Choro dos Malcriados II
Aproximo-me um pouco do sofá, arquejando feito louco que quase morreu afogado. No chão a sua volta estão crianças congeladas, caídas numa posição que dá a entender que estavam fugindo de alguma coisa. Na TV frente ao sofá está passando um episódio do desenho Sociedade Solar. Está sem som, mas a imagem segue correndo normalmente na tela. Os planetas falantes dialogam entre si fazendo expressões bizarras e engraçadas, mostrando a língua e arregalando os olhos.
Tchórrrrrr! O fone volta a chiar. Ou é a voz misteriosa para me dar novas instruções ou... uma lembrança... Não sei o que é. São como fantasmas reproduzindo o passado. Desde a infância eu nunca acreditei em espíritos, e nunca pensei que voltaria a me questionar sobre isso de novo. Estou mesmo ouvindo espíritos? Espíritos em outro planeta?
Ouço risos de crianças se divertindo em meio a um ruído de estática.
— Esse episódio é um dos meus prediletos — diz uma garota. — Eu amo a Sociedade Solar!
— Eu também! Não consigo parar de assistir — diz um garoto. — Meu planeta favorito é o Júpiter, e o de vocês?
— O meu é o Mercúrio — diz a mesma garota. — Ele é tão fofinho!
— Dá pra vocês calarem a maldita boca?! — fala um garoto de voz rouca. — Vai começar a melhor parte e vocês não param de ficar falando! Eu não instalei essa TV escondido aqui pra vocês ficarem de bate-boca! Deu um trabalhão danado colocar tudo no lugar!
— Você também não para de ficar reclamando, né, Maurinho?! É só isso que sabe fazer!
— Eu já disse que não gosto que me chamem de Maurinho — fala Maurinho num tom irritado. — É pra me chamar de Mauro!
— Maurinho! Maurinho — canta a garotinha. — O nome dele é Maurinho! Maurinho!
— Você também adora fazer confusão, Vivi — fala outro garoto. — Olha, eles vão começar o julgamento de Saturno!
— Saturno é inocente — brada Vivi.
— Não, ele é culpado — brada um garoto.
— Inocente!
— Culpado!
— Inocente!
— Culpado!
— É inocente e acabou!
— É culpado, culpado, culpado e acabou!
— Oh, gente — chama outro garotinho com voz de mais novinho. —, vocês não tão sentindo frio, não?
— Dá pra calar essa boca?! — rosna Maurinho. — Eu sabia que não devia ter chamado vocês aqui! Devia ter assistido sozinho!
— Assistir sozinho é chato — resmunga Vivi.
— Num é não! É mais legal!
— NUM É NÃO!
— É SIM! E SE EU DIGO QUE É SIM É PORQUE É SIM E ACABOU!
— Não, assistir sozinho é muito...
— É SIM E ACABOU — soa um barulho de soco.
— Ai, meu nariz! Mérrééééé — Vivi desata a chorar. — MÉÉÉÉÉÉÉ!
— Bem feito! Isso é pra aprender a não me contrariar!
— CALA A BOCA!
— É O QUE?! — tapas e socos são desferidos.
— AINNNNNN — Vivi grita de dor. — MEU NARIZINHOOOOOO!
— Se falar assim comigo de novo eu quebro o resto da tua cara!
— Ei, parem de gritar! Não dá nem pra assistir o desenho!
— Meu nariz tá sangrando — Vivi funga o nariz, soluçando e soltando alguns gemidos de choro. — Tá doendo...
— E vai doer mais ainda se não ficar calada!
— Mas tá doendo...
— CALA A BOCA!
— MAS TÁ DOEN... — seu grito é interrompido por um soco. — AI, MINHA BOCAAAAAA! ARRÁ RRÁÁÁÁÁÁÁÁ!
— EU TÔ FALANDO SÉRIO! CALA A BOCA AÍ SENÃO EU QUEBRO A TUA CARA DE VERDADE!
— Oh, gente, tá fazendo um friozinho danado aqui — fala um garoto. — Será que os espíritos do gelo tão andando por aqui?!
— Para com isso — diz Vivi, fungando. — Eu tenho medo...
— Medrosa! Medrosa — zomba um dos garotos que não revelaram o nome. — Meninas são medrosas!
— Para com isso!
— Medrosa! Medrosa! Vivi é uma medrosa!
— PARAAAAAAAA!
— Será que vocês não podem simplesmente assistir o desenho?! Já tão me dando dor de cabeça — reclama Mauro. — Se continuar assim, vou desligar a televisão e aí ninguém vai assistir mais nada aqui!
— Ah... Ah... ATCHIM — alguém espirra.
— Pronto, agora o Carlinhos vai ficar resfriado! Acabou nossa diversão!
— Gente, tá fazendo muito frio aqui — diz Vivi com a voz fininha. — Gente, eu tô com medo... GENTE!
