Capítulo 09

Quando o dia amanheceu, Judy já havia recolhido suas roupas velhas, arrumando-se para sair. Foi idiota da sua parte tentar mostrar o smartphone a ele. Teria se dado melhor contando uma mentira, pelo menos não a odiariam tanto. Ela desocupou o quarto e desceu as escadas do Lune Rouge apressada, as lágrimas de tristeza e medo manchando seu rosto. Daria tudo para ganhar um abraço do pai naquele momento, seria especialmente bom que ele entrasse pela porta da hospedaria, a pegasse nos braços e levasse para casa, como na vez em que se perdeu na loja de brinquedos do shopping: ela simplesmente sentou-se no chão e aguardou o pai encontrá-la, e ele veio mesmo.

Além dos dois homens do dia passado, um velho de bengala e roupas amarrotadas estava sentado em uma das mesas. Quando viu Judy, ele enrolou a barbicha branca no indicador, analisando a criança.

— Essa é a menina que você falou, Emma? — perguntou para a sobrinha que saía de trás do balcão, enxugando as mãos no avental. — Bom, talvez possa ajudar na cozinha, se quiser ficar.

Judy paralisou, não saiu para a rua como pretendia, pois Emma trazia uma pequena maça verde como café da manhã, que recebeu imensamente agradecida, deixando a trouxa de roupas que carregava de lado.

— Sim, mas achamos que não vai ficar. — Emma justificou ao vovô Gaubert, que continuava a enrolar a barbicha. Não contaria a ela que suspeitavam que a menina fosse bruxa, ou seu comportamento explosivo o levaria a açoitá-la com a bengala na frente dos clientes.

— Por que não?

— Acho que tem família, Oliver dará um jeito nisso.

— Melhor assim. Não precisamos de uma outra boca pra alimentar. E esta aí é tem os braços tão finos que não poderá ajudar o suficiente com trabalho. — No momento em que Judy terminava de devorar sua pequena maçã, o vovô Gaubert virou-se aos dois únicos clientes que conversavam e passou a gabar-se de sua própria época e juventude.

Com os olhares de todos desviados, Judy seguiu seu caminho para fora do Lune Rouge, a rua deserta despertou-lhe calafrios de medo. Para onde iria agora? Sem saber o que fazer, apenas jogou os restos da maçã para os porcos atrás da cerca e seguiu em frente.

— Mas onde está a torre famosa? Não vejo nem a pontinha dela no céu. Será que aqui é mesmo Paris?

Oliver acordou-se, molhou o rosto e desceu até o balcão, cumprimentando o vovô Gaubert que já o tratava como filho. Um pouco preocupado, sentou-se em um dos bancos para anunciar a Emma seu fracasso e medo em relação a Judy.

— Sairá hoje? — A moça sorriu, entregando uma maçã e um copo de suco ao rapaz.

— Sim, mas vou procurar emprego pelas redondezas. Tento voltar cedo para limpar a cozinha. Preciso me livrar da...

— Sua garotinha já saiu.

— A Judy? Para onde?

— Não sei, pensei que fosse ordem sua. Espero que não volte, é melhor assim. Não gosto nada dela nem do....

— Se chama celular.

— Tanto faz.

— Tenha um bom dia, Emma.

Oliver enfiou as mãos nos bolsos das calças surradas, nem terminou o suco. O alívio em ter se livrado de Judy não chegou, ao contrário, seu peito encheu-se de um peso, uma culpa tremenda.

Enquanto passeava para conversar com o velho Pavard e seguir sua vida procurando trabalho, viu um rapaz pedindo esmola, magro, as veias saltando da pele fina. Mais uma vítima da miséria que sugava a alma de todos. Tudo que tinha era uma moeda escondida no sapato, que não hesitou em entregar-lhe.

— Por acaso viu uma menina passando por aqui? Pequena, cabelo castanho, olhos azuis...

O rapaz apontou para o caminho que Judy tomou, e Oliver não demorou em encontrá-la, pois ela parou de andar para sentar-se em um banco. Regrediu a parte difícil, enviando mil áudios e pedidos de socorro para a família.

— Ei!

— O que você quer!?

— Olha, Judy...

— Veio me chamar de bruxa? Estou indo embora! Eu sei que meu pai vai me encontrar.

— Não...

Ela escondeu o celular entre as trouxas de roupas quando o menino sentou ao seu lado meio sem jeito, envergonhado.

— Fiquei assombrado com o que me mostrou ontem. Mas... Pensei um pouco, acho que se fosse malvada já teria me prendido dentro do celular. E pessoas malvadas não choram tanto, não é mesmo? — Ele tentou aproximar a mão do rosto da menina para limpar uma lágrima, ganhando um tapa.

— Já falei que vou embora.

— Lá no futuro a magia é comum? A magia domina tudo?

— Não é magia! Se chama tecnologia. Não prendi ninguém dentro do celular. Como eu expliquei da primeira vez, é uma pintura instantânea que se mexe. Veja!

Ela abriu a câmera, Oliver notou o ambiente ao redor aparecendo na tela, ao mesmo tempo que estava bem ali, sem sumir. Judy apontou para um pombo que comia restos de lixo no chão, filmou por alguns segundos e depois mostrou a Oliver.

— O pombo, eu registrei os movimentos dele, não o prendi. Ele continua no monte de lixo.

Era verdade, a ave estava bem visível tanto no mundo real quanto por dentro da tela brilhante. Mas, enquanto no mundo real ele batia suas asas e fazia diferentes movimentos, dentro da tela ele apenas bicava e mexia o pescoço de forma totalmente igual, repetindo cada pequena ação infinitamente, sem mudar.

