Capítulo 14
Conforme o tempo passava, o desespero tomava conta de Judy pela incapacidade de levantar-se. Ainda com a cabeça posta sobre o colo da menina, Emma chorava silenciosamente. Cada soluço contido lhe provocava uma imensa dor. O caos na bastilha ainda prosseguia, apesar da certeza de que os revolucionários levaram a melhor na empreitada.
Impaciente, Judy desculpou-se com a garota. Embora ela não entendesse seu idioma, o olhar das duas se cruzaram e Emma soube que não seria abandonada, que a menina ia buscar ajuda. Não se atreveria a entrar na multidão novamente, então rumou para o Lune Rouge, para onde talvez Oliver voltara. Caso contrário, o amigo talvez estivesse morto ou ainda procurando inutilmente por Emma.
Ela quase se perdeu, aconteceu muita coisa, mas estava a somente há poucos dias na França e não sabia o caminho bem. Usava pequenos pontos de referência para prosseguir, e quando se situou um pouco entre as casas e bugigangas quebradas no meio da rua, sentiu-se ser levantada do chão por alguém e logo estava no abraço de um Oliver apavorado. Sua mão esquerda segurava o smartphone, a direita deu tapinhas nas costas do amigo até ele se acalmar.
— O que aconteceu?
— Não adianta! — O rosto vermelho e inchado de Oliver indicava que ele nem sequer tinha mais lágrimas para derramar, contudo, seu corpo não exibia machucados. — Procurei Emma por todos os lugares, tem muita gente. Vi pessoas... Pessoas machucadas, sangrando.
— E o Gaubert?
Judy sentiu um calafrio, a noite em breve desceria. Com tanta confusão perdera a noção do tempo, o sorriso em seu rosto doía em um alívio e felicidade enormes por ver Oliver ali. Por alguns segundos, deixou-se tomar pela ilusão de que nunca mais iria se separar dele.
— Vivo. — A voz de Oliver ficou mais ríspida ao citar o velho. — Pavard estava com ele o tempo todo. Mas isso não importa... Quem desapareceu...
— Oliver, a Emma está comigo! — divertiu-se com a expressão de confusão maravilhada que surgia no rosto do garoto. — Sei onde ela está. Depois de nos separarmos, eu a achei e a tirei do meio da bagunça.
Dito isso, ela segurou a mão do jovem e o conduziu pelo caminho da volta, quase se perdendo outra vez. As gargalhadas de Oliver viajavam entre a alegria e o histerismo. Seus sapatos derraparam pela calçada de uma das residências quando viu de longe a loira no chão.
— Emma!
Judy permitiu que ele amparasse a amiga e observou o reencontro com certa distância, respeitando o momento. Ela sabia que Oliver amava Emma, e Emma amava o pequeno Oliver. Não era esse tipo de amor romântico e avassalador, embora toda aquela história rendesse uma série de época que sua mãe gostaria de ver. Era um amor que envolvia cuidado, proteção. Talvez o mesmo amor que ela começava a sentir por Oliver.
Após esses instantes, ela chegou perto dos dois, ignorando a visão das ruínas da bastilha e do terror mais a frente. Eles sorriam, certamente haviam se entendido. Sabiam de tudo e que todos estavam bem.
— Ela está te agradecendo, Judy. Disse que não sabe qual bruxaria você fez para trazê-la até aqui, mas que talvez você seja uma bruxa boa.
— Diga a ela que não vou revelar minha magia.
A mão pálida e arranhada de Emma tocou a de Judy, agora ela tinha uma nova amiga. E se por acaso ficasse na França para sempre, uma família e um lar.
— Ela não pode andar. Pedirei ajuda para levá-la à hospedaria.
