Capítulo 19

O dia do grande cortejo ao faraó Sefrés amanheceu ensolarado e quente, como sempre. A casa de Nadi encontrava-se em perfeito caos, desorganizada a revirada, como se a mais torrencial das tempestades tivesse sacudido a estrutura durante a escura noite. Foi Judy, procurando seu celular, jogou almofadas e colchas de cama para todos os lados. Estatuetas foram arrastadas, tiradas de seu altar de adoração e por vezes quase espatifadas. Móveis de cabeça para baixo, talheres que pararam dentro da banheira. Um horror.

De alguma forma, ela conseguiu fazer todas aquelas coisas sem acordar os moradores. Ao virar uma cadeira de ponta cabeça, tinha cuidado, ao afastar estatuetas, fazia na ponta dos pés. Se irritasse alguém, seria expulsa antes de encontrar o smartphone. Tafnis e seu pai tinham sono pesado, Nadi tomou ervas fortes para acalmar os nervos, e os servos atribuíram qualquer som estranho a Akibet, e as ordens eram claras: a casa é de Akibet, ela faz o que quer.

Encontraram Judy sentada bem no meio da sala, os olhos inchados, segurando na mão uma das inúmeras taças prateadas para vinho, como se fosse encontrar seu celular lá dentro.

Um rubor tomou a faca de Nadi quando viu a cena. Nunca iria recuperar a confiança do seu pai novamente, levou uma encrenqueira para dentro de casa, uma ladra. Tafnis correu para checar se todos os deuses estavam inteiros, não porque se preocupava, mas torcendo para Judy ter estilhaçado uma das representações de Sekhmet, deusa da vingança e destruição. Assim, poderia convencer o pai através de uma interpretação dramática que Nadi trouxera a ira da deusa para sua casa. Com a irmã desertada, ganharia seu grande quarto, suas joias, perucas e roupas.

O pai conduziu as mãos a cabeça, desesperado pelos prejuízos,

— O que aconteceu aqui? — Nadi dirigiu-se a Judy. — Por que fez isso?

— Meu celular, eu imploro! — A menina repetiu insistentemente, consciente do estrago e do perigo em que se meteu.

— Vou dizer o que aconteceu — bradou o pai  — você trouxe para dentro de casa uma ladra, uma estrangeira suja! Nadi, estou cansado das suas trapalhadas!

— Pai, eu juro que...

— Cale-se! — Ele agarrou o braço de Judy, arrancou a peruca despenteada de sua cabeça e a arrastou para fora. A menina chutou e gritou, tentou morder o pulso do homem. Fora da casa, jamais recuperaria o celular, estaria perdida. — O único motivo para não te açoitar como criminosos merecem, é que não posso derramar sangue em dias de festa como hoje. Seria uma ofensa ao Hórus Vivo.

Já no meio da rua, seus joelhos ralaram na areia pedregosa. Ela tentou voltar para dentro, quando o guarda da casa apontou, de seu posto, a flecha para o meio de seu peito.

— Se esta criatura perturbar, perfure um dos braços. — Ordenou o velho, retornando para dentro.

A flecha ameaçadora do guarda continuou na direção da criança, um simples escorregar de seus dedos e ela seria morta. De tudo o que passou, aquele era o pior momento, pois estava irremediavelmente sozinha, sem o companheiro, fiel escudeiro que lhe confortava tanto. O celular e os tênis vermelhos eram as únicas coisas que Judy ainda possuía para lembrar-se de quem era, do seu nome, seu futuro. Sem essas provas, enlouqueceria. Toda sua vida em 2018 seriam apenas borrões embaçados de delírios malucos. Uma marginalizada, estrangeira, pedinte. Nada mais que uma moradora de rua maluca, esperando que algum egípcio penoso lhe presenteasse com esmolas.

