Escolinha Liditas II
Sigo o meu caminho pelo corredor escuro, com a lanterna iluminando. NHÁRRRRR! Um berro feminino ecoa distante. Ao andar alguns passos, encontro-me com uma barricada de estantes e cadeiras quebradas bloqueando o corredor à frente. O corredor da esquerda e da direita são os únicos caminhos livres. Ilumino o corredor da esquerda, cujo fundo está totalmente mergulhado em preto, tendo o cadáver de uma garotinha retorcida no chão, toda escaveirada, com a pele cinzenta e imunda. Deve ter sido daqui que aquela coisa prateada veio, o que significa que não é nada seguro ir por essa direção. É melhor seguir pela direita.
Vou então para a direita, caminhando... caminhando... caminhando... com os ouvidos antenados a qualquer ruído estranho que possa indicar a presença de alguma ameaça. A este ponto, qualquer coisa viva aqui pode me ser uma ameaça. Curiosamente, este lugar lembra um pouco a minha escola. Será assim como Tarcísio via a escola? Um inferno sombrio repleto de demônios? Se sim, certamente eu era o Satanás.
Passo por cima do cadáver de uma criança ensanguentada. Outra criança morta jaz sentada com as costas na parede à esquerda, como uma boneca melada de vermelho e sem olhos, toda retorcida e com a pele ossuda. Não sei se é impressão minha, mas os cadáveres estão muito parecidos.
Passo por cima de uma estante de madeira arriada no meio do caminho. No fim do corredor, encontro um conjunto de degraus para subir. Não acredito, vou ter mesmo que subir lá em cima? A maioria dos caminhos neste setor estão bloqueados, talvez seja a única opção. Olho para trás. Talvez lidar com as crianças não seja pior do que lidar com aquela coisa prateada, que parecia ser tudo, menos humano.
Volto os olhos para frente e subo os degraus um a um bem, bem devagar, pousando suavemente os pés a cada passo, com os ouvidos atentos ao silêncio absoluto e minha respiração desigual. Subo o último degrau e chego a um piso quadrangular, dando uma volta e encontrando mais degraus para subir. Fico alguns segundos parado a ouvir o som ambiente. Nada... Nenhum ruído... Volto a subir os degraus com a mesma lentidão. Chegando ao final, encontro um espaço amplo que estaria invisível em trevas se não fosse a luz da minha lanterna.
Tchórrrrrr! O fone volta a chiar. Eu paro rapidamente e me atento a escutar.
— Galileu vive — sussurra uma voz fininha e feminina. — Para sempre viverá...
— Não será Mederin que nos deterá — fala outra menina.
— Será a rebeldia que nos libertará...
— Quando a sombra voadora ganhar olhos...
— E eles brilharem como as estrelas do céu...
— Assim a lenda será guiada...
— Para as nossas correntes serem quebradas...
— Galileu vive — falam ao mesmo tempo. — Para sempre viverá — depois disso, soa um barulho de algo sendo arrastado. Clórf! Soa um barulho de tosse por engasgamento, seguido de suspiros brutos de quem está tendo dificuldades para respirar. No final, vem um ruído similar a dois corpos tombando no chão ao mesmo tempo. Um segundo depois, o fone corta o som completamente.
Galileu vive... Para sempre viverá... Quem é esse Galileu afinal? Alguma espécie de mártir? Um herói endeusado pelas crianças de Jardines? Por acaso essas meninas se suicidaram? Se sim, por quê? Não dá para ter certeza apenas se baseando pelo áudio, mas foi isso que pareceu, e se foi isso mesmo, elas foram as únicas a fazer isso? Elas fizeram antes, durante, ou depois do caos em Jardines? Merda, quanto mais descubro sobre este lugar, mais e mais fico confuso. Eu quero muito saber o que aconteceu aqui, muito mesmo, e espero que esses áudios misteriosos continuem me dando evidências para eu tentar juntar as peças deste quebra-cabeça.
Com o silêncio voltando a tomar conta, começo a andar em frente cautelosamente. Giro a lanterna para os lados. Vejo entradas para corredores e portas para algumas salas, todas fechadas. No entanto, uma porta à esquerda me prende a atenção, fazendo-me deter os passos. A porta está entreaberta. Com os nervos gelados de tensão, direciono os meus passos para a porta, andando... andando... e parando diante dela. Inclino-me para olhar o preto puro que está por trás da brecha aberta. Levanto lentamente a lanterna, revelando olhos esbugalhados me encarando.
— Ah — volteio, chacoalhando a luz da lanterna. Bum! A porta bate. Tchic! E é trancada por dentro. Arquejando, com o peito subindo e descendo, eu volteio mais alguns passos para me afastar. Engulo a seco, com a respiração irregular e o coração pulsando intensamente na garganta. Droga... Deve estar cheio deles aqui... Estarão se escondendo da coisa prateada? Se sim, pelo bem de suas vidas, é melhor que continuem assim até onde puderem aguentar.
