Sombra de Olhos Brilhantes

Um silêncio reconfortante perdura por alguns segundos, até a minha consciência voltar a despertar.

— Senhor Gilson, está na escuta?! — ecoa a voz distorcida em meio ao preto puro. — Senhor Gilson, responda! Está na escuta?! Senhor Gilson, pelo amor de Deus, responda!

Meus olhos se abrem de um sobressalto. Vejo apenas o negro, como se meus olhos estivessem ainda fechados. Arquejo fortemente, com o peito subindo e descendo, mas o ar que respiro entra quente e causa uma ardência incômoda nos meus pulmões. Olho para um lado e vejo apenas o preto. Olho para o outro e me deparo com a lanterna acesa iluminando uma parede vermelha e rochosa.

Com os olhos piscando e o nariz suspirando forte, levanto-me dando uma inclinada para frente com a ajuda dos cotovelos. Uma tontura causa um giro abrupto na minha visão. Por pouco eu não tombo de volta ao chão. Fecho fortemente os olhos e abro de novo num sobressalto.

— Senhor Gilson, responda! Está na escuta?! — quando ouço a voz distorcida, percebo que o fone intercomunicador está caído ao lado da minha cintura. — Responda, senhor Gilson! Está na escuta?! — apalpo a mão sobre o solo ao lado da minha cintura, até que meus dedos agarram um objeto pequeno e eu imediatamente puxo. Quando vejo que é o fone, rapidamente o enfio de volta na orelha esquerda. — Senhor Gilson, está na...

— Sim, estou na escuta — falo entre arquejos, sentindo os pulmões ardendo. — Eu consegui achar a passagem — olho para cima, mas está escuro demais para ver alguma coisa. — Eu acho...

— Muito bem — diz a voz. — Agora que o senhor achou o túnel secreto, o seu próximo passo será a Cúpula Fantasia. Tudo que o senhor precisa fazer é seguir reto pelo túnel. Não se preocupe, o senhor não encontrará nenhuma bifurcação ou obstáculo, apenas siga em frente e no final achará uma escada de mão para subir. Caso o senhor tenha se esquecido durante o caminho, eu havia lhe avisado que, quando o senhor descer o túnel, achará uma máscara de ar para colocar no rosto. A radiação não foi totalmente eliminada neste local, pois não faz parte de Jardines, e apenas Alexia Mederin possui os meios para eliminar a radiação do solo deste planeta. Caso ela não tivesse, Jardines nunca viria a existir. Infelizmente o seu corpo deve ter absorvido uma parte dessa radiação enquanto o senhor descia as escadas, por causa disso é provável que o senhor venha a ter visões no caminho. Tome cuidado, pois algumas dessas visões podem ser fatais.

— O quê?! Como assim?! Que visões são essas?! — mas a ligação é cortada. Solto um rosnado de cão, porém guardo os xingamentos para mim. Não posso ficar perdendo tempo. Estou dentro de uma zona radioativa. Preciso passar para o outro lado rápido. Mas quanto tempo eu fiquei desacordado exposto à radiação? Visões que podem ser fatais? O que isso quer dizer?

Ponho-me de pé, apoiando a mão no solo. Eu me agacho e pego a lanterna, logo aponto sua luz para frente, iluminando o túnel de rochas vermelhas. No chão frente aos meus pés está uma máscara de proteção respiratória. Novamente me agacho e pego. Enfio a lanterna no meio do sovaco e coloco a máscara na cara. Respiro profundamente, sentindo o ar do filtro entrar normalmente nos pulmões, sem causar queimação.

Pego a lanterna e ilumino o caminho à frente: um túnel longo e estreito de rochas vermelhas, as mesmas rochas que compõem praticamente todo o solo do planeta Marte. Quem diria que um dia eu iria pisar no solo de outro planeta sem usar traje espacial e ainda dentro de uma sociedade utópica arruinada... Nem em sonhos imaginaria uma coisa dessas.

Ando calmamente para frente, cercado de silêncio e claustrofobia. Neste momento eu agradeço mentalmente por não ser claustrofóbico, senão já teria desmaiado e morrido com a paranoia de que essas paredes iriam se fechar contra mim até me matar esmagado. Tiffany, minha primeira namorada, morria de medo de lugares assim. Na época era véspera da volta às aulas. Eu tinha dezesseis anos enquanto ela havia acabado de fazer quinze. Tinha cabelos negros e naturalmente lisos, olhos castanhos, pele clara e cintura fina.

