Capítulo 17
A madrugada não estava sendo agradável. Já se passava de meia noite, e a minha mente não conseguia mergulhar no cansaço que pesava nos meus músculos. Eu bufava, virava e revirava na cama, até os meus batimentos estavam me deixando inquietas. Tudo estava acelerado e se resumia a condição de saúde da minha mãe. O câncer dela estava em estágio dois, mas saber que existem dois tipos de câncer, um mais leve e outro mais agressivo me deixou alarmada. Eu só conseguia implorar aos céus que não fosse um câncer tão nocivo, e que ela passasse por tudo isso e vivesse bem, depois do tratamento.
O sono me abandonou, e de repente o teto girou. O quarto se tornou pequeno demais para mim. Livrei-me dos lençóis e sentei abruptamente à beira da cama, arquejando enquanto tentava levar oxigenação ao cérebro. Quando a sensação amenizou, abri a porta que levava para a sacada, mas não pareceu suficiente. Eu precisava descarregar o estresse e tomar ar fresco antes de dormir, e só tinha um jeito de resolver isso. Vesti uma calça de lycra preta, e passei o primeiro blusão que vi pela frente, um preto com estampa do escudo de superman. Amarrei os cadarços do tênis e peguei o casaco cinza de moletom.
Na orla da lagoa, parei para tomar fôlego, curvando o corpo para frente e apoiando os braços nas coxas. Os meus cabelos correram do capuz e se espalharam do rabo de cavalo pela testa. Uma boa camada de suor se formava sobre a minha pele. Não estava calor, mas eu estava ofegante com as meia hora de corrida sucessiva, e agora caminhava num ritmo bem lento, sentindo a brisa fresca da noite afagar a minha pele.
O vento levou o capuz da cabeça, e os meus cabelos esvoaçavam-se para trás, acompanhando a corrente de ar. Levei as mãos aos bolsos do casaco e fechei os olhos, deixando que isso reduzisse o tráfego de informação que eu processava.
Eu andava em linha reta e não via o que estava acontecendo ao redor, mas senti um grande baque no meu ombro quando alguém colidiu em mim. Abri os olhos de súbito.
— Vai com cuidado, Power Girl. — O sujeito disse, fazendo uma referencia a minha camisa de super herói.
Ele era bem mais alto do que eu, e precisei erguer a cabeça para fita-lo e de relance, só deu tempo de receber outro impacto, dessa vez, psicológico. A sensação de friagem irrompeu no meu baixo ventre. Tentei olhar antes que ele voltasse a andar, mas a dúvida perdurou na minha mente, porque me deu as costas e seguiu pelo caminho oposto.
Talvez eu estivesse vendo coisas. Pensei, mas não poderia acreditar. Olhei para trás, virando na direção contrária. Eu não podia conviver com isso. Era ou não era o Thomas, porque se não fosse, com certeza era parecido demais, ou eu estava ficando maluca.
— Me desculpe — disparei contra as costas dele, esperando que o volume que tivesse usado fosse suficiente para atingir seus tímpanos.
O homem se virou logo depois e gesticulou com as mãos, parecendo dispensar as minhas desculpas com um sorriso amigável.
Ele era parecido, alto, magro, cabelos escuros, olhos claros, pele branca, mas não dava para confundir com Thomas e isso me ficar paranoica ao tomar o caminho de volta para casa.
***
A melhor — mas nem sempre tão boa — parte de trabalhar praticamente de frente para o elevador da diretoria é que você consegue ver quem entra e quem sai. Mas eu não era o tipo "fofoqueira" e muito menos fazia questão de me inteirar disso. Contudo, no momento em que a porta de aço escovado se abriu e eu me deparei com a figura da Verônica saindo de lá com uma expressão nada amigável, desejei me esconder por saber que ela estava vindo como uma bala na minha direção.
Os cabelos compridos estavam soltos, as pontas estavam mais encaracoladas que o habitual e esvoaçavam-se com a velocidade em que seus pés, calçados por botas de canos que iam até o meio da coxa, desempenhavam até mim. A mulher usava um vestido preto, justo no busto e solto da cintura para baixo.