Desvio o foco da porta e volto a andar em frente. Mááááá... Um gemido de bebê ecoa distante, detectado pelo meu ouvido direito. Má... má... máááááá... Está vindo da escuridão de um corredor, bem para o seu final. Mãmã... Está chorando. Mãããããããã... Enquanto o choro segue, uma porta começa a girar a maçaneta tchunc tchunc tchunc! É a porta que está à direita do corredor. Sua maçaneta gira e balança como um preso ansiando por liberdade tchunc tchunc tchunc!
Eu avanço uma corrida breve para frente, diminuindo os passos logo em seguida. Olho para trás. O choro do bebê e o balançado da porta continuam. Volto o foco para frente e sigo andando, agora um pouco mais apressado. Chego então a uma parede no fim do caminho, com um corredor à direita e outro à esquerda para seguir. Iluminando o corredor da esquerda, vejo que está bloqueado por uma pilha de entulho. O da direita, no entanto, está completamente limpo. Sigo então para a direita, batendo os pés suave e cautelosamente.
Encontro uma janela quadrada sem vidro ao final. Ao me aproximar da janela, percebo a presença de uma porta um pouco à esquerda, que leva exatamente para a sala que está atrás da janela, e mais à esquerda ainda está um corredor mergulhado em escuridão. Se a porta se encontra fechada ou aberta eu não sei, só sei que, para não perder tempo, decido saltar para o outro lado da janela, invadindo uma sala completamente vazia, com paredes pintadas em amarelo queimado. Está limpo tanto de cadáveres como de mobílias.
Movo a luz da lanterna para os lados enquanto caminho. Ao fundo da sala está uma porta dupla de madeira. Por favor, que seja a saída...
Acelero os passos na direção da porta, mas eis que um clarão invade o canto do meu olho direito, e a minha sombra se projeta nitidamente na parede à minha esquerda. Viro-me para a direita e me deparo com um quadro holográfico reproduzindo um vídeo de crianças rindo e saltitando alegremente em meio a um campo gramado. Uma dupla de garotinhos vestidos com armaduras metálicas de cavaleiros está lutando com espadas de plástico cujo design imita perfeitamente uma espada de verdade.
Do jeito que a imagem balança, fica evidente que se trata de alguém gravando.
— Jardines é a melhor cidade do UNIVERSO INTEIRO — brada uma menininha gravando, toda animadinha. — Não é, Galileu?! — vira a câmera para a esquerda e mostra um garotinho magro apenas do pescoço para baixo, sem mostrar o rosto. Ele está com as mãos na cintura e a coluna ereta. Parece estar movendo a cabeça para um lado e outro. — Galileu?
— Não grava a minha cara — diz Galileu.
— O quê? — murmura a menininha.
— Não... grava... a minha... cara... Ouviu bem?!
— Mas... Mas por quê? Qual é o problema, Galileu?
— Ela tá vendo a gente — o corpo de Galileu se vira para a câmera, deixando seu rosto ainda mais oculto. — Ela tá sempre vendo a gente...
— Galileu, do que você tá falando? Quem tá vendo a gente? Galileu, você tá me assustando...
— Desliga isso, agora — ele se aproxima, apontando o dedo. — Desliga isso! DESLIGA — agarra a câmera e sacode toda a imagem numa redemoinhada frenética. Tchhhhhh! A imagem é cortada para chuviscos brancos.
Mederin então aparece.
— Ora, ora, ora — ela tamborila os dedos uns nos outros em bate-bate. — Temos aqui em Jardines um agente profissional da mais alta qualidade, um tipo tão profissional que chegou à Cúpula Fantasia tão rápido sem eu nem me dar conta — ela aproxima a cara da tela, franzindo a testa em uma feição furiosa. — Escuta aqui, seu monte de merda! Eu construí Jardines para ser uma utopia onde a verdadeira pureza do mundo irá predominar, não para vocês depravadores saquearem a bel prazer como se fosse uma mina de ouro abandonada!
— Pureza?! — desembucho aos arquejos. — Chama esse inferno de paraíso?! Porra, tá cheio de criança morta aqui! Eu não tenho nada a ver com a tua loucura por este lugar! Eu só quero ir embora!
— Um depravador me desafiando?! — ela ri, jogando a cabeça para trás, batendo palmas. Volta a me fitar com um sorrisinho. — É muita audácia mesmo, não é?! Sim, você não tem nada a ver com este lugar e não deveria estar aqui. Agora, se eu te deixar ir embora, você com certeza irá botar a boca no trombone e anunciar para todos os depravadores da Terra a existência da minha Jardines. Depravadores vão fazer de tudo para chegar até aqui e tomar tudo para eles, inclusive a minha fórmula da juventude.
— Fórmula da juventude? — enrugo a testa.
— Ah, ainda não sabe sobre o adrenocromulum produzido pelos Malcriados? — ela percebe a minha expressão confusa. — Pois muito bem. Já que teve a coragem de me desafiar, acho que você merece saber algumas coisinhas. Sabe como Jardines foi construída? Drones! Um exército de drones altamente avançados capazes de construir qualquer coisa com somente a análise de um projeto de arquitetura. Como eu tive acesso a esse tipo de tecnologia? Aí é segredinho da tia Mederin, meu bem. Quanto ao adrenocromulum dos Malcriados, eu simplesmente descobri que, se você congelar uma criança instantaneamente um segundo antes de ela falecer, ela continuará produzindo adrenocromulum, só que, desta vez, TODO o seu sangue será adrenocromulum. Tudo que eu preciso fazer é enviar drones para ficar injetando soro neles regularmente para que não definhem e morram. Dessa forma, todas as crianças irão ingerir doses pequenas de adrenocromulum de trinta em trinta dias, pois esta é a cidade onde a criança para sempre será criança.
