Revelação

Eu retorno para o centro de comando de Jardines, que está toda envolta de escuridão.

— Você conseguiu, Gilson — ouço a voz da sombra misteriosa a frente. — Nós conseguimos — seus olhos brancos e brilhantes se revelam na escuridão. — Conseguimos finalmente chegar ao fim de tudo isto. Nada disto seria possível se não fosse por você, que entrou naquele farol e seguiu todas as minhas instruções, enfrentou todos os perigos e superou todos os obstáculos impostos por Alexia Mederin para tentar retardar a própria derrota.

— Quem é você afinal? — lanço a pergunta.

As luminárias da sala voltam a se acender, revelando a sombra misteriosa flutuando meio metro acima do chão.

— Você pode ficar perplexo — ele se vira lentamente, fitando-me com os olhos brancos. — Mas quando eu deixei tudo para trás para vir a esta cidade, foi por motivos de individualismo, de buscar recuperar algo que nunca senti, de rir como nunca cheguei a rir, de voltar a ser o que nunca consegui ser... Voltar a ser uma criança e sentir o que é de fato ser uma...

— Você é o meu pai — minha voz pesa, engrossando. — Por quê? — estremeço os lábios, lagrimando os olhos. — Por que abandonou a gente?

— Você já era um homem feito, Gilson — seu tom se volta melancólico. — Não precisava mais de mim...

A mamãe precisava — lágrimas lavam a minha face. — Ela morreu por dentro e por fora por sua causa! Porque ela lhe amava como nunca amou ninguém, e o senhor a abandonou por motivos de egoísmo?! Matou nossa família por... por... — estremeço, ofegando. — ISTO?!

— Andreza... — sua cabeça abaixa. — Ela se foi, não é? Minha querida e amada Andreza...

— Por que, pai?! — ando um passo. — Por que abandonou a gente assim?! No que o senhor tava pensando?!

— Em mim — ele me fita. — Eu estava pensando em completar a parte da minha vida que eu nunca fui capaz de usufruir. Você se lembra da história que eu te contei na praia, não lembra? Eu nunca tive a chance de ser uma criança como você foi... De sorrir, de brincar, de ser feliz ao lado de outras crianças... Mas quando eu cheguei à Jardines, quando vi o que Mederin estava fazendo com as crianças, senti que precisava fazer alguma mudança... Era por um bem maior que eu estava lutando, Gilson... Mas acho que você nunca vai chegar a entender o meu lado nesta história. Quero apenas que saiba que, acima de tudo, eu continuo te amando como meu filho...

— Pai... — começo a soluçar.

— Você pode pensar que o seu pai é um monstro que só pensa em si mesmo, mas a vida não é como nas histórias infantis. Não existem vilões ou heróis aqui. Se fosse assim, acha que o Trio Pátria Mundo teria te perseguido? Não... Eu lutei por um bem maior. Você lutou por um bem maior. Nós lutamos juntos como pai e filho. Derrotamos o mal que transformou Jardines no caos que está hoje. Nós podemos fazer grandes coisas juntos, meu filho — ele estende a mão sombria para mim. — Pense no bem que podemos trazer ao mundo usando esta cidade...

— Do que o senhor tá falando?

— De revelação — ele cerra o punho. — Vamos revelar ao mundo que existe uma cidade funcionando na superfície do planeta Marte. Vamos transformar Jardines em uma cidade tanto para crianças como para adultos. Vamos povoar este lugar com pessoas que estejam dispostas a expandi-la para a criação de um mundo novo. Nós dois podemos mudar o mundo como o conhecemos, para melhor...

— Não — balanço a cabeça para os lados, com expressão de desprezo. — Não... Não, eu não posso fazer isso... Não quero fazer parte disso...

— Por que não? — ele voa para perto de mim. — Você mesmo me questionou se seria possível reconstruir Jardines, e eu respondi que sim. A utopia de Mederin estava fadada ao fracasso desde o início, e só ela não enxergava isso. Por isso ela matou todas essas crianças.

— NÃO! QUEM MATOU ESSAS CRIANÇAS FOI VOCÊ! VOCÊ E O SEU EGOISMO!

Um silêncio duradouro perdura enquanto encaramos um ao outro fixamente.

— Mesmo depois de tudo, você vai se virar contra o seu próprio pai?

— Meu pai morreu quando foi embora — pigarreio por entre os dentes. — O que tá diante de mim é um monstro que deixou a família no desamparo pra o quê?! Andar feliz por aí como criancinha na superfície de um planeta inóspito?! Ramón Fernandes tá morto, e junto com ele morreu toda a nossa família! E o seu filho aqui não irá levar essa loucura adiante! Se for assim, eu prefiro morrer!

