Capitulo 1 - XF4825PI
Gabriela Sales era uma gateira. Isso era o que seus colegas de trabalho diziam. Não podia negar, ela amava gatos.
Quando pequena, Gabriela nunca pôde ter um animal de estimação. Sua família era muito pobre, a sua mãe não tinha condições de arcar sequer o alimento da filha, recusava ter um animalzinho de estimação, alegando que não poderia fazê-los também sofrer.
Ao se tornar uma adulta, tentando dominar as adversidades da vida, Gabriela pensou como era justo. Entretanto, quando começou a ter uma vida mais estável, a situação lhe concedeu seu desejo de gatinhos.
Andando de volta para casa, nas ruas da cidade de Curitiba, Gabriela deparou-se com uma caixa de sapato perto de uma lixeira, que miava. A menina se abaixou e ao abrir a caixa, encontrou duas gatinhas bebês, magras, cheias de pulgas e famintas. Gabriela imediatamente levou as pequenas criaturas para casa.
Naquela época houve apenas um pequeno inconveniente, é claro, o seu locatário proibia nas instalações do prédio que morava a presença de animais de estimação. Seja qual fosse. Gabriela precisou de muita lábia para conseguir convencer seu amigo, o locatário, Fernando Werneck, que ficou muito relutante dizendo que se abrisse uma exceção, teria de abri-la para todos. A solução foi sugerir um aumento no aluguel — ele aceitou, claro, estipulando uma regra que abriria exceções se pagassem mais.
Suas gatas mataram um pouco de sua solidão. Eram duas fêmeas, que deu o nome de Pandora e Atena. Criaturas com personalidades diferentes: Pandora era a mais extrovertida das duas, curiosa, adorava subir em tudo e sempre procurava por novas aventuras. Já Atena era mais tímida e reservada, mal humorada, porém, adorava carinho.
Gabriela amava tanto suas gatas, tirava foto, chamava-as de filhas, toda oportunidade que tinha, falava sobre elas. Mandou castrar, enfeitava com lacinhos, colarzinhos de pérolas, gastava um bom dinheiro para alimentá-las bem. Eram seus tesouros, que cuidava tão bem quanto sua mãe falecida lhe ensinou a cuidar de todas as espécies criadas pelas mãos de Deus — embora, a mãe gostava bastante de xingar o pai, e dizia que foi uma espécie criada pelo diabo.
Durante dois anos, Gabriela amava criar suas gatas, assim como gostava de viver naquela vizinhança. O pequeno prédio de um andar era silencioso, seus vizinhos eram todos quietos, mal diziam bom dia, mas era perfeito para alguém sozinha que vivia com cautela.
Gabriela trabalhava em um pub-café, como o dono chamava. Era a gerente, e todo o dia saia do seu expediente morrendo de saudades de suas gatinhas.
Mas, houve um dia, que sua rotina havia completamente mudado.
Era uma terça-feira, quinze de outubro, estava chovendo bastante. Havia fechado o estabelecimento havia quarenta minutos, mas a chuva não parou nem por um segundo. No primeiro espaço que apareceu para conseguir chegar até o ponto de ônibus, Gabriela correu pela calçada, deixando o café.
Correu um pouco, porém, não conseguiu chegar ao ponto de ônibus. Precisou se abrigar debaixo das lonas de uma outra loja.
— Ah, meu Deus! — reclamou Gabriela, irritada. — Que dia mais azarado!
Batendo com a mão em suas roupas molhadas, Gabriela suspirou. Deveria esperar, afinal um pouco de água não iria desmanchá-la feito açúcar.
Gabriela pensou em suas gatas. Todos os dias, ao chegar em casa do trabalho, Pandora estava faminta. Preparava sua ração com um pouco de molho, pois ela também tinha a tendência a não beber muita água. Já havia pegado uma infeção urinária, e a veterinária aconselhou rações molhadas — também forçá-la a beber água.
Antena era um pouco mais dorminhoca, mas estaria com bastante fome.
Sorrindo com a lembrança de seus bebês, de repente, Gabriela escutou um choro. Ela se assustou. Era uma criança!