Judy começou a questionar a realidade, sua antiga realidade. E se ela fosse louca? Poderia ser somente uma estrangeira ou moradora de rua da cidade, 2018 e 1789 seriam sonhos, psicoses que teve após bater a cabeça forte em algum lugar. Ava, Oliver, sua mãe: eram todos personagens inventados por seu inconsciente, talvez para tornar a verdade mais suportável. Uma história, um surto que sua mente criou. Olhou ao redor, o céu azul vibrante, o guarda lhe apontando uma flecha e o povo passando já apressado pelas ruas, com enfeites, tecidos e cuidando dos preparativos para o cortejo do faraó. Aquilo era o que via, não via absolutamente nada que remetesse a 2018.

Então porque não entendia o idioma que eles falavam? Simples, era estrangeira, ou burra. A loucura podia ter afetado a linguagem também.

Mais alguns segundos destes pensamentos, e seu superego finalmente entraria em colapso, jogando seu corpo para um estado de catatonia.

Felizmente, os tênis vermelhos estavam lá, bem amarrados. Nadi ofereceu sandálias de couro adequadas no dia anterior, mas ela as negou prontamente. Agarrou-se a eles, os viu, tocou, e também se sentou e agarrou a perna para beijar os próprios pés. Os tênis da Ladybug foram a âncora que a manteve presa à sanidade. Lembrou do desenho, — que assistia porque achava os personagens bonitos, sem prestar atenção — da televisão, do vide-game, do cheetos sabor queijo, Mark Rock lhe convidando para uma partida de Free Fire, a professora reclamando das notas, os pais ameaçando o colégio interno...

Toda aquela cena da menina beijando os sapatos causou um enjoo terrível no guarda, que baixou sua flecha e ficou de olho nela, os ouvidos apuraram-se para a briga que acontecia dentro da casa. Mais tarde, fofocaria com os servos sobre tudo.

A água gélida e refrescante da piscina arrepiou a pele da Tafnis, que aproveitou a agradável sensação, nadando tranquilamente, arrancando uvas verdes do cacho que uma das servas deixou na beirada. O que lhe deu mais prazer naquela manhã não foram as uvas ou a água, foi saber que o pai responsabilizaria completamente Nadi pelo incidente com a bagunceira.

Para ela, Nadi era uma chata sem tamanho, preferida do pai, a grande sacerdotisa de Thóth. Seu pai era assim, amava em primeiro lugar as mais velhas e em último a mais nova. Agora, subiria uma posição no ranking graças ao erro da decepcionante irmã.

— A culpa é sua! — gritava o pai. — Imagine o prejuízo! Esses objetos são de ouro e prata, Nadi!

— Parece que não quebrou nada. — Ela constatou, pensativa. — Só foram tirados do lugar.

— O que pensou? Que ela era uma manifestação divina? Sua necessidade e auto-aprovação é tão grande assim? — os servos começavam a arrumar tudo, limpar e checar que nada faltava. — Nem todas as pessoas são especiais, você não é! Aceite isso

Nadi levou a mão ao peito, respirando pesadamente. Envergonhada.

— Isso não termina aqui, vou pensar em um castigo adequado. Tenho trabalho a fazer para o cortejo, e você também. — Tomou uma das taças de prata da mão de um empregado, atirando-a contra a parede com toda a força. Assustado, o homem correu, Nadi recuou apertando os olhos. — Reze para que nada de valor tenha sido danificado, ou o castigo será mil vezes pior.

Um dos compartimentos da casa servia como altar para adoração aos deuses, com duas estátuas coloridas da altura de homens, a de Osíris — um dos deuses mais importantes de quem suas irmãs eram esposas, conforme o sacerdócio — e a outra de Thóth, seu marido. Todos os dias os sacrifícios lá eram postos. Se estivessem chorando ou escondendo algo, era um bom lugar, porque seu pai não entrava lá; considerava um espaço sagrado e puro, símbolo do matrimônio das filhas.