Oliver e Judy seguraram os braços de Emma com firmeza, e com cuidado ela conseguiu sentar-se. Como muitas pessoas passavam por aquele caminho, satisfeitos com sua parte cumprida no serviço, não foi difícil de se compadecerem com a situação, e logo um senhor gentil pegou Emma do chão para ajudar. Ela apoiou seus braços nas costas dele e de Oliver, e os quatro seguiram para casa
Judy só conseguiu pensar em como teria sido fácil pedir socorro quando a encontrou primeiro, mas não sabia falar francês e seu treco de roubar voz assustaria qualquer um. Ameaçar roubar uma alma e controlar um cara com a câmera e google tradutor foi uma experiência bem estranha e daria uma ótima redação.
— Emma contou que foi pisoteada e empurrada pelas pessoas, estavam todos loucos.
— Você chegou a entrar na bastilha?
— Nunca. Nem cheguei perto. Felizmente, encontrei um camarada que avisou sobre Gaubert e Pavard. Voltei ao Lune Rouge e os encontrei lá, foi quando te vi.
Judy contou sua versão, Emma e o senhor que percorriam o caminho com eles estavam guardados pela benção de não compreenderem o idioma, portanto não teriam pesadelos a noite com o absurdo do roubo de almas. Oliver, porém, não fez perguntas ou interrompeu Judy em nenhum momento para sua total felicidade.
A caminhada foi longa, Oliver suava, cansado, seus olhos pretos espiavam o rosto das duas amigas, sem se importar consigo. Passaram por coisas piores, os três. No tempo certo, chegaram à hospedaria. Furioso com Gaubert, pois absolutamente tudo era sua culpa, Oliver ordenou com um grito que trouxesse um dos colchões das camas para deitar sua neta, o que ele fez sem contestar. O menino pegou uma bolsa de couro bem guardada em um dos armários, de onde tirou duas moedas para recompensar o senhor que ajudou com Emma.
Logo, a porta estava trancada, Emma deitada sobre o colchão suspirava forte e Gaubert se debruçava sobre o corpo da amada neta pedindo perdão, mas sem dar o braço a torcer. Um soldado jamais se entregava.
— Pois foi sua culpa, menina! Não mandei me seguir.
— O senhor tem oitenta e cinco anos!
Enquanto discutiam, Oliver pegou um pouco de água para todos na cozinha. Precisavam se acalmar. Pensar.
— Vamos morrer — disse a Judy, apertando sua mão. — A hospedaria já ia mal, temos duas crianças que dormem aqui, fora eu e você. Duvido que o povo tenha dinheiro para gastar nesta espelunca no meio da crise descomunal! — O pensamento de Oliver era mais rápido que sua voz, ele gaguejava e engolia diversas sílabas. — Preciso me oferecer para qualquer tipo de trabalho ou morreremos de fome; somos eu, você, Emma, Gaubert, Bonnel e August. A não ser que um dos meninos tenha morrido e...
— Oliver! — Judy berrou, capturando sua atenção. Estavam sentados em uma das mesas. — Você tem razão, infelizmente não sei as datas, mas sei que a revolução vai se arrastar por anos até a situação realmente melhorar. Mas... Não precisa torcer para um dos meninos sumir. Eu vou embora.
— Não vai mesmo! Você é da nossa família agora, vamos conseguir dinheiro.
— Não é isso. — Ela nunca imaginou, nem por um segundo, que seria difícil deixar o passado para trás e retornar a sua época, mas agora a possibilidade de se separar de Oliver era dolorosa. — Sinto falta dos meus pais, do futuro... Sinto falta da internet. Amo meus pais, amo a internet. Mais cedo ou mais tarde voltarei para 2018.
— Cuidaremos de você até lá, Judy. Você é nossa garota do futuro. Nosso pequeno milagre.
Os dois trocaram sorrisos, sorrisos tristes ante a possibilidade de separação. Um egoísmo e ciúmes cresceram no coração de Oliver, ele não queria que ela fosse embora. Não estava disposto a dividir Judy com essa tal de internet que ela dizia amar.
— Olha, vai ter um cara na França chamado Napoleão Bonaparte, ele é importante.