Uma criança chorando tão desesperada, que chegou a acelerar o coração de Gabriela. Procurou, acreditando que estava perto; mas não sabia exatamente onde. Não havia nenhuma criança ali.
Quando um trovão estalou no alto, Gabriela escutou o choro piorar. Um raio caiu no alto do prédio, causando uma terrível queda de energia e gritos de mulheres assustadas com os sons de estáticas e lâmpadas estourando.
Gabriela olhou para cima, assustada, e quando voltou o rosto para baixo, notou que o choro da criança não era uma alucinação.
O coração da moça foi parar no céu, voltando no lugar errado.
— O quê? — ela questionou, baixo, alarmada.
Na lona da loja ao lado, Gabriela viu uma criança. Uma pequena criança, que parecia de rua. Embora pudesse jurar que não havia ninguém ali.
Olhou ao redor, vendo pessoas passar debaixo de guarda-chuvas, olhando para criancinha que estava sentada no chão, chorando com as duas mãos no rosto, secando suas lágrimas. Ao lado dela, Gabriela viu um gato de pelagem cinzenta e olhos verdes.
Novamente, ela jurou que não tinha ninguém debaixo daquela lona. Apertou o lábio, percebendo que, talvez, não apenas ela jurava aquilo.
Contudo, começou a duvidar. A criança estava chorando, usando roupas estranhas que parecia alienígena (pois não conseguia descrever o que via). Era um bebê lindo, parecia uma menina de 5 anos de idade, com cabelos loiros e ao afastar as mãos do rosto, Gabriela percebeu que seus olhos eram azuis.
As dúvidas de Gabriela pairavam sobre o que fez seu coração doer. O gato parecia ter recebido mais atenção do que uma criança. Uma criança! Havia centenas de pratos de comida para o bichano, parado ao lado da menininha, e ele não comeu nenhum grão das rações. Olhava para chuva com o desdém fofo dos gatos.
Não entendendo mal, Gabriela amava os animais, mas sua mãe lhe ensinou a amar todas as criaturas do universo, e jamais, jamais colocaria seu amor por animais, plantas, pedras e tudo que Deus criou acima de um ser humano.
As pessoas passavam pela criança e o animal, piscavam, sem saber o que fazer ou dizer, nem reagir. Era como se estivessem vendo um fantasma. Aquilo era demais!
Gabriela correu debaixo da lona que se abrigava, pulando para não se molhar muito. Seu pulo chamou a atenção da criança, assim como do gato.
— Meu Deus, você está bem? — Gabriela perguntou, apavorada que a menina era menor do que previu.
A garotinha olhou para ela com enormes olhos azuis, mergulhado de lágrimas. Seu nariz estava cheio de musgo, descendo sem seu controle.
— Cadê seus pais?
A menina não respondeu. Percebendo sua cautela, Gabriela, que estava muito atônita com aquela situação lastimável, abaixou-se e estendeu a mão para menina.
— Hey, não tenha medo — sorriu o sorriso mais gentil, do mesmo modo que lembrava de sua mãe lhe sorrindo. — Eu não vou te machucar.
Novamente a menina não respondeu. Será que ela era estrangeira, entendia o que falava? Que diabos de roupas era aquela? Pareceu a Gabriela que caiu de uma nave alien, vestida em tecidos tecnológicos que brilhavam como neon.
— Está tudo bem — ela tentou uma abordagem mais sensível e suave. — Meu nome é Gabriela, mas você pode me chamar de Gabi, tá?
— Gabi — sussurrou a menina.
— Isso — sorriu Gabriela. — Consegue me entender?
— Xim — a menina respondeu. — A mamãe dixe que nós fomos implatadox com um xip de comunicaxão. Podemos falar qualquer língua do universo.
Gabriela apertou o lábio, se deparando com uma criancinha de uma voz tão linda, puxando os "xis". Por um momento, pensou que fosse vomitar arco-íris.
— E onde está a mamãe? — também notou que ela tinha uma boa imaginação.
— Eu não xei — respondeu a menininha. — A mamãe e o papai são maus. Eles me abandonaram e foram embora.