Olhou para a grande imagem de Osíris, com seus olhos pretos grandes e dois cetros na mão. Chateava-se pelo sumo-sacerdote não a ter entregado a ele, e sim ao outro deus. Imediatamente fez uma profunda referência, se ajoelhando e rezando para Thóth.

— Ilustre pai da sabedoria, porque deixaste que me enganasse quanto a criança do sol? — Lágrimas quentes desceram por seu rosto, e ela prostrou-se ainda mais, erguendo as mãos. — Sou uma desonra aos olhos de meu pai, não quero desapontar o senhor. Perdoe meu erro, me ajuda a recuperar o respeito da minha família.

No pedestal de bronze, aos pés da estátua de Thóth, encontrava-se o retângulo negro, o celular. Foi lá, escondida, que Tafnis remexeu e brincou com ele. Quando o viu, Nadi recuperou o brilho, forças e esperança. Entendeu que Thóth o colocara ali por sua vontade, para ela achar. Quando o segurou entre os dedos, a tela desligada não deu sinal, não brilhou.

— A criança procurava o objeto mágico, por isso tudo revirou. A única pessoa que pode ter roubado é Tafnis, a travessa e curiosa Tafnis que implicou com ela assim que a viu. Agora, o senhor o devolve. Devo restituí-lo à dona, meu senhor? — Fitou a estátua. — Sim, o senhor não teria trago-o para cá, não fosse este o propósito. A criança do sol precisa dele! É o cetro dela!

Beijos foram jogados ao ar, em sinal de gratidão. Não importava onde Judy estivesse, Nadi iria encontrá-la e entregar o celular. Mesmo que a mensageira divina não mais a ajudasse, lhe devia isso em sinal de respeito.

Quando saiu da casa, deu uma boa olhada em Tafnis se banhando na piscina, e não pode deixar de repreendê-la.

— Você roubou o cetro da mensageira? — acusou-a. — Diga a verdade!

— Não roubei, apenas dei uma olhadinha. Por sinal, não vale nada — desdenhou a mocinha, mergulhando em seguida.

— Não funciona em mãos sujas e mortais.—– A risada de escárnio de Tafnis acentuou a mágoa e raiva pela irmã. Se não fosse seu porte e educação de sacerdotisa, lhe daria uma lição. — Thóth me devolveu ele, acho melhor começar a pedir perdão aos deuses.

— Mentira! Thóth nem gosta de você, sua... — Nadi já estava longe para ouvir os xingamentos da irmã, as mãos cobrindo as orelhas. De repente, a água pareceu fria demais para Tafnis. Não queria um deus decepcionado consigo, não queria receber um castigo.

Antes de sair, Nadi perguntou ao guarda porque ele, de cima de seu posto de observação, apontava a flecha para a rua. Ele não respondeu sua pergunta, e ela viu com seus próprios olhos sua mensageira divina como uma louca desvairada, beijando os sapatos, um grupo de rapazes egípcios debochando da cena bem ao lado. Rapidamente, pousou sua mão na cabeça da garota, enfiando o celular em suas mãos.

Uma risada grotesca e melancólica ecoou pela rua, um grito histérico e maluco de Judy ao reencontrar o smartphone, puxada novamente ao mundo real. Consciente que, em algum ponto, 2018 existia. O guarda se desestabilizou por alguns segundos e mirou perigosamente na cabeça da sacerdotisa. Recolheu sua flecha pela segunda vez, não a ergueria mais.

— Me perdoe, sei que não posso consertar as coisas. Deixe-me levá-la ao lugar em que a encontrei, onde estão seus guardiões, no templo.

Apanhando a mão de Judy, as duas iniciaram o caminho. A garota encarava o aparelho, alegre, tremendo, seu corpo sofria as consequências do choque térmico e sua mente dos fatos loucos. Tudo era intenso e perturbador demais para uma criança.

