Capítulo 22

Quando acordou, Judy deparou-se com a brancura deprimente e solitária do quarto. Uma enfermeira entrou perguntando o que precisava, e em seguida o médico veio com sua prancheta, lançando-lhe um olhar de pena por baixo dos óculos quadrados. Ela sentiu vontade de gritar para ele todas as suas façanhas, paradoxos, e aventuras que viveu sozinha nos últimos três dias, mas limitou-se a virar o rosto e perguntar pelos pais.

— Seu irmão convenceu-os a ir para casa comer algo, estão cansados e nervosos.

— Não dá pra me tirar daqui, estou bem. Você fez os exames, não é? —indagou com um certo nível de agressividade.

— Se concordar comigo, gostaria de trazer outro médico para conversar com você. Uma psicóloga, até seus pais chegaram. Está bem assim?

— Não estou doida!

— Eu não disse isso.

Judy deu de ombros, diante da indiferença, o médico chamou a doutora. Uma idosa negra, com cabelos grisalhos e óculos grandes entrou, seu olhar era amistoso e sorria gentilmente para criança. Em seu jaleco, bordado cuidadosamente em linha vermelha, seu nome e título de psicóloga infantil destacavam-se: Edna McGrath.

— Olá, doutora Edna. — Tentou falar com uma voz brava, parecendo mais infantil do que nunca.

— Senhorita Henderson. — Respondeu a mulher puxando uma cadeira para perto da cama, levando a sério o ultimato de Judy de querer ser tratada como gente grande. — Como se sente?

Em resposta, Judy arrancou o aparelho de medir a pressão do dedo e respondeu com as sobrancelhas erguidas:

— Maravilhosamente bem!

— Gostaria de me contar o que aconteceu?

— Eu já contei aos meus pais, pergunte a eles.

— Estou perguntando a você.

— Do que ainda? Ninguém vai acreditar. Você vai me levar pra um hospício.

— Está bem. — A senhora se levantou, não segurava nenhuma prancheta e nem escondia uma camisa de força. Retirou o jaleco e o dobrou sobre o colo, mostrando uma camisa florida como o de qualquer senhora que Judy conhecera, como uma avó. — Vamos, eu só quero te ouvir. Isso não precisa ser como você pensa.

A criança sentiu-se mais confortável, porém não deu o primeiro passo em iniciar a conversa. Ainda não tinha pensando bem sobre todos os acontecimentos nem raciocinado que uma história de viagem no tempo não podia ser levada a sério em 2018. A única coisa que a importava era provar, de qualquer forma, que tudo foi real.  Queria aparecer na televisão e no YouTube alertando crianças de todo o mundo para não usarem a câmera frontal dos celulares.

— De acordo com o que sei, você afirma ter viajado no tempo e no espaço.

— Sim.

— Para quais épocas exatamente você foi?

— Idade da pedra, revolução francesa e Egito antigo. — Cruzou os braços sobre o corpo e observou a mulher, que não expressou reações. — Posso dizer exatamente tudo que vi lá, desde o formato das casas até o clima. Diante de mim, a grande bastilha caiu.

— Você acha que...

— Eu tenho certeza!

— Certo. — A doutora percebeu que teria que tomar o dobro de cuidado com a criança, não era uma paciente disposta a continuar a conversa caso sentisse raiva demais. — Isso já tinha acontecido antes?

— Viajar no tempo? Claro que não.

— Então você nunca se viu em lugares estranhos, ou viu pessoas estranhas e vozes... Como a sensação de estar em outro lugar, em um sonho. Já se sentiu assim?

— Claro que não.

Impaciente, Judy esperou que ela pedisse para falar sobre o Egito, ou a França. Assim ela poderia fornecer relatos tão reais e convincentes que a psicóloga aceitaria sua verdade. Cada mínimo detalhe, poderia provar tudo com a roupa da sacerdotisa, com Bastet, que a seguiu. A doutora, porém, não queria chegar nesse ponto  e insistiu em levá-la por outro caminho.

— Seu irmão contou que você foi até a casa dele, pediu ajuda e depois foi embora.

— Sim, é verdade. Meu pai ameaçou me enviar para um colégio interno, longe da minha casa e dos meus amigos. Eu pedi a Joseph que intercedesse por mim, mas o safado negou!

— E depois, para onde foi?

— Para o lago Odyssey.

Edna interessou-se especificamente por esta parte da conversa, que poderia direcioná-la a resposta que queria: Judy fugiu ou foi levada por algum criminoso?

— O que foi fazer lá? O lago Odyssey é uma boa opção para passear, refletir, só que não a noite.

— A senhora está errada! Para sua informação, o lago é poluído e os patos morreram. Não é mais um bom lugar para passear e refletir.

— Acho que concordo com você, Judy. Faz tempo que não ando lá por perto.

— Bom, quando cheguei, recordei de um trabalho que fiz com Bonnie, minha amiga. Um trabalho da escola, arrasamos. Tentei bater uma selfie pra mostrar a ela onde estava, aí eu desapareci!

— É a última coisa que lembra?

— Não, eu lembro exatamente de tudo que aconteceu na idade da pedra após isso.

— Está preocupada com a escola?

— Não entendo o que isso tem a ver.

— É que já mencionamos a escola duas vezes durante nossa conversa: seu temor em trocar de escola e o trabalho que fez com sua amiga.

— Bom, fiquei de recuperação em história, sabe? — Esse fato voltou a sua cabeça em cheio, afligindo-a com a possibilidade de ter que prestar a prova.