— Se chama vídeo.

— E o pombo não sentiu nada?

— Não.

— Dá pra fazer isso com as pessoas?

— Com tudo. A foto fica parada, o vídeo se move.

— Me diga, madame, como vou saber se isso não é uma forma diabólica de capturar a alma do pombo?

Um grito de ódio ficou preso na garganta de Judy, que tornou a esconder o celular.

— Não tem como saber, terá que confiar em mim. Não tenho interesses em almas, ok? Se eu quisesse almas, aliás, não acha que já teria roubado há sua a muito tempo?

— Não importa o que aconteça, eu proíbo você de fazer comigo, Emma ou qualquer pessoa o mesmo que fez com o pombo. Caso contrário, juro que te entrego ao bispo mais próximo!

— Não faz diferença, já falei que vou embora. Para que lado fica a torre Eiffel? Se estou aqui, não custa nada uma foto.

— Torre de quê?

— Droga, deve ser do futuro. Ainda não foi construída.

— Vão construir uma torre?

— A mais famosa do mundo.

— Vou tentar te ajudar a voltar para sua época.

Ao dizer essas palavras, Oliver ganhou um abraço apertado e cheio de gratidão da menina. Alguns sentimentos são inexplicáveis, emoção e razão às vezes não podem se conciliar. Ele não entendia os motivos que o levaram a desenvolver um sentimento de proteção tão forte por Judy, algo que nem seu celular e suas pinturas instantâneas podiam destruir. Ele deu tapinhas nas costas dela, confuso sobre o que fazer a seguir já que tomara oficialmente a amiga como responsabilidade.

— Vamos dar uma volta, preciso pensar.

O momento não poderia ser mais oportuno, pois aos trancos e barrancos o velho Pavard riscou com sua carruagem pela entrada da rua.

— Colegas!

— Aonde vai? — Oliver perguntou.

— Sem trabalho hoje, ia na hospedaria trocar uma ideia com seu avô. — Pavard e o vovô Gaubert eram dois homens completamente afeitos por xingar e questionar o reinado de Luís XVI. — Se for para Versalhes hoje, estou fora.

— Pensei em dar uma volta com a Judy.

Pavard piscou para Oliver de um modo significativo, ganhando uma careta do menino. Minutos depois, Judy estava dentro da infeliz carruagem, quase vomitando pela janela. Sua trouxa de roupas ficou para trás, só carregava o smartphone. Mordia a língua em uma tentativa inútil de conter o enjoo.

A bastilha era uma estrutura magnifica, talvez a joia da coroa de Paris, já que a torre ainda não existia. Judy e Oliver desceram lá perto sem aproximar-se muito da imensa construção de tijolos claros com largas torres. Era vigiada por guardas, e a movimentação da praça onde ela ficava não se avizinhava demais, como se as pessoas a temessem.

— Bom, essa é a bastilha. Falam muito dela.

— Bastilha? — Os olhos de Judy espreitaram cada detalhe, alguma memória queria vir à tona em sua mente, sem conseguir. — Eu lembro desse nome. O que tem aí?

— É uma prisão política. Ela existe lá no futuro?

— Não sei  — Judy coçou a cabeça, desesperada para lembrar de algo. — Sinto que devia saber algo sobre a bastilha, mas realmente não estudei. Devia ter pesquisado mais na internet.

— Não deve ser importante.

— Podemos dar a volta? Por favor! Eu sei que se tiver uma pista posso te dizer exatamente o que vai acontecer com ela.

— Não me interessa no momento.

Um grupo de camponeses passou conversando por entre eles, quase separando-os na multidão. Todos mal vestidos e famintos, gritando, como uma pequena e ineficiente manifestação.

— Todo mundo aqui parece sofrer bastante — constatou Judy.

— A França não vai muito bem.

— Por que?

Era uma pergunta que Judy deveria ter feito à professora durante as aulas, mas agora cabia a Oliver explicar. Sem perceber, os dois davam a volta na bastilha, que aos poucos ficava completamente visível a garota.

— Culpa do rei e também do clero. O clero são os religiosos. Eles basicamente vivem no luxo, cobrando impostos medonhos à camada mais pobre da população, como a Emma, que tem uma simples hospedaria. Até uns burgueses de grandes comércios estão meio insatisfeitos. O resultado é um ódio geral, lutas, batalhas... Muito ruim. Não sei quão longe isso vai.

— Vai a uma revolução. Posso tirar fotos da bastilha?

— O quê? — Enquanto discorria sobre o tema, Oliver nem percebeu que Judy sacou o celular. — Absolutamente não! Esconda isso agora, ninguém pode ver.

— Preciso de provas para os meus pais de que estive no passado. Só algumas.

— Vou me sentar aqui. — Oliver escolheu um banco qualquer e cruzou os braços. — Faça o que quiser, mas bem longe. Se for levada ou esquecer o caminho, não me responsabilizo.

— Legal!

Oliver não esperava que ela fosse sair correndo pela praça com o celular em mãos, talvez não compreendera o ar de sarcasmo e ameaça em sua voz. Em vez de correr atrás dela, apenas fechou os olhos e aproveitou o vento que batia em seu rosto. Uma parte dele acreditava na garota, outra ainda considerava loucura. Complicado definir. Esperou que um passeio e um pouco de ar fresco clareasse as ideias, o que não aconteceu.

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