Com aquela frase, Gabriela sentiu um ódio tão profundo, que precisou fazer um esforço para não mudar a expressão gentil para não assustar a criança.
— Tudo bem — ela prendeu o ar, e soltou. — Qual é o seu nome?
— XF4825PI — imediatamente a criança respondeu.
— Ah, é? — Gabi se abaixou, percebendo como ela tinha uma imaginação fértil. — Tem algum apelido?
— Pi — respondeu.
— Quantos anos você tem, Pi?
— Cinco.
— Ah, meu Deus — Gabriela quase xingou um palavrão. Os pais dela realmente eram muito maus, como puderam abandonar uma criança de cinco anos na rua? — Você não viu para onde seus pais foram?
Pi sacudiu a cabeça, inflando as bochechas, pronta para chorar novamente. Apavorada, Gabriela ergueu a mão e acariciou os cabelos da pequena garotinha. Estava molhada da chuva, muito fria.
— O papai e a mamãe disseram que não vão voltar! — fungou a criancinha.
— Está tudo bem — tentou acalmá-la. — Vou precisar te levar até a polícia, mas antes disso, que tal ir até a minha casa? Não fica muito longe, e vou te dar alguma coisa para comer. Você está com fome?
Pi ergueu os olhos muitos azul até ela, apertando o lábio, segurando o choro. O nariz estava escorrendo tanto, que chegou a ser muito fofo. Em seguida, sacudiu a cabeça para a última pergunta de Gabriela.
— Poxo levar o gato comigo? — perguntou Pi.
— Ah, claro — Gabriela o notou. — Não tinha intenção de deixá-lo, de qualquer modo. Onde há dois, cabem três, quatro, cinco ou dez!
A menina não entendeu, apenas sacudiu a cabeça, sorrindo em seguida. Parecia que não estava mais desconfiada, assim que abriu os braços e pulou no colo de Gabriela. Novamente, percebeu que estava muito molhada, também um pouco magra.
Depois de se afastar, Pi ergueu as mãozinhas para agarrar o gato.
— Vamos, ÆtØı4-94 — Pi disse, e pareceu uma língua que Gabriela jamais ouviu em vida.
— O gato é seu? — perguntou a moça, recebendo um aceno da linda cabeça da mocinha. — Deu um nome muito original.
Pi sorriu.
— Consegue me seguir? — Gabriela sorriu de volta. — Quer que segure seu gato? Assim pode segurar a minha roupa ou mão, para não se perder.
Pi lhe passou a animal, que era muito dócil. Em seguida, Gabriela estendeu a mão livre para a menina.
— Vamos? — disse com voz suave e calma.
— Vamô — Pi tinha um enorme e delicioso risinho.
A mão de Pi estava fria e molhada quando Gabriela a segurou. Embora estivesse irritada, ela sabia que não poderia deixar a menina ali sozinha, chorando na chuva. Ela se lembrou de um curso de segurança que havia feito para sua antiga empresa, lembrando que os procedimentos para ajudar uma criança perdida eram chamar a polícia, ou esperar pelos pais. No entanto, ela não conseguiu pensar em nada além de tirar a criança daquela situação triste e cinza.
Gabriela suspeitava que a menina havia mesmo sido abandonada pelos seus pais e que estaria ali sozinha por horas, sem ajuda. Apesar disso, ela decidiu levar a menina para casa e depois procurar a polícia. Ela ficou chocada com a desumanidade de deixar uma criança tão linda abandonada.
— Pi, não é? — disse Gabriela, segurando a mão dela, percebendo que a chuva estava muito forte para sair. — Não deve aceitar que nenhum estranho te leve para casa dele, certo?
— É? Poxo ir para xua?
— Bem, eu sou a Gabi, lembra, não sou uma estranha mais?
— É mesmo?
— Não vou te machucar, mas lembre disso. Nunca aceite doce ou ajuda de estranhos. Quando estiver perdida, procure a polícia. Eles vão te ajudar. Nem todo mundo é bonzinho.
— Eu xei. Meus pais xão maus.
Gabriela estava mesmo certa. Queria muito fazer centenas de perguntas, mas, por enquanto, deveria ajudar a menininha a se sentir segura.
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