— Quando?
Os neurônios de Judy não precisaram se esforçar para lembrar algo. Gaubert ergueu-se, as pernas firmes e a voz estridente para um senhor da sua idade. Um homem que mudou a história da França, um soldado. Olhou diretamente para Oliver e cuspiu suas ordens.
— Primeiro, certifique-se de que não há hóspedes indesejados. Depois chame a mademoiselle Sandrine para ver minha neta. É uma boa e linda enfermeira. Sua amiga folgada varre o salão e só abrimos as portas se um dos meninos chegar. Entendeu?
— Sim, senhor Gaubert.
Após seguir todas as ordens do homem, Oliver foi até a casa de Sandrine, uma enfermeira viúva que criava os porcos da rua. Ele estava exausto, exaurido. E ainda por cima o coração pesava no peito ao pensar em perder Judy. Antes do que aconteceu naquele dia e da forma que trabalharam juntos, seria um alívio e libertação que ela simplesmente sumisse direto para sua época, livrando-o de toda a responsabilidade. Agora era um pesadelo. Era interessante, até engraçado, como o destino unia pessoas completamente diferentes, amarrando-as de tal forma que as mesmas jamais iriam querer soltar-se. Ele não a culpava em querer voltar aos pais e à internet. A sorte, ou destino, poderia girar em seu favor e permitir que ficassem juntos por mais uma semana, um ano, ou uma vida.
A robusta madame Sandrine com seus cabelos grisalhos encaracolados entrou pela porta do Lune Rouge com uma caixa grande nas mãos, onde guardava alguns de seus instrumentos de trabalho. Não atuava mais como enfermeira formalmente, mas nunca perdeu o ofício. Judy varria os cacos de vidro de garrafas quebradas quando a mulher, recebendo mil cortesias de Gaubert, ajoelhou-se para tratar Emma.
— Por favor, traduza para mim. — Judy pediu para Oliver.
Esparadrapos, álcool, lenços, água. Os gemidos e sussurros de Emma contaram tudo à senhorita, que chegou a uma conclusão satisfatória.
— Vai ficar bem, levou umas pisadas, nada que mate. Já vi piores em batalhas. — Gaubert inflou o peito, orgulhoso. — Tenho contatos com médicos caridosos que podem cuidar de você em troca de rezas e gratidão.
— Abençoada seja! — Gaubert agradeceu, beijando sua mão.
Com o coração tranquilo, todos se prepararam para descansar. Mas as surpresas não acabaram. Já havia escurecido completamente quando Bonnel e August chegaram e foram apresentados a Judy pela primeira vez. Eram os dois outros meninos para quem Emma oferecia abrigo. Da idade de Oliver, eles ficaram felizes em conhecer a nova companheira, embora a incomunicabilidade. Os bolsos vieram abarrotados de moedas, se foram roubadas, ninguém sabia ou perguntou. Emma fez uma oração pelos pobres que as haviam perdido, pois era improvável que tivessem conseguido trabalho naquele dia tão atípico.
Todos foram para seus devidos quartos após abraços e beijos na bochecha. Em sua cama, Judy checou a bateria do celular. 17%. Gaubert gastou muita mostrando as fotos da bastilha, e mesmo tendo tido sabedoria em não mantê-lo ligado o tempo todo, Judy o usou várias vezes. Apesar do nó na garganta, ela sabia que agora ele não era seu único companheiro no passado longínquo.
A França mudara, o mundo mudara naquele dia. O povo tomou a bastilha, alguns morreram, outros comemoravam e bebiam naquela mesma hora. A rainha que Judy Henderson chamara de mãe, entrava em desespero. Em um sono inquieto a família do Lune Rouge descansava.
Por pouco tempo.
Era madrugada quando Oliver adentrou o quarto de Judy, ela teve um sonho ruim em que, na escola, sua professora escrevia um 0 no teste de história. Ao acordar, lhe ocorreu que após participar da grande revolução e visitar os homens das cavernas, saberia responder questões sobre isso.
