Capítulo 16
— Não sei por onde começar as perguntas. — As duas garotas sentaram-se lado a lado, retiraram os tênis, enfiando os pés calejados na água. As pirâmides, a cidade e todo o plano de fundo admiravam Judy, embora Ava já não desse muita importância a esses elementos novos que surgiam a cada viagem. — Então você também tem uma prova de história?
— História da arte, mais especificamente. Sou universitária, mas gosto de estudar o século XX, os grandes conflitos.
— Ficou de recuperação em história da arte?
— Minha única chance de não repetir a disciplina é acertar 80% da prova final. — Ava concluiu, respirando fundo. — Sério, por que estamos falando sobre isso quando viajamos no tempo para o Egito antigo? Temos mais com o que nos preocupar, dana-se as provas.
Judy gargalhou tristemente, pelo menos agora podia atribuir com toda certeza as viagens ao teste escolar que ia prestar.
— Faz ideia do porquê disto estar acontecendo?
— Não, mas formulei teorias. A primeira é que vamos viajar por todas as épocas sobre as quais precisamos estudar, e depois voltaremos para casa. Também percebi que as viagens ocorrem quando... Bem, quando usamos a câmera frontal para tirar uma selfie.
Judy recordou-se com clareza da selfie que bateu perto do lago, na caverna e por último no quarto com Oliver. Fazia todo o sentido. Suas mãos voaram até o smartphone, o coração disparado.
— O que esperamos? Vamos logo tirar essas fotos até voltar!
— Não é assim que funciona. Já tentei. Venho correndo há bastante tempo. Passei pelas civilizações Maia, Asteca e Indígena. Depois do Egito tenho uma parada em Roma. Só que não adianta simplesmente bater a selfie, precisamos... Cumprir alguma missão.
— Que tipo de missão? Eu fiz algumas coisas na França, fiz um amigo e...
— Não sei, Judy. Estou cansada. Na verdade, nem tenho certeza se vamos conseguir voltar ao futuro depois de tudo. É só uma teoria. — Levou sua mão á bochecha, limpando uma lágrima solitária. Era compreensível que depois de tudo a esperança tivesse abandonado seu coração.
— Bom, se isso tudo é por causa de um teste, preferia ser reprovada.
— Não é, está interligado, mas não é. Acho que são paradoxos, estamos de alguma forma cumprindo a história.
O silêncio pesou entre as duas, ambas amedrontadas, as ondinhas do rio eram a única coisa que lhes chamava atenção. As emoções de Ava adormeciam, uma espécie de indiferença engolia aos poucos o desespero. Já Judy, alegrava-se com as suposições que a garota fez, sua mente trabalhava de maneira engenhosa, desejando encontrar maneiras de retornar ao seu lar. Ao mesmo tempo, a saudade e a constatação de que nunca mais veria Oliver apertavam-lhe o peito.
— Vamos — ela chamou, desligando o celular, a bateria mais indispensável do que nunca. — Já que temos que cumprir alguma missão para conseguir viajar, não podemos ficar paradas. — Pegou os tênis vermelhos e amarrou os cadarços. Desanimada, Ava a imitou. — Como é 2024? Eu sou de 2018.
— O mundo acaba em 2020.
Judy mal havia ficado de pé e precisou sentar novamente. Encarou a mulher de cabelos azuis com uma expressão indecifrável.
— O mundo acaba em 2020?
— Não o mundo inteiro, só o mundo de algumas pessoas.
— Me explica isso direito, Ava.
Em meio a tantos desgostos, Ava ignorou o fato de que Judy era uma pequena menina. Para ela, só importou encontrar uma viajante, uma colega para discutir e compartilhar suas angústias. No mesmo segundo, se arrependeu por ter dito tais palavras declaratórias. Deixaria a garota preocupada, apavorada. Tentou consertar o erro, para que a criança, já tão envolvida com o passado, não precisasse se lastimar pelo também por seu futuro.
— O que acontece em 2020, Ava?
— Nada, eu só estava brincando.
— É mentira! — Após os perigos que passou na França, incluindo o temor por perder Oliver e Emma na queda da bastilha, Judy já não tinha o mesmo temperamento infantil de quando viajou. — Um apocalipse nuclear ou o aquecimento global? Como o mundo acaba em 2020?