— Tá bom, Vivi, a gente já entendeu! Deixa de ser chata!
— Meninas como sempre são tão medrosas...
— Mentira! Tia Mederin é menina e é muito corajosa! Mais corajosa que todos os meninos de Jardines! Mais corajosa do que vocês!
— Claro, porque ela é a adulta mais poderosa de todas!
— Já chega — esbraveja Maurinho. — Não dá pra assistir nada com vocês aqui! Eu vou desligar!
— Atchim!
— É melhor a gente ir embora mesmo. Tá fazendo muito frio aqui...
— Ah, não, eu quero assistir — grita com birra o menino mais novo. — Eu quero assistir! Eu quero assistir! EU QUERO ASSISTIRRRRRR!
— Ai, minha nossa senhora do chá de camomila, dai-me paciência pra aguentar esses abestados...
— Vamos embora daqui, eu tô congelando!
— NÃO! EU NÃO QUERO IR! EU QUERO ASSISTIR SOCIEDADE SOLAR!
— Mas a gente tem que ir, senão a gente vai pegar um resfriad...
VRORNNNNNNN! Revoa no ar um eco de trombeta. VRORNNNNNNN!
— O que será isso?!
— Tá vindo lá de cima!
VRORNNNNNNN!
— Nossa, olha — grita Maurinho. — A parede tá ficando azul!
VRORNNNNNNN!
— Uau... Tá tudo congelando...
VRORNNNNNNN!
— Olha aí, eu não falei que os espíritos do gelo existiam?!
— Caramba, eles existem mesmo!
— E agora, o que a gente faz?!
— Nossa, ficou tudo tão escuro agora...
— Atchim!
— É melhor a gente ir embora daqui, então...
Bum! Ressoa um estrondo de porta.
— MÃÃÃÃÃÃÃÃ!
— O que é isso?!
— É UM MALCRIADO!
— COOOOOORRE!
Todas as crianças iniciam uma gritaria generalizada.
— MÃÃÃÃÃÃÃÃ!
— NÃÃÃÃO! SOCORROOOOO — Vivi grita com toda a força do gogó. — AAAAAAAAAH!
— MÃÃÃÃÃÃÃÃ!
Tchórrrrrr! Passam-se alguns segundos de estática. Tudo silencia de súbito. Fixo os meus olhos no sofá. A parede tá ficando azul... Talvez tenha sido Mederin quem deixou este lugar neste estado de congelamento, mas como diabos ela fez isso? Quando um daqueles manequins me agarrou, senti como se estivesse sugando o calor do meu corpo, como se isso o alimentasse... Por acaso eles são capazes de matar alguém de hipotermia só com o contato dos seus corpos? Foi isso que congelou essas crianças?
Na parede atrás do sofá está uma porta. É para lá que devo ir, mas... quantos mais desses manequins estão deambulando por aqui? Não tenho opção a não ser encará-los novamente.
— Senhor Gilson, está na escuta?! — fala a voz distorcida no fone. — Senhor Gilson, o senhor está bem?! Por que está demorando tanto para responder?! Senhor Gilson, responda!
— Sim, sim, estou na escuta!
— Ai, graças a Deus! Por um instante eu pensei que tinha acontecido o pior — ele suspira em alívio. — Ouça bem o que vou dizer, pois não irei repetir. O túnel secreto vai estar atrás de uma estátua de Alexia Mederin onde ela está segurando a mão de duas crianças. Trata-se de um piso falso. Não será difícil de encontrar, pois ele é a única parte que não está congelada. Tudo que o senhor precisa fazer é puxar por uma rachadura, descer as escadas de mão, colocar a máscara de ar que vai estar no final e seguir reto pelo túnel. Dali o senhor irá direto para a Cúpula Fantasia.
— Espera! Antes de ir, me responde uma coisa!
— Seja breve, por favor.
— O que são os Malcriados?!
Seu silêncio dura poucos segundos.
— Os Malcriados são... Como posso explicar... — outro silêncio breve. — Eles são crianças que fizeram coisas... ruins... dentro da cidade. Matar, estuprar, torturar, e outras crueldades que crianças fazem quando não são supervisionadas por adultos. Essas crianças eram capturadas por Mederin para se transformar no que aqui são chamados de Malcriados. Fazendo um breve resumo: essas crianças capturadas eram torturadas e aterrorizadas ao extremo para a extração do adrenocromulum, a substância que evita de as crianças envelhecerem na cidade. Quando ficam a um fio de morrer, os Malcriados são colocados em um estado de semi criogenia, ou seja, eles são congelados, mas não ao ponto de ficarem estáticos. Então eles são enfiados dentro de trajes semelhantes a manequins de loja de roupa, sofrendo vinte e quatro por dia o mesmo terror da quase-morte, com adrenocromulum correndo em suas veias... Isso é suficiente resposta para o senhor?
