísa disse, escrevendo as últimas palavras no caderninho. Ela levantou e abriu a porta. — Keila, leve o senhor Carvalho até o nosso desenhista. — Virou-se para o homem. — Descreva a mulher com o máximo de detalhes que puder, por favor. Obrigada por contribuir com a polícia, senhor Carvalho.
— Que isso, eu que agradeço, meu bem.
A porta se fechou, então Brenno pôde dizer o que queria.
— Que cara mais idiota!
— Na verdade, eu fiquei surpresa. Ele não sabia quem você é. Mas fiquei mais surpresa por ele não ter ficado afim de você?
Fala sério, ele pensou.
De tudo isso, de todo o estresse sofrido, até quehavia surgido uma luz. Talvez fosse a luz certa, a luz para desvendar o quehavia por trás da morte de Albertoni. E por isso, Brenno estava satisfeito.
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