Encontro Com a Esperança
Após eu tomar banho e me arrumar para ir encontrar Jaqueline no Restaurante Serafina, parei diante do espelho do banheiro que fica acima da pia branca. Meu cabelo castanho estava molhado e bagunçado. Os primeiros sinais de olheiras estavam ganhando forma embaixo dos meus olhos, mas não suficiente para serem notados a primeira vista. Minhas roupas eram uma camisa branca de mangas curtas, uma calça jeans azul e um par de tênis cinzentos amarrados com cadarços brancos.
— É a sua última chance hoje — sussurrei para mim mesmo, com os olhos fixos nos olhos do meu reflexo. Respirei fundo. — Vamos lá, Gilson. Você pode fazer isso — levantei a mão para o teto do espelho e puxei um pente amarelo de cabelo. Fiz um penteado para trás, depois peguei um frasco de vidro quadrado com perfume de alfazema no interior e borrifei exageradamente pelo corpo. — Seja como o seu pai e o tio Ramalho ao mesmo tempo.
Retirei-me do banheiro e caminhei pela cozinha. Parei de andar ao olhar a porta para o quintal, logo eu me dirigi para lá a passos lentos, abri a porta e vi o quintal mergulhado em trevas e quietude. Desde que o meu pai desapareceu, Berimbau ficou deprimido. Mesmo eu colocando a ração no seu pote todos os dias, ele nem se movia para comer, não mais corria atrás das galinhas como sempre fazia todos os dias, e mesmo que quisesse não ia poder, pois eu havia vendido todas elas.
Berimbau morreu uma semana depois do desaparecimento do meu pai. Seu corpo até hoje apodrece dentro de sua casinha de madeira que fica no canto do muro ao fundo, caído de lado, com o corpo esquelético a beira da decomposição, acumulando mosquitos e exalando um fedor que beira o sufocante.
Fechei a porta, virei-me e me dirigi para a sala. Antes de me aproximar da saída, de repente o celular no meu bolso começou a vibrar tzun tzun. Puxei o celular e olhei para a tela, que exibia o nome de vovô Alberto. Fechei os olhos e respirei fundo. Apertei para atender e levei o celular para a orelha.
— Alô...?
— Ei, Gilson. Desculpa por te ligar assim, mas é que faz tempo que eu não falo mais com o Ramón. Tenho tanta coisa pra dizer a ele que tu nem imagina — ele soltou um riso bem-humorado. — Ele tá aí?
Fechei os olhos e abaixei a cabeça. Enfiei os lábios dentro da boca. Meu coração foi atacado por um aperto gélido que fez lágrimas subirem sem serem convidadas. Levantei a cabeça e senti uma lágrima escorrer pela minha bochecha. Funguei o nariz, dando uma ligeira tremulada nos lábios. É pelo bem dele... Não posso contar o que aconteceu...
— O papai, ele... — funguei o nariz outra vez. — Ele saiu com a mamãe... pra praia... dar um passeio...
— Eita que Ramón tá virando um peregrino mesmo, viu — vovô Alberto riu. — Tudo bem, então. Diz a ele que eu mandei abraços, e diz a Andreza pra fazer refeições bem nutritivas pra tua mente, porque vai precisar, viu?! Essa coisa de faculdade é pra endoidar qualquer macho alfa! E eu sei que tu é um macho alfa dos BRABOS!
Eu me forcei a rir daquilo.
— Vou falar sim — funguei o nariz de novo.
— O que é isso?! Tá gripado?!
— Errr... Tô... Tô sim — menti pela centésima vez. — Acabei pegando um resfriado...
— Olha aí, fica indo pra esses passeios, dá nisso! Se cuida aí, tá bom? Até mais!
— Até — abaixei o celular e, com o polegar, apertei para desligar. Levantei a mão livre e enxuguei a lágrima que escorreu. Ainda com o coração apertado, enfiei o celular no bolso, abri a porta e saí de casa. Era 19h00. As ruas estavam pouco movimentadas, e isso fez a caminhada ser bastante tranquila.
O Restaurante Serafina era um estabelecimento todo pintado de branco. Sua frente continha altas vidraças onde se podia ver os clientes sentados em volta das mesas, batendo talheres e dialogando, e os garçons indo e vindo com bandejas metálicas levantadas na altura dos ombros. A entrada era uma porta dupla de vidro com contornos de madeira lisa. Bem acima da entrada, uma placa retangular de bronze se destacava com o nome Restaurante Serafina em luz de neon branco.