— Judy, não posso falar. Contar sobre o futuro é perigoso. Veja, eu sou de 2024. Se o mundo tivesse acabado em 2020, então eu não poderia estar aqui!
— E como sobreviveu?
— Quando a hora chegar, você vai saber.
Retirou o celular do bolso da jaqueta, ele era parecido com o de Judy, um pouco maior, no geral, nada tão futurístico que a criança não conseguisse entender. Abriu a câmera frontal e bateu uma foto do rosto, nada aconteceu.
— Viu? Temos que cumprir alguma missão... Fazer algo considerável no Egito para que a próxima viagem seja liberada.
— Quando cheguei na França, fui acolhida por um rapaz... O nome dele é Oliver LeBlanc. Eu o deixei sabendo que a revolução vai continuar, tudo vai piorar muito antes de uma melhora palpável. A hospedaria que ele administra com seus amigos está à beira da falência.
— Onde quer chegar?
Um grupo de mulheres egípcias se aproximou da margem do rio, carregando cestas gigantes de roupas para lavar. Espiaram as forasteiras, fofocando entre si sobre as roupas peculiares, os possíveis piolhos e doenças. As meninas se afastaram com vergonha, e Ava decidiu que iria até o comércio local roubar comida e esperar. Um paradoxo temporal funciona assim, não importa qual decisão você tome, ele será cumprido de um jeito ou de outro. Pode ficar parada, pode tentar fugir do paradoxo, mas até esses próprios atos levam a sua realização. Estava presa a isso. Era mais fácil, levando tudo em conta, somente esperar e focar na sobrevivência do que chamar atenção com estardalhaços. O tempo cuidaria de tudo, a história aconteceria como sempre aconteceu. Ela e Judy eram apenas duas peças insignificantes do círculo vicioso.
— É doloroso ter de lidar com a possibilidade de que Oliver e Emma não vão sobreviver à revolução francesa. Agora, também não sei se minha família vai sobreviver a 2020.
— A vida é assim. — Ava segurou sua mão para prosseguirem no caminho sem que a criança demonstrasse resistência. Ela cuidaria de Judy o tanto quanto fosse possível. — Um dia existimos, no seguinte não. Estamos sujeitos a interferência dos outros, e nos resta tentar resistir. O que temos depois da revolução francesa, em?
— Os camponeses ganham!
— Por quanto tempo?
As pessoas iam para as janelas de suas pequenas casas de parede arenosa. As duas andavam pelas ruas recebendo olhares de nojo dos homens de chapéu esquisito, com tecidos listrados caindo até os ombros e túnica branca. Na ausência de uma resposta, Ava continuou seu discurso. Discurso destrutivo, pois estudantes universitários de história não acreditam em discursos motivacionais.
— Depois da revolução, a França passará por um período próspero chamado Belle époque, aí vem a primeira guerra mundial e a segunda. O que estou tentando dizer, é que não importa a época, a humanidade sempre vai passar por perrengues e riscos, e se formos ficar com medo de cada batalha que nossa raça enfrenta, morreremos antes de tentar.
— O pior de tudo é que a própria humanidade é responsável por essas batalhas.
— Tudo vai ficar bem, até a próxima crise global.
Esse pequeno diálogo fez as duas se entenderem, Ava não falaria meia palavra sobre 2020 para Judy. Apenas garantiu que este problema seria superado, assim como tantos outros, e não caberia a elas impedir ou fugir. Judy assentiu, compreendendo o silêncio da companheira. Um peso ficou guardado em seu peito, mas seu sonho de retornar para os pais recuperou as forças, encobrindo a saudade pela recente perda de Oliver e o choque por ter visto as pirâmides de Gizé ao vivo.
A região do comércio estava menos movimentada, voltaram para o mesmo local do templo, aberto para adorações e sacrifícios. Judy se admirou por suas grandes colunas, enquanto Ava se atentou à barraca mais próxima. Era uma estrutura grandiosa, feita de tijolos cor de areia, cheia de desenhos e figuras que retratavam Deuses com corpos de homem e cabeça de animais. Os muros laterais do templo eram embutidos de estátuas em memória dos antigos faraós, uma beleza de se ver.