Verônica tinha traços bonitos; sobrancelhas arredondadas e bem-feitas, no tom dos cabelos. Lábios fartos compunham uma boca larga. Os dentes eram brilhantes e muito bem alinhados, mas fazia um tempo que ninguém os via, porque ela não sorria. Os olhos azuis eram praticamente cinzas de tão claros e eram capazes de fulminar qualquer um, e agora estavam direcionados a mim.
Ela franziu as pálpebras e comprimiu os lábios, levando as mãos juntas sobre a mesa, as unhas cor de vinho destacando-se em meio a pele branca.
— Eu queria saber o que foi que aconteceu para você ter me deixar na mão ontem... — foi a primeira coisa que ela disse.
A minha garganta se apertou, porque sua voz não passava de uma melodia macia, mas eu podia sentir que ela estava fumigando de raiva por dentro e não podia elevar o tom de voz, pois a sala do dono estava a poucos metros dali.
Obrigada, Thomas!
— Eu-eu... — tive dificuldade para falar e ela arqueou a sobrancelha para mim, incitando-me a prosseguir com a fala, e eu empurrei os óculos para mais perto dos olhos. — Eu não sei, Verônica. O novo Editor não deveria estar trabalhando nisso?
— Mas eu passei para você. — Ela queria gritar, mas apenas sussurrou acusatoriamente, apontando o dedo indicador para mim ao se inclinar sobre o balcão.
Os olhos grandes e arregalados para mim estavam relanceando raiva, mas isso não me fez encolher na cadeira.
— Você mandou dividir as tarefas. — Argumentei. — Foi o que eu fiz. A minha parte está no seu e-mail.
— Droga! — ela deixou a mão cair num tapa contra a madeira, e puxou da bolsa, que mais parecia uma pasta bege, o telefone. Os dedos cutucaram a tela algumas vezes. Os olhos rolando de um lado para o outro nas órbitas e o rosto dela foi se deformando, enquanto vincos expressivos se formavam entre as sobrancelhas. A boca dela se abriu algumas vezes, mas ela não conseguiu pronunciar nada além de resmungos engasgados. Ela parecia meio descrente, meio indignada e levou as mãos aos lábios.
— Oh, meu Deus! — Murmurou, uma mão com o celular sobre o tampo da minha mesa e a outra na têmpora.
— O que foi? — Eu perguntei, angustiada ao vivencia a aflição dela.
— Não sei, Nina — confessou, meio atordoada, abanando o rosto com a mão. — Eu preciso sentar. — Notificou, e eu me aturdi em levantar no momento seguinte, arrastando a cadeira de rodinha para o outro lado da mesa, e ela se sentou assim que posicionei o acento atrás dela.
Verônica continuou a se abanar e estendeu o aparelho na minha direção. A tela ainda acesa, aberta em um corpo de e-mail.
Eu quis rir depois de levar alguns segundos para ler o primeiro parágrafo.
— Você vai publicar? — precisei cobrir os lábios para que ela não me visse rir.
— Se a gente fosse uma revista financeira com sentimentos — ela revirou os olhos ao dar de ombros — não seria um problema.
Suspirou e devolvi o telefone.
— Você precisa escrever, Nina. Os seus textos são maravilhosos e o público te recebe muito bem.
— O público TE receber muito bem, Verônica. — Corrigi, encarando, depois de muito tempo, a mulher que desesperadamente precisava de ajuda.
Ela balançou a cabeça. É óbvio que ela não falaria sobre o assunto.
— Ok. Mas você vai continuar escrevendo para mim, não vai?
— Deixe o Fred tentar — disse, tentando não concordar com a proposta. — Eu vou ajudá-lo com tudo.
Ela assentiu que sim com a cabeça.
— Mas faça a parte que falta para fechar o mês. Hoje já é dia vinte, eu preciso mandar pra produção.
Engoli a seco e pensei em recusar a ordem, mas Verônica está num cargo muito mais alto que antes, então simplesmente respondi com um aceno hesitante de cabeça.