Perplexo, não evito em expressar um sentimento profundo de enojo. Então murmuro através de um suspiro:
— Isso é doentio...
— Essa é só mais uma razão do por que Alexia Mederin precisa ser detida... Quando o senhor chegar à Cúpula Fantasia, entrarei em contato... Boa sorte — a ligação finaliza. Aponto a lanterna para a porta atrás do sofá. Respiro fundo, engolindo a saliva que desce como pingos gelados pela minha garganta. Quantas dessas coisas estão aqui? Meus olhos espavoridos começam a molhar. Será que eu consigo?
BRÓRRRRRC! Eu rodopio de susto em um terremoto.
— Depravador detectado — Fortitude derruba a parede congelada com seu tamanho de muralha ambulante. — Eliminando — anda passos rápidos na minha direção. Eu me viro de um rodeio e corro, batendo com o ombro na porta e passando para o outro lado. Mais uma vez eu me encontro em um labirinto de barracas.
— UÁRRRRRRRRR!
— MÉRRÉÉÉÉÉÉ!
Dúzias de Malcriados saltam de cima das barracas para o chão, começando a me perseguir numa correria generalizada. Olho para trás, apontando a luz da lanterna. Dois deles escondem o rosto e recuam aos guinchos. Atrás deles, Coronel Fortitude está caminhando a passos largos, e estaria camuflado na escuridão se não fosse os olhos vermelhos brilhando.
— NHÁRRRRR — meu braço direito é agarrado pelas mãos gélidas de um Malcriado, que intenta me puxar em frenéticas sacudidelas. — UÉRRRRRRR!
Esmurro seu rosto de manequim, mas tudo que ele faz é virar a cabeça, rodando-a em loucas sacudidelas laterais. Forço-me a correr para frente, sentindo o frio congelante penetrando minhas veias, deixando os meus dedos dormentes. Num último esforço, eu corro com tudo e o Malcriado me larga.
Um deles aparece no meio do caminho, correndo retamente para colidir o com meu peito. Dou uma escorregada para a direita e disparo, mas encontro mais um deles correndo. Ele salta contra mim e me abraça como uma mãe cheia de saudades. Meu coração é mergulhado numa friagem que causa dor de agulhada a cada pulsação. Giro a mão direita e lhe golpeio a bochecha com a lanterna. A criatura cai e me liberta.
Atrás de mim, três Malcriados correm loucamente para me agarrar. À minha direita, Coronel Fortitude caminha passos longos e intensos, e a minha frente vêm mais dois Malcriados que deslizam das barracas para o chão. Eu então corro para a esquerda.
— Objetivo atual — ecoa Fortitude. — Eliminar depravadores!
Viro outro caminho para a esquerda. Bato o pé em algo.
— Ah — tropeço e caio de frente.
— NHIÉRRRRRR — um peso gelado cai sobre minhas costas, envolvendo os braços no meu pescoço. — MOÁRRRRRR!
Giro para um lado, para o outro, para o lado de novo e assim consigo deixá-lo com as costas no chão. Levanto-me e corro, dando frequentes reclinadas, com as pernas fraquejando em dores musculares. Faço uma curva para a direita. Olho para os lados, apontando a lanterna. Os Malcriados que correm por cima das barracas são espantados pela luz, com alguns caindo para trás com as mãos no rosto, debatendo-se e gritando em agonia. Aponto a lanterna para cima. Um Malcriado grita e cai do lustre, colidindo com o chão ao meu lado, debatendo-se.
Eis que encontro uma estátua congelada de Alexia Mederin, a mesma que a voz me descreveu, onde ela está segurando as mãos de duas crianças, ambas com grandes sorrisos de dentes. Contorno a estátua pelo lado direito, chegando rapidamente a sua parte de trás, onde vejo o piso falso que a voz falou: um paralelepípedo de cor vermelha com uma rachadura na borda superior.
Rapidamente enfio os dedos na rachadura e puxo, abrindo como a entrada de um porão, revelando uma escada de mão improvisada em cordas para descer.
— MÃÃÃÃÃÃÃ — um grupo de Malcriados contorna a estátua numa correria tumultuada, com as mãos balançando para frente, abrindo e fechando os dedos, e as cabeças dando giros tão frenéticos que parecem possuídos pelo próprio Satanás.
Eu me agito e coloco os pés para descer as escadas.
— RROÁRRRRRR — dois Malcriados agarram cada braço meu e puxam numa desesperação moribunda. Sacudo os braços na tentativa de puxá-los de volta para mim, tentando contorcer o corpo, mas não está adiantando, eles continuam a puxar e puxar e puxar. Para piorar, mais deles estão correndo para cá para terminar de me cercar, saltando de lustres congelados, de barracas e de algumas estátuas distantes.
Mas então balanço os pés e meu corpo cai buraco abaixo.
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