Eu me lembro do dia que fomos a um parque de diversão que havia abrido na cidade de Surubim durante a tradicional festa de São Sebastião que ocorre todo mês de Janeiro. Surubim era a cidade onde antigamente vivia a minha mãe, consequentemente foi também a cidade onde eu nasci, porém cresci na capital Recife. Só o meu avô continuou morando em Surubim, e continua morando até hoje. A cidade não era grande coisa na época, mas tinha umas atrações interessantes. Nunca vou me esquecer do dia que levei a Tiffany naquele túnel do terror, que era tão estreito quanto o túnel que estou andando agora, com a diferença de que as paredes não eram de rochas vermelhas e estávamos andando em um carrinho automático.

Eu conheci a Tiffany quando comecei o primeiro ano do ensino médio. Ela era uma grande medrosa. A mãe dela, dona Lídia, uma vez me contou que, quando Tiffany era criança, vivia tendo pesadelos com monstros e criaturas asquerosas, tanto que acordava no meio da madrugada aos berros com a cama toda molhada de mijo. Eu, como não era nenhum santo, me aproveitei daquilo para pregar uma peça com ela. Uma das piores decisões da minha vida.

Enquanto deambulo pelo túnel vermelho, minha visão é preenchida pela lembrança daquela noite na festa. Lá estava eu atrás dela, com as mãos em cima dos seus ombros, guiando-a para uma direção, enquanto ela estava com os olhos vendados por um lenço preto. A nossa volta, casais e famílias circulavam aos risos, pagando ingressos para entrar nos brinquedos e comprando lanches nas barracas, algodão doce, cachorro quente, coxinha, pastel, pipoca doce e salgada, sorvete, batatas fritas e várias outras guloseimas.

— Anda, Gilson, a gente já chegou? — ela perguntou toda animadinha. — Eu nunca fui num túnel do amor antes! Ai, eu tô tão animada — deu um e outro pulinho.

— Calma que a gente tá já chegando — falei com um meio sorriso maldoso estampado nos lábios. — Falta bem pouquinho agora — olhei para frente e lá estava o Túnel do Terror, e nós estávamos indo para lá. O rapaz dos ingressos era Carlos Pereira, o meu melhor amigo da escola. Ele estava substituindo o tio naquela noite, pois o mesmo estava doente, por causa disso ele tirou certas liberdades, entre elas a de dar a mim o privilégio de entrar no Túnel do Terror sem precisar pagar ingresso. Carlos era um jovem de pele negra, corpo meio rechonchudo, lábios carnudos, e sempre gostava de manter os cabelos negros raspados.

. Eu e ele vivíamos colando nas provas, ajudando um ao outro mutuamente, e praticando bullying com os alunos tapados da escola. Éramos uma dupla quase inseparável, o mais próximo que tive de um irmão.

— Já posso abrir os olhos? — indagou Tiffany. — Anda, Gilson, eu posso abrir os olhos?!

— Ainda não — eu e ela tomamos nossos assentos no carrinho automático. Virei o rosto para Carlos e mostrei o polegar levantado para ele, dando o sinal para começar. Carlos, com uma cara de segurando o riso, empurrou uma alavanca, e assim o carrinho começou a andar, adentrando a escuridão do túnel. — Pronto, já pode tirar a venda.

Ao fazer isso e notar que estávamos adentrando um túnel escuro e estreito, seu sorriso animado foi desfeito.

— Gilson, que lugar é esse? — olhou em volta, com a respiração acelerando. — Gilson, isso aqui não parece o... AAAAH — berrou e tapou a boca com a mão quando subiu um grande boneco de diabo vermelho sorridente. — Que porra é essa, Gilson?! GILSONNNNNN — sacudiu-se no assento, e teria saltado do carrinho se não fosse o pavor que tinha do escuro. O trajeto inteiro foi marcado por seus berros de horror enquanto eu me fartava de rir como um bobalhão sem cérebro.

No final, quando o carrinho saiu do túnel e parou, ela saltou para fora aos prantos e correu com a mão tapando a boca.

Ei, pera aí — levantei-me e corri atrás dela. — Pera aí, Tiffany! Tá indo pra onde?!

— FICA LONGE DE MIM — avançou as mãos contra o meu peito e eu recuei dois passos desajeitados. Só me dei conta da merda que havia feito quando notei seu calção branco respingando urina. A maquiagem no seu rosto estava toda borrada de choro. Um aperto frio atacou o meu coração como se uma mão de gelo o espremesse.

— Tifanny, eu... — estendi a mão e dei um passo. — Desculpa, eu não sabia, eu...

