Capítulo 06
Palácio de Versalhes, França. 11 de julho de 1789.
Esparramada no chão de um dos lugares mais luxuosos do mundo, babando em um tapete que custava mais que sua casa; roupas imundas que nem mesmo a plebe ousaria vestir, mostrando os tornozelos. Que horror! Ela estava acordada, sim, só paralisada. Agarrando com as mãos um objeto retangular brilhante, talvez algum tipo de arma, ela não tentava se erguer, concentrava-se na respiração.
Foi assim que a rainha Maria Antonieta encontrou Judy Henderson estirada no chão de seu quarto no luxuoso palácio de Versalhes. Um atentado, os camponeses estavam usando a criança em um atentado. Suas reclamações contra a monarquia francesa estavam indo longe demais.
As viagens no tempo não eram dolorosas para Judy, mas seja lá como aconteciam, ela nunca pousava de pé em um lugar, e ficava bastante desnorteada e confusa.
— Mamãe? — Foi a primeira coisa que Judy disse para a rainha Maria Antonieta. Era tarde demais quando conseguiu interligar os fatos e perceber que sua mãe jamais usaria uma peruca tão espalhafatosa. Seus braços apertaram a cintura da mulher em um abraço desesperado, uma tentativa de encontrar conforto. A face esbranquiçada de maquiagem e retorcida de terror a encarou por alguns segundos, em completo pânico. — Você não é minha mãe!
A rainha empurrou a garota para trás e gritou chamando os guardas, desesperada e tremendo dos pés à cabeça pela situação ultrajante que passara com a plebéia imunda e pestilenta. Ela acusava com sua voz estridente a burguesia, um nobre traidor. Obviamente aquilo se tratava de um grave atentado contra sua pessoa.
Durantes os poucos segundos que se passaram antes dos guardas chegarem para defender sua majestade do monstro, Judy vagou com um zumbi, atordoada, virando o rosto de um lado para o outro sem achar uma saída no imenso quarto. Nem conseguia processar direito as informações; quadros luxuosos, móveis dourados, uma cama gigante. Ela andou em círculos por aquele lugar magnífico e esquisito até dois homens fortes agarrarem seus braços magros e a arrastarem sem qualquer dificuldade.
A rainha foi amparada por suas damas de companhia, apontava para Judy de forma ameaçadora, exigindo que os guardas a torturassem, interrogassem e depois matassem. Felizmente, a criança não entendeu, porque não falava um pingo de francês.
Enquanto era levada por um corredor extenso, ela baixou a cabeça, focando a visão na imensa tapeçaria de veludo vermelho, tentando entender o que via, ouvia e sentia. Um singelo sorriso brotou em seu rosto: pelo menos não estava mais na idade da pedra com as criaturas, ali, alguém poderia ajudá-la a voltar para casa. Os guardas se entreolharam e falaram sobre o acontecimento.
— O que fazemos?
— Torturar, interrogar e matar.
— Gaspar, é só uma criança!
— Uma criança que tentou matar a rainha!
O guarda que intercedia por Judy parou, mesmo sob os protestos do outro. Ele se ajoelhou até ficar da altura da criança, segurando seus ombros firmemente. Tudo que Judy via era um homem de farda colorida e capacete que quase cobria os olhos. Não era seu pai, constatou com desgosto.
— Como você entrou aqui e quem te mandou?
— Onde estou? Você não é meu pai! — Não conseguiu segurar os soluços e as lágrimas. Embora o guarda também não entendesse o idioma de Judy, ele teve certeza de que era uma coitadinha na história toda. Não ia fazer mal a ela, pois, jamais mataria uma criança tão parecida com sua filha.
— Eu cuido dela, Gaspar.
Desconfiado, Gaspar insistiu em agarrar o pulso de Judy mais uma vez.
— Torturar, interrogar e matar!
— Ela não é perigosa, é filha de uma criada. Eu entendo o idioma dela, pode confiar. Ou você está disposto a sujar suas mãos com o sangue de uma criança inocente? Certamente o clero abomina tal ação!
Gaspar acenou com a cabeça, não queria sujar suas mãos diante de Deus e todos os santos, então concordou em se livrar do problema enquanto tinha a oportunidade, virando-se e indo embora o mais rápido possível. Judy continuou sendo guiada pelo outro guarda, mas agora recuperara a forças nas pernas e andava, desconsolada. Seria simplesmente jogada na rua, porque o guarda bom, apesar de ter salvo sua vida, não queria encrenca.
Sabendo que não conseguiria se comunicar com ela, não tentou falar novamente. Quando começou a descer uma escadaria, Judy observou a magnitude do salão ao redor, os quadros, o lustre de cristal que parecia uma cachoeira derramando de tão cintilante. Nem mesmo conseguia encarar as paredes, pois as cores eram tão vibrantes que sua vista cansada doía.
— Onde estou? Por que isso está acontecendo comigo?
