Capítulo 12

O dia foi cansativo e movimentado para todos no Lune Rouge e proximidades. As pessoas entravam e saíam, todos visualizando as fotos no celular de Judy, que permanecia sentada ao lado do velho Gaubert tremendo de medo todas as vezes que um camponês o segurava entre os dedos. Alguns se admiravam, mas a maioria aceitava uma explicação qualquer. Logo, a agitação foi tanta que Judy conseguiu arrancar o smartphone do meio dos homens e correr para seu quarto, fechando a porta. A bateria do celular estava agora em 40%, o que a fez desligá-lo contendo o choro. Oliver apareceu com um pedaço de pão amassado, recebendo um abraço da amiga.

— O que eles falavam tanto lá embaixo? — ela perguntou, enfiando a massa bolorenta na boca.

— Sobre revolução, o rei... Eu não sei, e nem ligo. Tenho outras coisas para me concentrar.

— Tipo o quê?

— A Emma! Ela está uma fera com os homens lá embaixo, acabaram todo o estoque de bebida. Até esqueceu de você no meio de tanta algazarra.

— Não entendo o que o Gaubert queria com meu celular.

— Nem eu, mas é melhor ficar trancada aqui. Se perguntarem eu digo que foi embora.

Aquela ação já tinha sido adiada por muito tempo, Judy não queria continuar a causar problemas para Oliver ou aborrecer Emma. Apesar do temor, ela soube que ir para longe era o correto.

— Amanhã, sem falta, dou o fora daqui. Prometo.

— Pedirei que o Pavard te leve para algum lugar, vou juntar mantimentos também.

A facilidade com a qual Oliver aceitou a magoou um pouco, obviamente, naquele ponto,  o menino realmente só queria livrar-se dela e voltar a vida normal. Já havia feito o que podia, e qualquer outra coisa encontrava-se fora do seu alcance.

— Sinto muito, sei que jurei ajudar — ele desviou o olhar dela e dirigiu-se para a porta. — Espero que consiga voltar para casa de alguma forma. Nos falamos amanhã.

— Obrigada.

Judy atirou-se sobre a cama, não ia mais chorar. Precisava urgentemente descobrir se existia algum evento chave que possibilitava as viagens no tempo, o temor por aparecer em algum canto pior não podiam apagar seu sonho de retornar para sua família.

Pela manhã, Judy foi arrancada da cama por uma Emma furiosa, pronta a lhe dar a maior surra da sua vida.

— Eu não quero mais você nesta casa, sua bruxa! Já não falei? Tudo que aconteceu ontem foi sua culpa, você enfeitiçou os homens para eles enlouquecerem! — As unhas dela fincaram-se no braço da menina, quase arrancando um pedaço de sua pele. — Vá embora! Suma ou te entrego para a igreja!

— Emma, o que está acontecendo? — Oliver e outro hóspede invadiram o quarto, afastando a moça de Judy, que se encolheu contra a parede sem reação.

— Tire-a daqui!

— Mas o que houve?

A mão de Emma bateu com um estalo no rosto de Oliver, deixando as marcas vermelhas na bochecha do menino. Judy gritou, agarrou seu celular e preparou-se para correr. Infelizmente, a porta estava bloqueada pelo hóspede sonolento e curioso que observava a cena.

Imediatamente após o tapa, Emma se arrependeu e baixou a guarda. Nunca, em toda sua vida, levantara a mão contra alguém, muito menos Oliver ou outro jovem que acolhia. O garoto conteve as lágrimas dificultosamente, não pela dor do ato em si, e sim pela decepção em ser agredido justo por quem mais confiava.

— Só a tire daqui — Emma reforçou, justificando da sua forma que todos os males eram culpa somente de Judy.

Sobressaltado, Oliver segurou a mão da criança assustada, pediu licença ao hóspede e seguiu com ela para a rua, descendo as escadas aos tropeços. Nenhum dos dois trocou uma só palavra, enterrados na culpa por terem decepcionado um ao outro. Mesmo no passado, as pessoas já sabiam que a pior coisa que se pode acontecer é perder a confiança em quem devia lhe proteger. Oliver perdeu a confiança de Emma, Judy perdeu a confiança de Oliver. Naquele 14 de julho, o povo da França perdeu a confiança em seu rei.