Foi quando a grande ficha caiu como um meteoro queimando na atmosfera terrestre.
— Burra! Burra e Ignorante!
— Judy? — Oliver chamou, tateando pela escuridão até encontrar seu ombro. — O que aconteceu?
— Oliver, sou a criatura mais burra e desatenta que já existiu na terra, em todas as épocas.
— Um pouco. Mas porque diz isso?
— Já sei para qual época vou viajar da próxima vez, e não é para a segunda guerra mundial.
Ele apenas assentiu, o breu no quarto não a permitiu enxergar. Sentiu o colchão afundar quando o amigo sentou ao seu lado.
— Lembra que eu falei que tenho uma prova de história em 2018?
— Sim, mas ainda falta muito para isso acontecer... Tipo uns 200 anos, eu não me preocuparia agora. — Ele não queria tocar no assunto.
— Esse é o mistério. O segredo está aí. Durante o ano escolar, minhas piores médias foram nos testes da idade da pedra, revolução francesa e Egito Antigo, respectivamente. Por isso minha prova final aborda os três assuntos.
— Onde quer chegar?
— Se primeiro eu fui para a idade da pedra e estou na revolução agora, então minha próxima parada é o Egito! Não sei porque isso está acontecendo, mas a ordem faz todo o sentido!
— Não sabemos se você vai mesmo viajar — argumentou, triste.
— Eu tenho certeza. Das últimas vezes foi tão de repente... Pode acontecer tipo, agora.
— Agora?
Os dois, sentados na cama, se abraçaram forte, como uma despedida, sem que soubessem que era a última vez. Judy e Oliver se amariam para sempre, mesmo que dois séculos os separassem. Nunca, nem mesmo por um dia, esqueceriam-se um do outro. O destino podia, enfim, reunir duas pessoas muito diferentes, mas talvez o tempo não permitisse que elas ficassem juntas.
— Posso roubar sua alma? Bater uma foto, quer dizer!
— Está bem! — ele gargalhou, sentiu uma ardência nos olhos quando o flash da câmera disparou pelo quarto iluminando o ambiente como um relâmpago. — Nossa, isso é torturante.
— Vou bater uma minha, e depois uma selfie de nós dois. Não quero esquecer esse momento.
E lá estava o mistério, a grande incógnita que Judy ia descobrir. Havia uma coisa presente em todas as suas viagens que ela não percebia. Um elemento básico que se repetia. A câmera frontal. A tela se iluminou novamente, e ela enquadrou seu rosto fazendo uma careta engraçada. A bateria caiu para 16%. Quando seu polegar clicou na bola vermelha para tirar a selfie, aconteceu.
A velha sensação de ter seus pés puxados para baixo, para o nada. Engolida pela terra, o corpo descendo por um tobogã. Ela não gritou, somente foi. Sumiu. Em um momento estava lá, no outro não.
— Judy!? — Oliver gritou.
Muito tempo ia se passar até que entendesse que Judy cumpriu sua missão na França. Graças às fotos, seu celular auxiliou Gaubert e os revolucionários a espalhar o boato da pólvora guardada na bastilha. Com sua lanterna, ela salvou Oliver do hóspede bêbado. Com a câmera e o Google tradutor, retirou Emma do meio da multidão antes que se machucasse mais.
Essas coisas precisavam acontecer de acordo com a história, mesmo não sendo registradas, elas aconteceram. Sendo assim, Judy já podia partir rumo ao próximo paradoxo.
Para Oliver, não foi um ciclo cumprido. Foi a perda de alguém importante.
Não seria agora, não antes de Maria Antonieta ser guilhotinada e Napoleão assumir o poder. Mas Oliver LeBlanc, já adulto, entenderia tudo. A garota do futuro existiria em sua memória, nas histórias contadas aos filhos e no seu coração.
— Judy!
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