O celular, que apagou a tela que tanto assustava as pessoas do passado, continuava milagrosamente bem firme em sua mão. Se o perdesse, aí seria incontestavelmente o fim de sua jornada. Após a escadaria, atravessaram o salão interligado a salas e corredores, lugares que guardam tesouros e intrigas históricas que Judy nem imaginava.
Um pequeno grupo de nobres passou por ela, olhando-a de cima a baixo como um verme. Ela os via como palhaços engraçados, porque ninguém se vestia com roupas tão feias, e pior ainda, perucas tão grandes, se não fosse para um espetáculo de circo. Era maior que a cabeça deles!
Passando pela porta, o guarda a escoltou pelo imenso jardim de entrada com fontes, árvores podadas em formatos peculiares e canteiros de rosas por toda a parte. Um cenário digno de conto de fadas ou de uma série famosa como os romances de época que sua mãe gostava de assistir. Olhando para trás, Judy abriu a boca e quase gritou de surpresa ao ver o tamanho e magnitude do palácio.
O guarda a apressou, agora estavam quase correndo sem que ela percebesse. A região era muito extensa, contava com galerias de arte, jardins, capelas e todo luxo que se podia imaginar. Após muito tempo de caminhada, quando já se podia atirar Judy para a cidade lá fora, o guarda tentou mais uma vez se comunicar com ela.
— Quem mandou você? Não compreende mesmo o que eu falo?
Judy apenas abaixou os olhos, sabia que iria sair das redondezas do palácio, ou seja lá o que fosse aquele lugar. Mas, no fundo, queria ficar com o guarda mais um pouco e pedir ajuda, pois além de gentil ele falava com ela como ser humano.
— Sinto muito, mas preciso ficar com sua arma.
As mãos do homem chegaram perto do celular, e ele ganhou uma dolorosa mordida da menina, que, ao perceber seu amado aparelho em risco, correu desgovernada para fora, passando pelo portão, sentinelas, comerciantes e quase sendo atropelada por duas carruagens deslumbrantes. Ficou na mira do revólver de vários seguranças, mas ninguém atirou. Aos 12 anos, Judy se passava tranquilamente por uma criança de 8 ou 9, e os pais pretendiam conversar com um médico sobre seu crescimento. A questão é que ninguém naquele dia foi tão malvado para atirar na cabeça de uma criancinha.
Suas pernas começaram a doer muito, até que chegou a uma região mais afastada do grande palácio, onde a burguesia mais rica montava seus comércios para vender vinhos, tecidos finos e tudo que pudesse por ventura interessar a nobreza. Ela se escondeu em um beco sujo, esvoaçando um monte de galinhas que ciscavam, empurrando senhoras ranzinzas que também se vestiam de forma estranha, embora menos ridículas que a rainha.
Quando não aguentou mais correr, sentou-se no chão e escorou as costas no muro esquerdo do beco estreito e sem saída, onde no final havia um poço. Um pouco de água seria de grande valia para ela, mas de forma nenhuma teria forças para puxar o balde. Apenas olhou para o céu, ignorando o som, as carruagens e as conversas estranhas que se passavam por ali. O clima era mais frio, parecido com o de onde morava. O céu era o mesmo, ele sempre é exatamente igual, independente do local ou da data que você está.
— Quando eu estou? — Judy se fez a pergunta correta pela primeira vez antes de fechar os olhos e afrouxar um pouco a mão ao redor do celular.
Ela não desmaiou ou adormeceu, embora possa se dizer com certeza que a última vez em que dormira foi há mais de 10.000 anos. Sua mente entrou em um estado de quase inconsciência, onde ouvia os sons ao redor mas não se importava o suficiente para reagir. Somente abriu os olhos outra vez quando sentiu uma coisa fria em sua testa, e sua mão se fechou em um soco bem no meio do nariz do rapaz que a ajudava.
— Ai!
— Quem é você? O que quer?
Oliver LeBlanc não se machucou de verdade com o soco de Judy, o garoto de 14 anos era magro, mas ágil e esperto para sua idade. Quando viu a criança ali largada com as galinhas laranjas já bicando suas pernas, imaginou que coisas terríveis haviam acontecido com a pequena e correu para socorrer. Ela levantou o celular e apontou para ele, não seria louca para jogar sua preciosidade e correr o risco de quebrar, mas a lanterna podia muito bem atordoar os olhos do garoto.
— Quem é você!?
— Calma, eu só quero ajudar. Sou o Oliver. — Judy demorou alguns segundos para se dar conta que o menino falou exatamente seu idioma. — Fizeram alguma coisa com você?
As roupas de Oliver não passavam de trapos sujos, rasgados. Uma camisa frouxa amarrada por uma tira e calças largas que se mantinham em seu corpo por conta do cinto apertado. A pele morena era marcada por pequenas cicatrizes, o cabelo castanho ralo e mal cortado, mas, por algum motivo, os olhos escuros se encontraram com os seus e lhe passaram uma paz que ela já não sentia há muito tempo.