Enquanto andavam, foram percebendo aos poucos uma movimentação esquisita pelas ruas, mais ativas que o normal por aquela região. Camille Desmoulins discursava para todos sobre os absurdos do governo francês. Os boatos que circularam a partir do Lune Rouge, saídos da boca do velho Gaubert e sustentados pelas fotos do celular de Judy, implantavam uma ideia na cabeça da população parisiense. Os fatos foram pesados, e todos decidiram que precisavam imediatamente do máximo de armas possíveis para se defenderem de repressões e atacarem.

Logo, os dois foram engolidos por uma multidão que seguia na direção da bastilha, alguns já armados, resultado de outra empreitada.

O próprio Oliver parou, assustado.

— Tem alguma coisa muito errada.

— Sim! — Judy berrou para ser ouvida no meio de tantas vozes. — As pessoas estão armadas... A bastilha, Oliver, que dia é hoje?

O garoto a puxou para um canto de parede, o pavor tomou conta de sua mente ao lembrar-se dos avisos de Judy sobre a  revolução.

— Lembre que eu te falei que ia acontecer alguma coisa com a bastilha, mas eu não lembrava?

— Sim...

— Que dia é hoje?

— 14, eu acho... 14 de julho.

— É hoje, Oliver!

— O que vai acontecer? — a segurou pelos ombros, sacudindo-a violentamente. — Vamos, Judy!

— Acho que... Se eu não me engano... A professora contou que essas pessoas vão tomar a bastilha, tem uma pintura sobre isso no livro. A liberdade guiando o povo, a queda da bastilha foi o grande marco do início da revolução.

Vendo a expressão de raiva no rosto das pessoas ao seu redor, Oliver teve certeza de que aquilo era a mais pura verdade. Seu queixo caiu e teve que esfregar os olhos, enquanto Judy fez uma pequena dancinha em comemoração por ter se lembrado justo no momento em que mais precisou. Arrependeu-se de, naquela mesma aula, ter dito à sua professora que a informação era inútil e que estavam todos mortos, e, principalmente, que nunca ia usar história para nada em sua vida.

— Vamos! — os dois gritaram ao mesmo tempo, seguindo em direções opostas. Oliver seguia o caminhar da multidão, Judy fugia.

— O que está fazendo!?

— Não podemos ir, é perigoso — Judy argumentou. — Vamos nos esconder.

— Mas nós precisamos impedir, Judy! Vai ser um massacre!

Praticamente arrastada, Judy protestou sem sucesso. O celular deslizando entre seus dedos suados, prestes a cair e ser pisoteado pelas pessoas. Ela mordeu a mão de Oliver para conseguir fugir.

— Sua doida!

— Somos crianças, não podemos impedir.

— Podemos avisar aos outros.

— Avisar o quê? Eles sabem o que querem fazer! Isso é bom, eu acho. No futuro, a França será um país famoso e bonito, com uma torre... — Dizendo isso, ela olhou para os próprios sapatos, os tênis vermelhos da ladybug. — Paris vai ser conhecida como a cidade do amor, séries, filmes... Muita coisa legal vai ter esse cenário.

— Não sei o que são essas coisas e não ligo!

— Só estou dizendo que alterar o passado também pode alterar o futuro! Não sabemos se para melhor ou pior.

Quando o velho Gaubert tomou o smartphone de Judy Henderson nas mãos, ele analisou os arredores da bastilha, chamou seus amigos e levantou os boatos sobre a estrutura guardar pólvora e armas que poderiam ser usadas pela população em um possível combate. O nome de Alain Gaubert não constava em nenhum escrito como precursor do boato que levou o povo à bastilha, nem o de Judy Henderson por ter contribuído com suas fotos. Mesmo que o nome de Gaubert fosse mencionado em alguma página, ela não lembraria, como também não lembrava do exato motivo da bastilha ser tomada.

Judy estava escrevendo a história como ela era, não alterando.