Nosso silêncio volta a perdurar por alguns segundos.

— É tão difícil assim pra você entender?

— Eu não tenho que entender nada... O pai que eu tinha morreu... E eu já aceitei isso... Acabou...

— Não precisa falar assim...

Acabou — estremeço em ira. — Eu não vou virar o mesmo monstro que você! Podemos ser pai e filho, mas não somos iguais! Você é tão podre quanto a Mederin! Talvez seja até pior, como vou saber?! Nem o meu próprio pai eu reconheço mais!

— E nem eu consigo reconhecer o meu próprio filho — ele continua triste. — Pensei que poderíamos abraçar esse futuro juntos...

— Eu não vou ser mais o seu capacho...

— Então isso significa que eu vou ter que tomar aquela que será a decisão mais difícil da minha vida — ele respira pesadamente. — Vou ter que tomar posse de você...

Meus olhos sobressaltam.

— O quê?

Ramón Fernandes esvoaça e faz as minhas costas baterem no chão.

— Mesmo que eu precise te matar aqui — ele monta em cima de mim, encarando-me bem de perto. — Você fez a sua escolha, e aqui eu cumprirei com as consequências — suas mãos saltam contra o meu pescoço e aperta. — Mas quero que saiba de uma coisa: tudo que eu vou fazer aqui é pelo bem da humanidade, e nada nem ninguém me impedirá de alcançar meus objetivos — a entrada de ar para os meus pulmões é completamente ofuscado quando ele começa a me sufocar. Sacudo o corpo no chão em um sobe e desce frenético. — Adeus, meu filho... Espero que me perdoe quando chegar ao outro lado — minha visão começa a embaralhar. Meu coração palpita com uma força dolorida, como se quisesse pular do meu pescoço. Todos os sons são substituídos por um zumbido zinnnnnn! E tudo termina de escurecer.

Porém, nesse mesmo instante, meus olhos voltam a se abrir. Meu coração volta a bater como se trocado por um novo. Levanto as minhas mãos e as miro, abrindo e fechando os dedos, em seguida levanto o corpo inteiro com pouco esforço. Olho para a cadeira de couro preta rodeada pela mesa redonda. Ando na direção da cadeira. A mesa fica transparente e eu atravesso como se fosse um fantasma. Paro na frente da cadeira de couro, com as costas viradas para ela. Levanto o dedo e dou um toque no ar. Em um segundo, dezenas e dezenas de pequenas telas holográficas tomam forma acima da superfície da mesa, formando uma parede circular ao meu redor.

Nas telas estão mostradas todas as câmeras instaladas em toda a cidade de Jardines, mostrando a ruína causada pela guerra que eu comecei. Um painel holográfico simulando um teclado de computador flutua bem na frente dos meus quadris. Estico o dedo e aperto o botão com um símbolo de microfone. Olho para todas as telas.

Atenção, povo de Jardines — anuncio em alto som. Todas as crianças que aparecem nas telas param o que estavam fazendo para escutar. — Aqui quem fala é Galileu — as crianças urram, balançando as mãos para o alto. — Alexia Mederin finalmente caiu! Jardines agora está sob o nosso comando! De agora em diante, liberdade será o nosso símbolo e o nosso lema — olho para uma tela um pouco acima da minha cabeça, que mostra uma visão distante do planeta Terra. — O mundo está para mudar! E com a ajuda de todos vocês — desço os olhos para uma tela inferior que mostra Laurinha Ramos encarando a câmera com olhos atemorizados. Abro um meio sorriso. —, limparemos Jardines dos traidores!

Laurinha Ramos olha para uma direção, vira-se e corre disparadamente, sendo perseguida por uma horda de crianças desvairadas. Eu recuo dois passos e me acomodo na cadeira de couro preta, dando giros e olhando para cada telinha holográfica que mostra cada pedaço da cidade de Jardines.

— Sinto muito se está decepcionado com o seu pai, Gilson — falo para mim mesmo, ouvindo a voz do meu filho, agora a minha voz. — Mas você escolheu o sacrifício, e através desse sacrifício eu vou fazer você entender aonde eu pretendo chegar com tudo isto. Seria um crime deixar o seu corpo apodrecendo aqui. Mesmo que eu esteja em posse do seu corpo, você sempre estará comigo, seja como espírito ou como uma memória. Quando eu chegar onde você está agora, você já terá me perdoado, Andreza já terá me abraçado, e Deus já terá me abençoado — olho para o teto, sorrindo labialmente, com os olhos estreitados. — Obrigado, Senhor.

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