— Thomas. — O rosto da Verônica empalideceu e eu me virei para a porta da sala dele, deparando-me com a figura engravatada. Os cabelos arrumados num topete natural que refletia a luz do ambiente. As mãos estavam enfiadas nos bolsos, os olhos fixos em mim enquanto me interrogava silenciosamente. — Você estava aí... — ela parecia receosa mesmo tentando soar natural.
— O que está acontecendo? — Ele perguntou, quebrando a distância ao colocar a mão sobre a mesa.
Eu engoli a seco e a Verônica ergueu o dedo, jogando o para trás.
— Bom dia. — Ela abriu um sorriso forçado para Thomas, e ele retribuiu a cordialidade com um gesto de cabeça. — Eu tive uma queda de pressão e não estou me sentindo bem. — ele arqueou as sobrancelhas em resposta, aparentemente ainda não muito convencido sobre a justificativa dela. — Estou passando algumas coisas para a Nina e vou cuidar de tudo da minha casa.
Thomas balançou a cabeça concordando num gesto lento, lançando um olhar cético de Verônica para mim.
— Nina, qualquer coisa, me liga — disse, empurrando o corpo para fora da cadeira. — Bem, eu preciso ir. — Verônica, chamou o elevador e não tardou para que desaparecesse quando a porta fechou.
Fitei Thomas interrogativamente, enquanto ele me encarava com as mãos nos bolsos.
— Bom dia para você também — ele me alfinetou antes de se virar para a porta da sua sala — Nina. — O meu nome soou rouco demais na garganta dele, e eu odiei por achar a pronúncia bonita e até excitante. Então, o encarei com os olhos estreitos, antes que ele me desse às costas e voltasse para a sua sala.
Não levou mais do que cinco minutos para Thomas abrisse uma fresta na porta e colocasse a cabeça ali.
— Tem como trazer um café para mim?
Ergui o olhar por cima do ombro. Eu não me importava em pegar café para ninguém, mas para ele? Só podia ser uma piada. Bufei com a ironia e sacolejei a cabeça com descrença, encarando-o enquanto ele permanecia ali, com cara de paisagem que deixava evidente que ele realmente queria que eu pegasse o café.
O meu olhar oscilou entre a última palavra escrita. Eu não tinha terminado o período e obviamente havia perdido toda a linha de raciocínio.
— Ok. — respondi num suspiro quase irritado, arrastando os braços para fora da mesa.
Eu não tinha perguntado a forma como o cretino gostava do café, mas que se dane. Colocaria bastante açúcar. Quem sabe assim ele me deixasse trabalhar em paz.
100 mL de café num copo de isopor e seis colheres de chá de açúcar depois, segui de volta, deixando o pedido sobre a mesa dele.
— De nada, Sr. Roriz. — Provoquei-o, forçando uma voz doce quando percebi que nem um obrigado receberia dele.
Voltei para o meu computador e remontei toda a linha de raciocínio, mas Thomas se levantou da mesa dele e caminhou até a minha pisando duro.
— Eu te pedi café. — Ele pisou com raiva no suspensor da tampa da minha lixeira, abrindo-a. — O que você colocou aqui dentro? — Ele começou a despejar todo o líquido dentro da lixeira. — Lama e açúcar? Em algum momento você pensou em me perguntar se eu bebia café doce?
Thomas estava vermelho. As veias nas suas têmporas estavam sobressaltadas. Ele estava, no sentido mais literal da coisa, cuspindo marimbondo, mas isso não me amedrontou.
O que ele estava pensando? Eu parei todo o meu trabalho para lhe fez um favor e ele ao menos pensou em me agradecer por isso, e agora entorna tudo na minha lixeira.
— Qual é o seu problema? — esbravejei, levantando-me de repente, quando ele jogou o copo ali dentro também.
— A falta de um café decente. — Ele abriu um sorriso dissimulado e simplesmente deu de ombros.