Jaqueline estava escorada ao lado do poste de luz, em cima da calçada cinzenta, bem de frente ao restaurante. Ela vestia uma blusa branca de alças finas que deixavam os ombros praticamente nus. Na parte de baixo vestia um short curto azul-claro, e nos pés usava um par de tênis brancos amarrados com cadarços pretos.
Na calçada do outro lado, eu sorri com os lábios ao ver que ela realmente estava lá. Respirei bem fundo, então, ao ver que nenhum carro estava trafegando na estrada, atravessei numa caminhada tranquila, dando uma elevada na postura com o intuito de mostrar alta confiança.
Ela notou minha aproximação.
— Oh, rapaz, tá meio atrasado, hein — ela riu em brincadeira. — Tá pronto pra ouvir uma história beeeeeem doida?!
— Eu tô sempre pronto pra ouvir uma doidice — parei a um metro dela, sorrindo, com o coração martelando forte no peito. — Era algo que envolvia a sua avó, não era?
Ela abaixou a mão com o celular, fitando-me.
— Dona Daniela Ferraz Clemente, uma senhora de idade que gostava muito de mexer com coisas espirituais. Você sabe, macumba, voodoo, rituais altamente capirotescos e tudo mais. Era certo que uma hora ela ia se ferrar mexendo com essas coisas, mas no final o resultado foi tipo... Uau... Bem doido mesmo, sabe...
— Rituais altamente capirotescos? — perguntei aos risos. — Parece que isso vai ser mais interessante do que pensei.
— Mas a história não envolve nenhum ritual, se é isso que você quer saber — ela guardou o celular no bolso, em seguida sacou uma carteira vermelha de cigarro da marca Mata-pulmão. Ela puxou um maço, levou para a boca, levantou um isqueiro com a outra mão e acendeu.
Olhei para isso um pouco sem jeito.
— Você fuma? — apontei o dedo para o cigarro.
— Fumo sim, e daí?! Sou adulta, pô!
— Mas você fuma desde quando?
— Desde os dezesseis anos. Minha mãe reclamou da primeira vez, mas como eu sabia que ela não tinha coragem de me bater ou de me dar castigo, continuei. Minha mãe é idiota, do tipo que diz que vai me bater, que vai fazer isso, vai fazer aquilo, mas no final não faz porra nenhuma — soprou fumaça para cima. — Mas enfim, começando com a história, foi o seguinte: a minha avó, dona Daniela, durante uma noite, exatamente há esta mesma hora, teve um pire-paque. Isso foi, tipo, do nada, tá ligado?! Caiu no chão e não se levantou mais. Aí levaram ela pro hospital e lá tava dando que ela tinha morrido. Tu sabe, aquelas máquinas que medem os batimentos cardíacos da pessoa e quando morre fica, tipo, piiiiiiiiii.
— Sei, sei...
— Só que, alguns minutos depois, a minha avó abriu os olhos... DO NADA! Obviamente todo mundo deu um grito de susto. A enfermeira, coitada, desmaiou e teve que ser socorrida. Meu coração quase voou da boca na hora. Tipo, foi muito louco, tá ligado?! Mas o mais bizarro daquilo tudo é que a máquina ainda ficava apitando, indicando que o coração dela não tava mais batendo, mas mesmo assim ela contou tudinho que viu enquanto tava morta! Meu amigo, o que ela contou me arrepiou TODA!
— O que foi que ela viu? — indaguei, com as sobrancelhas içadas de curiosidade.
— Primeiro ela disse que viu um montão de crianças sendo torturadas em cima do que parecia ser um altar de igreja. Era um lugar bem escuro e cheio de gente encapuzada. Tipo um culto, tá ligado? Aí, esses encapuzados começaram a torturar essas crianças de diversas formas, com facas, bisturis, ferro quente e outras ferramentas doidas lá. O choro e o grito dessas crianças eram tão altos que a minha avó disse que tentou parar tudo aquilo, mas aí apareceu ele...
— Ele quem?
— O próprio Diabo!
— Minha nossa!
— O Diabo disse pra ela assim: "Não, não. Essas crianças são minhas. Meus servos ficam com o sangue e eu fico com as almas". Cara, foi tanta coisa que ela falou que tu num faz ideia. Ela ficou, tipo, a noite inteira relatando tudo que viu, e eu tava lá, com os olhos arregalados, ouvindo tudinho.