— NÃO — ela recuou, chorando e tremendo. — VAI EMBORA! FICA LONGE DE MIM — pouco depois, viu que metade da festa estava com os olhos voltados para nós. Sentindo o peso da humilhação, ela rodopiou e correu aos soluços. Eu fiquei sem reação, apenas vendo-a se afastando até desaparecer ao fazer uma curva para a calçada à esquerda. Mas eu bati os pés e corri atrás dela, virando a calçada à esquerda.

Segurei o seu ombro por trás.

Pera aí, Tiffany, deixa eu...

Ela rodopiou e desferiu tapas no meu peito.

SAI DAQUI! ME LARGA — afastou-se de mim, com os olhos molhados e raivosos. — VAI PRO INFERNO!

Tiffany, não faz isso...

EU PENSEI QUE TU ME AMAVA, CARA — ela rosnou com a voz alterada em choro. — TU SABIA QUE EU TENHO PROBLEMA NA BEXIGA E FAZ ISSO COMIGO?! ME HUMILHAR NA FRENTE DESSA GENTE?! QUAL É O TEU PROBLEMA?!

Eu não sabia o que responder. Simplesmente a encarei triste, perplexo e sem voz. Foi a melhor forma que encontrei para demonstrar arrependimento. Nossa troca de olhares durou não mais que alguns segundos. Ela se virou e foi embora pela calçada a passos largos, enquanto carros iam e vinham pela estrada pavimentada. Ela desviava de grupos de pessoas pelo caminho, dando um e outro empurrão, sendo acompanhada por xingamentos.

Olha por onde anda, ô maluca!

Parado no meio da calçada, eu fiquei apenas a observá-la se afastando, ficando cada vez menor aos meus olhos. A lembrança se desvanece por meio de ondulações distorcidas, escurecendo... escurecendo... até dar lugar à atual realidade em que me encontro, caminhando em um túnel de rochas avermelhadas. Eu nunca tive a chance de me desculpar por aquilo, pois fiquei com tanta vergonha que nem tive coragem de aparecer no primeiro dia de aula do terceiro ano do ensino médio. Fiquei sabendo que ela também não havia ido com a expectativa de que eu estivesse lá. Desde então nunca mais voltamos a nos falar.

Desde que terminei os estudos, a última noticia que tive dela foi de que havia parado no hospital após ter sido violentamente agredida pelo noivo, um sujeito chamado Everaldo, que tinha fama de fazer tráfico de drogas em escolas primárias. Tiffany levou tanta surra dele que desmaiou com a cara roxa e ensanguentada, e como todo bom covarde, Everaldo mentiu dizendo que ela caiu da escadaria, mas a vizinhança inteira desmentiu e o sujeito terminou sendo levado à prisão, onde foi espancado até a morte pelos outros detentos, intolerantes com homens que agridem mulheres. Bem feito, para dizer o mínimo.

Um ano depois disso, Tiffany foi encontrada morta por overdose de cocaína numa fazenda fora da cidade. Ela estava com o corpo esquelético, quase irreconhecível. Eu prefiro mil vezes imaginar que ela está viva em algum lugar. Do jeito que o povo adora inventar histórias, é provável de que esteja mesmo viva. Imagino um dia me reencontrando com ela e contando tudo que vi e ainda vou ver aqui em Jardines. Do jeito que ela era apaixonada por mim, pode acabar rindo e me perdoando, dando-me uma chance de redenção. Porém, sinto minha própria consciência dizer que isso nunca irá ocorrer.

Estou quase meia hora caminhando por este túnel e nada de chegar ao outro lado. Estou sentindo que ainda estou longe da metade, o que não deveria ser uma surpresa. A distância de uma cúpula para outra em Jardines parecia ser de quilômetros, pelo menos parecia na primeira vez que vi dentro daquele farol. Acredito que, mesmo se eu quisesse, não ia conseguir explorar esta cidade por inteiro. Vou só morrer se tentar.

Mais dez minutos se passam. Não acho que o filtro de oxigênio desta máscara vá durar muito, portanto é melhor eu chegar ao outro lado logo. O pior disso tudo é que, uma vez que eu chegar ao outro lado, não poderei mais voltar, a não ser que eu encontre outra máscara de ar, e tenho total certeza que, em uma utopia feita para crianças, não existem outras máscaras deste tipo. Se essa voz que está me guiando é mesmo um jornalista, como ele conseguiu trazer uma máscara dessas para cá? Melhor, como ele conseguiu deixá-la exatamente dentro deste túnel sabendo que eu precisaria usá-la? Ele também enfrentou os Malcriados? Será que outros foram trazidos para Jardines e eu sou o primeiro a sobreviver até este túnel?