***
Mais tarde, no final do dia, a porta do elevador se abriu e eu me surpreendi ao encontrar Augusto mexendo no telefone de um lado, e do outro, Fernanda de braços cruzados, a maior parte do peso do corpo concentrado na perna direita e uma grande carranca formada.
Os cabelos estavam soltos e ela vestia um quimono preto que ia até a altura dos joelhos, com mangas fofas até os punhos, uma blusa lisa preta justa de lycra com um decote que valorizava o colo por dentro de calça flear caramelo e de cintura alta que lhe cobria os pés. Ela estava de salto, porque a diferença de altura que existia entre eles não estava ali, apesar de eles estarem longe o bastante para gerar dúvida.
Augusto ergueu o olhar e guardou o telefone dentro do bolso da calça social, olhando para frente ao sair da caixa metálica. Fernanda revirou os olhos para as costas dele, antes de dar o primeiro passo, e saiu do elevador, caminhando na direção da minha mesa. Augusto passou direto, entrando na sala de Thomas e Fernanda parou diante da minha mesa.
— Babaca. — Ela soltou, num suspiro revoltado, sentando-se na beira da mesa.
— Tadinho, Fê! — Soltei, julgando seu comportamento.
Ela murmurou alguma coisa incompreensível e, contrariada soltou um ruído de garganta, virando o nariz para o outro lado. Ela sabia que estava sendo uma megera com ele, mas não daria o braço a torcer.
— Eu pedi para ele me deixar em paz, e agora ele está virando a cara para mim como se tivesse doze anos. Só porque eu não quero sair com ele? — ela bufou, parecendo realmente ofendida. — Quanta infantilidade.
— Não era isso o que você queria? — indaguei, fechando a tampa do notebook.
— Que ele me tratasse feito um cachorro leproso? — ela rebateu, como se conferisse o que eu estava falando. — Claro que não! Queria que ele parasse de encher o meu saco. Não que criasse todo esse climão.
— Por que você não fala disso com ele?
Fernanda cruzou as pernas e se ajeitou, erguendo mais o ombro ao jogar o cabelo para trás.
— Ele não fala comigo, eu também não vou falar com ele. — Concluiu brevemente.
— Então, minha amiga — suspirei, sem muitas alternativas, levantando-me da cadeira. — Supera — bati no ombro dela, forçando um sorriso amistoso.
— Eu não preciso superar nada, Nina. Eu estou muito bem e cuidando da minha própria vida, esse idiota que está indo longe demais com isso. — Ela apontou com desprezo para a porta do Thomas. — O que ele está esperando, que eu vá falar com ele? Ele que espere sentado.
— Você está sendo mimada, Fê. Isso só está deixando ele mais instigado.
— É por isso que eu estou cansada dessa situação — confessou num suspiro ruidoso. — Não dá pra misturar relacionamento amoroso com trabalho e eu fui muito, muito, muito burra quando deixei aquele canalha colocar as mãos em mim — ela apertou os olhos para demonstrar o quanto parecia sincera e ao na mesmo tempo aborrecida — Augusto é um babaca caprichoso e a cada dia que se passa, mais vejo que ele só quer me usar, Nina — ela parou para refletir por algum tempo — eu sei disso — ela me olhou fixamente antes de continuar. — O meu faro não me engana, e se você olhar com cuidado, vai ver estampado cara dele. Eu não vou permitir que ele faça comigo o que a minha mãe fez.
— E o que você vai fazer? — perguntei, caminhando ao lado dela para o elevador.
Ela deu de ombros, abrindo um sorriso maldoso.
— Eu quero ver até onde ele vai com isso... — A porta se fechou e nós começamos a descer para o térreo.
— Talvez você devesse ficar mais uma vez com ele, quem sabe acabe o encanto... — Brinque, dando de ombros ao pegar a minha bolsa e passar a alça pelo ombro.
— Nem pensar... — Fernanda descartou a possibilidade, ajeitando a alça da pasta no ombro.
— Quem brinca com fogo, acaba se queimando — disse, deixando uma segunda interpretação no ar.
Ela balançou a cabeça numa negativa contida.
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