— Caramba. Essa história é mais interessante do que pensei que seria.
— E ela é longa pra caralho, portanto o que acha de me convidar pra entrar, hein, senhor Gilson Fernandes de Melo? Não vai deixar uma dama padecendo aqui no frio das ruas de Recife, vai?
— Vamos lá, então.
Tomamos assento na mesa mais próxima da saída, um de frente para o outro. Pedimos um copo alto de suco, o meu sendo de laranja e o dela de acerola.
Ela continuou a história:
— Aí, ela perguntou ao Diabo assim: "Por que estão torturando essas pobres crianças?" O Diabo respondeu: "Eles estão acalorando os seus sangues da mesma forma como vocês fervem água em um caldeirão usando fogo. Eles estão criando o elixir que lhes proporciona a vida eterna... Adrenocromulum".
— Caramba, que sinistro...
Ela chupou um pouco do suco pelo canudo antes de prosseguir.
— Aí, a minha avó contou que ela viu os homens e mulheres mais poderosos do mundo bebendo esse adrenocromulum através de ampolas. Ela disse o nome de cada um deles. Frank Denverwood, Marla Gabrani, Alexia Mederin, Andrey Kurganov, Darko Leplur, Julius Brennenberg, enfim, só os caras mais ricaços, tá ligado? O Diabo disse que aqueles eram os verdadeiros donos do mundo, também conhecido como os Mundialistas, Nova Ordem Mundial e outros nomes aí. Foi depois disso que a minha avó despertou e começou a contar tudo. Agora, tipo, eu tô contando uma versão muuuuuito resumida, tá ligado? Se eu contar em detalhes, a gente fica o dia, a tarde e a noite só falando disso.
— Acho que vou querer ouvir essa história completa um dia — falei rindo. — Mas então... O que aconteceu com a sua avó depois desse relato? — voltei a chupar o suco pelo canudo.
— Ela morreu.
Engasguei-me e dei uma tossida.
— Morreu?! Como assim?! Ela morreu assim que terminou de falar?!
— Exatamente. Ela, do nada, teve outro pire-paque e morreu.
— Caramba, que doido!
— Mas ei, vamos falar de uma coisa animada agora? Sabia que o Aderaldo vai fazer uma festa numa fazenda do pai dele aqui perto da cidade?
— Sério? Você vai?
— Claro! E eu lá perco uma chance de comer de graça?! Agora eu posso acabar repensando se tu por acaso não for comigo — olhou o suco e girou o canudo com os dedos de unhas postiças vermelhas. Ergueu os olhos azuis para mim. — O que acha? Topa me acompanhar nessa festa?
Meus olhos se dilataram e meus batimentos cardíacos voltaram a acelerar. Aquela era a chance que eu estava procurando de me aproximar dela. Por nada nesse mundo eu poderia recusar aquilo, então era óbvio que a minha resposta não poderia ter sido outra.
— Vou, eu vou sim — balancei a cabeça num treme-treme, sorrindo. — Quando é que vai ser?
— Daqui a três dias. É bom tu arranjar um carro, porque a estrada pra lá é meio longa, e eu não sou doida de andar no meio do mato sozinha, ainda mais durante a noite... Tu tem um carro pra me levar, não tem?
Engoli a seco, abri a boca e fechei, logo a abri outra vez.
— T-tenho... Tenho sim — voltei a balançar a cabeça nervosamente. — Eu deixei ele em casa por que eu moro perto daqui também...
— Tá marcado, então. Daqui a três dias. Vou ficar de esperando, hein. Não vai vacilar comigo!
— Claro que não — desviei o olhar para a saída do restaurante, começando a suar pela testa, com a respiração falhando de leve. Obviamente eu estava mentindo para ela. Eu não tinha nenhum carro, apesar de que aprendi a dirigir com o meu pai anos atrás, mas o mesmo deu o carro para o vovô Alberto que agora tá morando na cidade de Surubim, e eu não ia fazer o velho viajar horas para Recife apenas para me emprestar o carro por uma noite.
Se eu não arranjasse um carro em três dias, Jaqueline possivelmente me odiaria para todo o sempre. Felizmente, eu tinha um contato que poderia me ajudar nesse caso, e não seria de forma legal. Eu não podia deixar uma chance daquela escapar. Eu tinha que arranjar um carro nem que fosse uma lata-velha caindo aos pedaços.
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