Naquela gravação que ouvi, a da menina Emília, a mesma falou que revelou um esconderijo secreto a esse tal de Condenado Galileu. Foram crianças que cavaram este túnel? E por que raios fariam isso? A única possível resposta que me vem a mente é que elas estavam ajudando Galileu a acabar com a tirania de Mederin. Devem ter tardado meses em concluir este túnel. Podem ter usado algum drone ou uma máquina, e eu não duvido que nesse meio tempo tenham ocorrido alguns acidentes e mortes inesperadas. Mesmo fazendo isso, Alexia Mederin ainda acabou vencendo Galileu... O quão poderosa é Mederin neste lugar? Poderei eu ter alguma chance de acabar com ela? Tantas perguntas e eu posso acabar morrendo sem nenhuma resposta... O melhor será focar em me manter vivo.

Ouço um sussurro fino e distorcido:

Vem... Vem... — é a voz de uma criança que ressoa como várias. Está vindo de todos os lados. — Vem com a gente... — um arrepio sacode o meu corpo e me deixa paralisado, com os olhos esbugalhados e o coração palpitando. — Estamos atrás de você — passos atrás de mim: pshóc pshóc pshóc. Rapidamente me viro, com a mão tremendo na lanterna. Nada... Ninguém...

Engulo a saliva num glup, sentindo-a descer num espremido que me dói na garganta. Meu coração segue a bombear blung blung blung! O silêncio completo retorna. O único ruído é da minha respiração entrecortada. Órr... Órr... Uma respiração ressoa atrás de mim. Meus olhos voltam a sobressaltar e estremecer. ÓRR! Viro-me num rodopio. Dois olhos brancos me encaram na escuridão à frente, muito além da iluminação da lanterna.

Os olhos correm na minha direção, balançando para cima e para baixo, revelando a sombra de uma menina de vestido largo. ZINNNNNN! Minha visão é preenchida pelo rosto pálido de uma menina com olhos negros chorando sangue e boca derretendo num líquido cor de pele.

— Você pode nos ajudar — sua voz é fina e fantasmagórica, cheia de eco. — Mas consegue escapar da morte?

Meus olhos piscam e eu danço para trás, arquejando. O rosto se foi. Olho para trás e para frente de novo. Nada.

Ouço novamente um sussurro fino e distorcido:

Ela voa como uma sombra — é a mesma criança que ecoa como várias. — Uma sombra de olhos brilhantes — eu solto um gemido e bato os pés, desatando a correr pelo túnel. — Ela sempre nos observa — linhas vermelhas correm pelas paredes como liquido de sangue coagulando, avermelhando ainda mais o ambiente. — Nós ganhamos olhos brancos — olhos humanos se abrem nas paredes, seguindo-me. — E estamos com tanto frio...

ZINNNNNN! O rosto pálido volta a tomar a minha visão como uma imagem estática.

— Você não é do mal — a voz ecoa ainda mais. — Também não é um herói — mas soa como se várias falassem ao mesmo tempo. — É tudo confuso...

O rosto some e eu me vejo correndo pelo túnel em um bater frenético de pés. Olho para trás, virando a mão com a lanterna para iluminar. Uma sombra humana com dois olhos de bolas brancas corre com os braços balançando para frente e para trás como se nadasse em lama.

Gilsoooooon — canta uma voz de mulher. — Gilsoooooon — ouça-a perto das minhas orelhas. — GILSOOOOOON — um frio começa a me abraçar.

Dou um e outro tropeço, quase cambaleando nas paredes com olhos. Eis que me deparo com ossos de esqueletos de crianças espalhados pelo chão, todos desmembrados e misturados entre si. Eu não paro de correr e passo varrendo os ossos com os pés. Uma escada de mão feita de cordas se projeta na escuridão com a luz da lanterna. Meus pés dão um passo em falso e eu caio de frente. Giro rapidamente por sobre os ombros, olhando para o caminho que vim. A sombra sumiu, assim como os olhos brilhantes. Todos os sons além do meu medo já não estão mais aqui.

Com o peito subindo e descendo, levanto-me com o corpo inteiro estremecendo, principalmente os dedos, que balançam uma intensa vibração. O que foi isso?! Ilumino as duas paredes. Não há mais olhos nelas. Dou meia volta e olho para a escada de mão. Começo a subir com cuidado, sofrendo tênues balançados laterais.

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