As informações foram clareando, repetiu incessantemente o nome da mãe, baixinho, depois tentou outros parentes, primos e amigos. Aqueles nomes eram reais, as pessoas existiam — ou existiriam —, conseguiu manter a lucidez. Nadi soltou sua mão na frente do templo em que pousou primeiro, logo que fez a viagem.

— Obrigada, e perdão.

O movimento do lugar era tão grande que logo Judy a perdeu de vista, as pessoas preparavam a região para a passagem do faraó Sefrés. As barracas dos comerciantes foram retiradas, e as casas por perto decoradas com flores nas janelas. A atenção voltava-se para o templo, com sacerdotes entrando e saindo, gritando ordens. Ao lado, as sacerdotisas ensaiavam uma dança majestosa.

Judy sentou-se nas escadas, foi expulsa com empurrões, ligou o celular e checou a bateria em 10%, desligando-o logo em seguida. Por culpa de Tafnis, a película estava desgrudando, então a arrancou. Após algumas lágrimas, suspiros e tremedeiras, resolveu testar a teoria de Ava e bater uma selfie. Era engraçado, pensou, como naquele ponto já não queria bater fotos, gravar áudios ou recolher provas para os seus pais. Pouco importava se acreditariam ou não, ela só queria voltar.

Ava, que não saiu das localidades, na esperança de reencontrar a viajante, foi identificada pelas mechas azuis. O coração de Judy pulou de alegria e ela correu para abraçar a garota, esquecendo que a culpava por tudo que aconteceu na casa de Nadi.

Ava sobressaltou-se, mas recebeu o gesto com euforia.

— Você está bem!? Oh Judy, eu tentei várias vezes... Infelizmente a resposta não estava na mulher que te levou, ela é insignificante no tempo. A câmera não funcionou.

— Você não sabe o que passei! — Foram para um lugar mais afastado, ao lado templo, próximas a uma das estátuas esculpidas em pedra do deus Osíris. Judy contou tudo.

— No final era só uma família comum, não devia ter te mandado. Me perdoe.

— Emma e Oliver também eram comuns! Consegui cumprir o paradoxo me envolvendo com eles, não? — Desconhecia e desconheceria para sempre sua participação na revolução. Nunca nem ao menos suspeitaria que a chave para a questão fora Alain Gaubert.

— Já ouviu falar no efeito borboleta? — perguntou Ava, cruzando os braços.

— Acho que não.

— É uma metáfora, diz que o bater de asas de um pequeno inseto pode desencadear um furacão do outro lado do mundo. Tipo, uma ação insignificante aqui pode ter consequências sérias no futuro, é assim que paradoxos temporais funcionam.

— Então eu fiz alguma coisa na França e na idade da pedra que provocou um efeito borboleta. — Raciocinou.

— Exatamente!

Judy apertou o smartphone contra o peito, assombrada, era como se dezenas de borboletas voassem ao seu redor, batendo suas asas perigosamente, profetizando vários tufões ao redor do mundo. Ela e seu celular, que era uma dessas borboletas destrutivas, estavam presas dentro de uma ampulheta macabra, onde os grãos da areia temporal caíam um por um, prestes a enterrá-los.

Ava depositou tapinhas encorajadores em suas costas.

— Notou a movimentação enérgica? As mulheres ensaiando dança, as rosas enfeitando... Acho que vai acontecer algum evento.

— Isso é bom?

— Talvez o paradoxo vá se concretizar nesse evento! Não seria coincidência termos pousado justo dentro desse templo?

— Não sei, da primeira vez pousei em um palácio, mas encontrei Oliver bem longe de lá, só corri perigo à toa.

— Prefiro crer que tudo já está predestinado, cada ação conta.

As duas deram de ombros e concordaram em esperar, ver o que acontecia. Judy passava o smartphone de uma mão para outra, contando suas aventuras na França e tudo que sentia para a mais velha. Nadi, em sua casa, preparava-se com camadas e mais camadas de maquiagem para o cortejo.

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