— Por acaso ficou em recuperação nas matérias de idade da pedra, revolução francesa e Egito antigo?

— Sim... E isso está relacionado, eu fui para essas épocas, exatamente, sim!

— Lembra de alguém ter te pegado e levado a um lugar, precisou fugir ou...

— Não, eu juro que não, absolutamente não. Não quero que culpem ninguém por algo que não aconteceu.

— O sangue nas suas mãos...

— Foi o celular, eu quebrei e joguei os restos no lago, juro.

A última coisa que Judy precisava era de uma investigação policial, que algum inocente que estivesse próximo do lago aquela hora fosse considerado culpado ou condenado, o coração disparou de medo e Edna percebeu o terror em seus olhos, concluindo que a criança estava muito alterada para prosseguir com o diálogo. Nesse momento, um enfermeiro bateu a porta, anunciando que os pais queriam entrar. A conversa foi encerrada e Judy foi encaixada em vários horários para terapia a partir da semana seguinte.

— Judy Henderson não foi sequestrada, a bateria de exames mostra que ela está perfeitamente bem, exceto pelos cortes nas mãos. Também foram feitos exames a partir do tecido do vestido com o qual foi encontrada, e não há vestígios de sangue ou DNA de qualquer outra pessoa. Ao longo dos últimos dias, ela foi consultada por dois psicólogos infantis e um psiquiatra. A conclusão é que não se trata de um caso policial, mas de um quadro nervoso gravíssimo, acompanhado de psicose graças aos estresses com o exame escolar e a ameaça, mencionada por ela, de ser encaminhada a outra escola. Não há relatos de doença mental na família, assim como a criança nunca apresentou sintomas semelhantes antes. — Joseph notificou os pais, lendo o relato oferecido pelo próprio hospital. Judy já estava em casa, no quarto, isolada de todo tipo de tecnologia por sua própria vontade.

— Eles acham que ela é louca? — perguntou a mãe, indignada.

— Foi um ataque de pânico, um surto. Já viu algo assim, filho?

— Não lembro — respondeu Joseph, já cansado da história. — Mas vejam, tudo que ela contou aos médicos sobre viagem no tempo foi interligado às matérias que ela estudava. Isso é tão óbvio! Creio que devem ficar em casa, cuidar dela e continuar a terapia.

A porta foi entreaberta, temerosa, a mãe imaginou a filha espiando, ouvindo. Bastet mastigava um de seus sapatos, e ela realmente não se importou da gata ficar ali, já que Judy gostava dela. A menina saiu na ponta dos pés. Usava um velho pijama e meias listradas.

— Você está bem?

— Sim, posso usar seu computador?

A família quase saltou do sofá com o susto, aquela era a primeira vez que ela pedia para usar algo do tipo, negava-se a ver televisão e repudiava a ideia de ganhar um smartphone novo, o que perturbava profundamente os pais.

— Claro!

— Sozinha — pediu, quando a mãe a seguiu.

Já havia se conformado com a ideia de que ninguém jamais acreditaria em sua história, concordava com o que os psicólogos diziam e evitava certos assuntos. Era o melhor, seria seu segredo, sua vida. A única pessoa com quem poderia compartilhar as experiências abertamente seria Ava, em 2024, isso se ela mesma sobrevivesse aos problemas de 2020. Pesquisou no computador da mãe seu perfil no Instagram, se não fosse o risco de prejudicar o fluxo temporal e destruir o mundo, teria lhe enviado uma mensagem. Era ela, Ava White, os cabelos sem a chamativa tintura azul, mais jovem.

Depois fez a parte difícil. Pesquisou por Lume Rouge, Paris, Emma, tudo... Nada podia lhe ajudar. Fazia bastante tempo, embora para ela fosse apenas alguns dias, o mundo mudara e Oliver estava morto, enterrado há centenas de anos.

Uma lágrima escorreu por sua bochecha, entretanto, logo sorriu. Conseguia lidar com o computador sem dificuldade, medo. Se não fosse o temor por 2020, retornaria a vida normal.

Visualizou uma mensagem de Mark, seu amigo.

Hey, meu pai ganhou uma cortesia e vamos jantar em um restaurante caro. Quer ir com a gente? Sei que você tá passando por umas situações esquisitas, tô preocupado.

Não foi gentil, foi odioso. Ele só queria saber fofocas sobre sua possível loucura. Um convite de Oliver LeBlanc teria sido aceito, pena não existir Instagram em 1789

A mãe não aguentou o suspense, entrou no quarto e chamou a atenção da filha.

— O que está fazendo?

— Apenas vendo meu Instagram.

— Tenho uma boa notícia para você.

Judy sorriu para ela, queria passar aos pais a impressão de que se encontrava bem, saudável. Sentiu tanto a falta deles, tanto medo de nunca mais ver sua família, que de vez em quando os acordava de noite pedindo por um abraço. Até mesmo Joseph, meio afastado, agora fazia visitas constantes para falar com a irmã Arrepiou-se quando viu o smartphone da mãe em sua mão. Brilhante, tentador, câmera frontal assustadora.

— Hoje de manhã a coordenadora da sua escola ligou, tendo em vista o que aconteceu, a professora decidiu que você não precisa mais prestar a prova de história.

— O quê!?

— Isso mesmo! — A mãe aproximou-se, alisando seus cabelos. — Ela aceita um trabalho feito em casa sobre os temas, digitado e com gravuras. Podemos fazer juntas.

— Não! — Judy saltou da cadeira, transtornada. — Depois de tudo que eu passei, exijo fazer essa prova!

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