Ava conseguiu somente algumas sementes pequenas e inúteis, jamais passaria despercebida no Egito com saia rosa e cabelo azul. Retirou a jaqueta, não suportando o calor. A pobre coitada estava suja, cansada e com um ferimento no braço, cortesia dos astecas. Não teve sorte como Judy, que encontrou o bondoso e generoso Oliver pelo caminho.
— Desculpe, acho que você devia se esgueirar por lá. Seu tamanho permite que se esconda e corra com agilidade.
— Não acredito que reprovou em história da arte, veja como essas estátuas são magníficas.
— Você também reprovou.
— Não em história da arte, em história.
— Que grande diferença!
As suas sentaram-se em um dos degraus da escada do templo, Judy cansada de falar, Ava decidida a não fazer absolutamente nada até o maldito paradoxo se cumprir.
— Os egípcios acreditavam em diversos deuses, este templo é um dentre vários.
Judy ficou de pé para procurar algo a mais que a interessasse, o palácio, talvez, não seria mal conhecer Cleópatra, todavia, não era a época dela que visitavam.
— O palácio do faraó, onde está?
— Esse lugar é enorme, menina. Não estou nada disposta a procurar somente para satisfazer sua curiosidade...
Akibet, a gata protetora de Nadi, saiu de dentro do grande templo lambendo suas patinhas. Seus grandes e misteriosos olhos verdes fitaram as garotas sentadas na escada, dessa vez acomodou-se no colo de Ava.
— Vejam só!
— Acho que ela gostou da gente — Judy suspirou, passando sua mão nos pelos brilhantes e bem cuidados da gata.
— Bastet, Deusa com cabeça de gato. Senhora da fertilidade, da música e do amor — Ava sorriu. — Estudei um pouquinho, só não consegui decorar tudo.
Como não pretendia perguntar sobre 2020, Judy quis tirar proveito dos conhecimentos de Ava sobre o Egito e a França. Queria saber quais próximos passos os revolucionários dariam e por quais desgraças Oliver iria passar. Nadi, que sentia arrepios de medo a cada vez que Akibet sumia, segurou a saia de seu vestido branco e correu pelas escadas até a frente das duas garotas.
— Vocês outra vez! — Para não gerar confusões, Ava tentou tirar Akibet de cima de si, mas as unhas da gata agarravam sua saia. — Eu deveria denunciá-las por invasão ao sagrado templo!
— Ava, a bateria do meu celular está fraca. Pode me emprestar o seu para fazer uma coisa?
A sacerdotisa ergueu as sobrancelhas, nunca ouvira idioma tão melodioso e estranho sair da boca de qualquer estrangeiro.
— O que vai fazer? — Ava perguntou ao desbloquear a tela e entregar o aparelho a criança.
— Uma pequena vigarice que sempre funciona. — Ela ligou a lanterna. Imaginou que, como Emma na França, Nadi ficaria assustadíssima.
Ava achou interessante e divertida a boa ideia de Judy, porém, a reação foi a mais inesperada e surpreendente.
— Oh, poderoso Amon-rá que destes o sol para tão desprezível criatura mundana — exclamou a sacerdotisa, um sorriso emocionado formou-se em seu rosto, lágrimas de genuína alegria borrariam sua maquiagem em breve. — Akibet, entendo agora perfeitamente o motivo de sua paixão.
Então, com uma profunda reverência, ela se ajoelhou na frente das duas, que se entreolharam ansiosas pelo próximo ato. Teria sido interessante entender as palavras de Nadi.
— Mulher que segura o sol e mulher com cabelos de céu. Presto a vós minhas profundas adorações. Protifico-me a buscar sacrifícios e oferendas as senhoras. Permitam-me, eu vos imploro, não sou digna de tal honra.
Judy desligou a lanterna e Nadi ficou de pé reverenciando outras mil vezes. Retirou os braceletes de ouro dos braços, jogando sobre as duas como sua primeira oferenda.
— Não sou digna! Não sou digna! — saiu correndo de volta ao templo para chamar o sumo-sacerdote.
— O que faremos agora? — Judy perguntou.
— Você é inteligente, ela agora deve acreditar que somos deusas. Fique aqui e veja o que acontece, vou trocar uma dessas joias por alimento.
— Estou faminta.
Recebendo seu celular de volta, Ava separou-se de Judy, enquanto, no interior do templo, Nadi se debulhava em lágrimas, explicando aos superiores que haviam duas mensageiras divinas entre eles.
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