— Eu posso te ajudar?
— Você me entende?
— Sim. Olha, quem te deixou aqui? Expulsaram você de casa, não foi? — Ele espantou as galinhas rapidamente e tentou ajudar Judy a ficar de pé. — Estão expulsando as crianças, desde a grande fome.
— Não me expulsaram! — Judy berrou. — Eu me perdi, é diferente. Mas vou fazer uma ligação para meus pais, e quando eles atenderem vão vir me buscar e processar na justiça aquela guarda e aquela mulher feia que me trataram mal!
— Certo... — Oliver percebeu que Judy não era exatamente normal, a fome podia ter desorientado e enlouquecido a menina. — Olha, por que não me diz onde seus pais moram? Posso te levar até lá.
— Você pode?
— Se não for muito longe...
— Na américa.
— Na américa? Você não sabe falar francês, não é?
— Francês?
— Garotinha, você sabe que estamos em Versalhes, não sabe?
— A capital da Itália?
— Não, na França. — A passos lentos, Oliver se afastava cada vez mais.
— Mas a capital da França é Paris! É verdade, eu errei no quiz e aprendi.
— Paris não fica longe, você vem de lá?
Todas as teorias e suspeitas sobre viagem no tempo vieram novamente à mente de Judy, então ela parou de dizer coisas desconexas que assustavam Oliver, porque se ele fosse embora não iria encontrar outra pessoa que entendesse seu idioma para conversar.
— Desculpa. Meu nome é Judy, Judy Henderson. Preciso de ajuda, estou perdida. — Ela apontou para o poço. — Pode pelo menos me ajudar a pegar água.
— Está bem.
Enquanto Oliver se virou para pegar o balde, Judy observou o cenário com mais atenção. Por entre o comércio passavam cavalos, guardas e as barracas continham deliciosas comidas e tecidos grandes em exposição. O trotar de dois cavalos chamou sua atenção e ela viu uma carruagem azul-marinho com o símbolo do sol indo rumo ao palácio do qual foi expulsa. Passavam por ali homens elegantes de roupa engomada e pomposa com botões dourados, e também os mais pobres carregando peso ou tentando conseguir trabalho. Se sua lógica estivesse certa, aquele era o lugar e época de um dos assuntos que estudou.
— Revolução francesa.
Oliver a chamou e ela se atirou sobre o balde de madeira, sedenta. A água límpida escorria em um alívio por sua garganta, e ela só parou após uns dois minutos. Seria eternamente grata ao menino.
— Estamos na revolução francesa!
— O que é isso?
— É uma coisa que está acontecendo agora, ou que vai acontecer...
— Disso eu não sei, porque sinceramente só quero conseguir trabalho. Não me envolvo em nada que tenha a ver com os jacobinos e girondinos.
— Que azar! Se eu tivesse estudado poderia te dizer quem vai ganhar!
— Ganhar o quê, Judy?
— A grande luta! Quer dizer, não sei se vai acontecer mesmo uma grande luta. Mas digamos que as coisas vão mudar muito por aqui.
— Em que sentido?
— Bom... — Judy lembrou de uma das poucas coisas que decorou na aula. — A rainha Maria Antonieta será guilhotinada.
Oliver arregalou os olhos e espreitou os cantos, assustadíssimo.
— Que absurdo! Não diga isso, garota! Você quer ser morta?
— Eu venho do futuro, Oliver. Quer dizer... do passado, mas inicialmente do futuro. Não sei como isso acontece exatamente. — Ela acendeu a tela do celular para ele, que se apoiou na mureta do poço para não cair de susto. Aquela menina era mesmo uma caixinha de surpresas.
— O que é isso?
— É uma coisa que existe no futuro. Se chama celular. Acho que ainda não existe internet nessa época, não é? Ou existe?
— Já vou indo, ok? Boa sorte com a revolução, o futuro... — Agora ele saía a passos bem rápidos do beco, quase correndo. Seu único desejo era encontrar um emprego, não uma pequena revolucionária maluca. — Boa sorte com seu celular também, tchau!
Oliver correu como se não houvesse amanhã, desviando de tudo pelo caminho. Pulava sobre barris, empurrava quem visse na frente e não tropeçava nenhuma vez. Judy até tentou segui-lo, temendo ficar tão sozinha quanto estava na idade da pedra.
— Me espera, por favor! Você não entendeu nada.
Infelizmente, sua agilidade estava bem longe de alcançar a do menino. Quando se deu conta estava completamente perdida entre uma multidão de camponeses ocupados. Pediu ajuda, implorou. A palavra
petit gâteau era o único vocábulo que conhecia do francês.
As lágrimas já escorriam livremente por seu rosto, e todos desviavam sem qualquer intenção de ajudar; porque na França, em 1789, o que mais existiam eram crianças passando fome e pedindo esmola pelas ruas poeirentas. Judy era só mais uma.
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