— Mas... — murmuro em perplexidade. — As crianças mortas...
— Sim, tem um monte de crianças mortas, eu já sei disso, porque eu sou a deusa criadora deste novo mundo! Sou onisciente, onipresente e onipotente! Os olhos, os ouvidos e o coração de Jardines! Eu sou tudo aquilo que você não pode superar neste lugar, porque eu SOU este lugar! EU sou o seu corpo e a sua alma, sua luz e suas trevas, seu Deus e o seu Diabo — junta as mãos para frente numa palmada. — Mas enfim, já que estamos um pouquinho mais íntimos, que tal brincarmos de pega-pega?! Hum?! — sobe as sobrancelhas, depois solta um risinho. — Ah, é mesmo, eu não vou poder, pois não estou fisicamente aí, o que é uma pena... Mas uma amiguinha da casa está louquinha pra brincar com você, sabia? — sorri maleficamente com os lábios rosados e finos. — E te matar com amor — a tela desliga como um quadrado se fechando dos dois lados e sumindo.
Ding ding ding! Ressoa um som de badalados. Põ põ põ põ põ! Passos alvoroçados estão vindo detrás da janela que acabei de vir. Eu fico paralisado, com a luz da lanterna apontada para a janela. Quando penso em correr para a porta dupla atrás de mim, eis que uma sombra prateada passa como vulto pela janela. BRIÁRRRC! Atravessa a porta numa quebradeira.
É a Irmã Garra do Trio Pátria Mundo. Seus cabelos azuis platinados são longos e lisos que nem no desenho, porém sua aparência não está apenas defasada como assustadoramente diabólica. Sua máscara facial possui um furo redondo onde fica a boca, como se houvera tomado um tiro nessa área. Em volta desse furo estão manchas de sangue ressecado. Seus olhos são negros e redondos, com um minúsculo pontinho vermelho brilhando no centro. Suas unhas são longas garras afiadas meladas de sangue fresco gotejando.
Um pavor me sacode da cabeça aos pés, e um bum de adrenalina incendeia as minhas veias. Dou um giro rápido e corro, sacudindo a luz da lanterna como num pisca-pisca. Bato a porta com o ombro e adentro uma sala vazia com uma mesa de ferro quadrangular, alguns armários abertos com vestidos com asas de fada e varinhas de condão. Contorno a mesa pelo seu lado direito e avanço na direção de uma porta mais a frente quase invisível nas sombras. À medida que me aproximo, a luz balançante da lanterna clareia a sua forma.
Olho para trás. Irmã Garra está como um borrão prateado se retorcendo freneticamente nas sombras, cada vez mais visível e monstruoso. Ela chega à mesa e a faz esvoaçar na parede num ruidoso POUN!
Arrombo a porta com um golpe de ombro, passando para o outro lado. Viro-me e empurro a porta para tentar atrasá-la, mas ela enfia o braço pela brecha e balança freneticamente na tentativa de me agarrar. Meu braço empurra a porta num bate-bate. Golpeio-a duas vezes com o joelho bornc bornc! BRÁR! A porta bate no meu nariz e eu volteio de uma dançada de pés. BRÁRRRRR! Ela destroça a porta e atravessa. Eu rodopio e corro a todo disparo. Salto por cima de um corpo, correndo praticamente às cegas, com a luz da lanterna chacoalhando loucamente em alvoroço. Meus pés escorregam em uma poça de sangue e eu quase desabo. Irmã Garra está a dois metros das minhas costas, com os cabelos voando como uma cortina ao vento.
Uma criança aparece e eu colido de frente, caindo abraçado em cima dela.
— NÃÃÃÃÃO — o garoto de pele negra se debate, socando o meu peito. — SAAAAAI!
Levanto-me numa louca sacudidela, saltando para frente num impulso de foguete. Olho para trás. Irmã Garra se atira em cima do garoto.
— Depravador neutralizado — enfia as garras nos seus olhos e começa um gira-gira. — Eliminar! Eliminar! Eliminar — sangue e órgãos rodopiam pelo chão e pelas paredes.
Corro pelo corredor e encontro uma porta aberta à esquerda. Invado e me vejo em uma sala bagunçada. Vejo um armário à esquerda e imediatamente corro para me esconder. Abro a porta, entro e fecho mais lentamente para não fazer ruído. Tic. Desligo a lanterna, ficando na completa escuridão. Deslizo as costas na parede fria até sentir o traseiro sentar no chão. Os passos de Irmã Garra percorrem o corredor em minha procura, correndo como uma maratonista põ põ põ põ põ! Meu coração fica a bater nesse mesmo ritmo, com os olhos esbugalhados ao extremo.
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