— Lembra de mais alguma coisa? — Oliver pressionou. — Alguma vida que podemos salvar?

— Infelizmente não.

Os dois assentiram, dando meia volta para a hospedaria.

— Quanto tempo a revolução dura?

— Não faço ideia. Mas no final a rainha terá a cabeça cortada, só lembro disso, Então os camponeses vão vencer.

A intenção de Oliver era escondê-la até os ânimos se acalmarem e o assunto da revolução se resolver. Não poderia largar ela a própria sorte naquele momento, imaginava que todos os cantos do país estivessem em caos. Nem mesmo lembrou-se do ódio de Emma. Quando entrou no Lune Rouge assustou-se ao encontrar as mesas reviradas e garrafas quebradas sobre o balcão. Seu coração disparou, gritando pela amiga, imaginando mil situações horrorosas. Judy beijou a tela do celular e murmurou uma oração, apertando o botão de ligar.

O hóspede curioso era o único presente, deitado sobre uma das mesas com uma garrafa de vinho seca na mão, alheio a tudo.

— Onde ela está? — Sem resposta, Oliver puxou seu cabelo e o esbofeteou. — Rápido! Me diz onde ela está, o que aconteceu? Diz alguma coisa, seu idiota!

O homem alto e forte levantou-se, erguendo Oliver pelo colarinho da blusa sem o menor esforço, ele balançou as pernas tentando escapar.

— Quem pensa que é, seu imprestável?

— Emma! Emma! — Era tudo que o menino conseguia dizer enquanto a garganta era apertada pelo homem furioso.

Não foi sua real intenção agredir ninguém, mas, em meio ao desespero, faria qualquer coisa por uma informação. Todos com raiva, os nervos à flor da pele: Emma podia estar em perigo, morrer no meio da revolta. Embora duvidasse que ela fosse uma das pessoas que ansiava por revolução, nada era certo e garantido naquele 14 de julho. Emma Gaubert era uma das pessoas, e talvez a única, por quem Oliver morreria.

A voz lhe faltou, os pulmões doíam. Mais um menino morto na revolução, um anônimo. O bêbado zangado não sofreria consequências.

— Ei!

O olhar do homem furioso virou-se do rosto agoniado de Oliver para a menina que gritava, uma pequena criança de cabelos assanhados, sapatos vermelhos e vestido remendado. Uma menina que segurava uma estrela. Uma estrela brilhante e ofuscante em sua mão esquerda, erguida bem alta, acima da cabeça.

Magie!

O homem empalideceu com a visão e sobretudo com a palavra. Judy havia traduzido rapidamente e arriscado a pronúncia. Todo esse tempo tinha sido alvo do medo, esquivando-se das situações e pessoas, mas ela estava no século XVIII e tinha um celular, um objeto futurístico, poderoso, precisava se aproveitar disso. Oliver foi atirado no chão, engasgado, ele tossiu enquanto o homem corria rumo às escadas, tropeçando no primeiro degrau.

Enquanto o amigo se recompunha, Judy entrou novamente no aplicativo tradutor e clicou no microfone para a tradução automática e instantânea.

— Onde está Emma, a proprietária?  Responda ou sofrerá as consequências.

— Não sei! Não sei! Entraram aqui procurando armas para usar, depois ela disse que ia atrás do avô. — Gritando e já cruzando as mãos, ele respondeu, ao ouvir sua voz sendo traduzida e repetida para a língua e Judy começou a chorar.

— Parece que roubei a sua voz.

Essa parte, ela não traduziu, pois sentiu um pouco de pena. A expressão dele já mostrava que teria pesadelos pelo resto de seus dias. Desligou a lanterna, amparou Oliver ajudando-o se levantar e o levou para fora do estabelecimento.

— Emma foi atrás do avô!

— Claro! — Oliver deu um tapa na testa, sentindo-se burro por não ter pensado nisso primeiro. — O Gaubert com certeza iria querer se envolver nisso. Precisamos ir procurar ela, não sabem o que vai acontecer. É perigoso.

— Isso significa que...

— Nós dois precisamos ir até a bastilha.

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