Primeira Pétala (Os olhos mais doces que já vi)

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S O F I


Ainda é estranho encarar o seu rosto na TV.

Nem mesmo agora quando suas coisas estão embaladas e encaixotadas ao lado da minha cama e que reluto contra minha vontade de desviar meus olhos daquele amontoado de palavras sem significância e descobrir qual o motivo de sua felicidade, a TV permanece muda e vejo apenas fragmentos da sua luz clareando a sala naquela outra realidade, a que nunca fiz parte e que nunca me adaptei.

Algo em Jungkook mudou desde a última vez que nos vimos, talvez muito além do que eu consiga perceber enquanto o vejo de relance no canto da tela com todas essas luzes ao seu redor, mas sei que não se trata apenas de um corte de cabelo novo, uma cor diferente nos fios nunca experimentada antes e só consigo imaginar que seja essa a sensação natural de todas as coisas que se encerram de maneira abrupta, o sentimento estranho de que algo mudou e embora não consiga se sabe exatamente o quê.

Mas não quero olhá-lo assim, porque essa versão nunca foi minha e não tenho direito de pensar diferente, a distância que criei entre nossa vida e sua fama eram como linhas paralelas, realidades distintas demais para serem relacionadas. Gostava de pensar que o Jungkook teimoso, implicante e doce que tive acesso nos últimos anos, era uma nuance única e somente minha por direito, suas outras partes oferecidas mundo afora, pertenciam à paixões somente de outras pessoas.

São quase três da manhã e uma reprise das premiações de fim de ano segue sendo apresentada por algum motivo que não procuro entender, embora saiba que ele está na cidade, não sei porque continuo aqui, fingindo que sua presença do outro lado da tela não me incomoda e não me corrói em saudade. Gostaria ao menos de pensar que estava me esforçando para me adaptar a nova vida que não incluiriam suas voltas, embora não pudesse me distanciar tanto assim de sua presença na minha realidade. Não dessa vez. Suas vindas a Tóquio seriam constantes, mas seus retornos para os meus braços chegaram ao fim, em definitivo.

Alguém me disse uma vez que se leva metade do tempo de uma relação para superá-la, seriam setecentos e trinta dias até que ele se fosse por completo, mas queria incitar a desintoxicação precoce de meu organismo, me livrar de toda e qualquer parte que Jungkook amou. Enfiaria os dedos na garganta e o vomitaria do meu corpo, da minha alma, me livraria do cheiro da sua pele impregnado em minha memória olfativa, do seu gosto e do seu toque, até que tudo fosse desmaterializado e esquecido.

Durante o tempo do luto, ao menos, parei de fingir que as coisas estavam bem quando elas, de fato, não estavam. Os beijos, corpos e braços que tentei me adaptar de alguma forma pareciam lugares inóspitos para mim. Me colocava em modo silencioso por umas horas em alguma baladinha de Tóquio, mas era assombrada pela presença do amor quando retornava para casa. Via sua silhueta na sala como uma alucinação, perseguia o som dos seus passos inexistentes nas escadas, me revirava de um lado para o outro como se tivesse deixado um pedaço meu perdido em algum lugar inacessível. Demorava a pegar no sono, sem o seu calor me aconchegando no fim de um dia exaustivo, seu cheiro de banho recém-tomado, seu beijo de boa noite com gosto de hortelã.

Fechava os olhos e era atingida pelos flashes de memória em retrospecto, Jungkook e eu correndo por alguma rua vazia madrugada adentro, quase nunca completamente sóbrios, disfarçados como dois estranhos em um karaokê minúsculo de bairro, cantando canções com letras que nunca sabíamos de cór. Deitados no chão da sala, imaginando o futuro, a casa bonita pintada de amarelo, dois filhos, Berry e mais alguns bichinhos, e a calmaria de uma vida que dessa vez seria só nossa. Todos os eu-te-amos em sintonia como uma melodia composta pelas batidas de seu coração que ainda sinto como parte do meu.

Ele dirigindo meu carro pequeno, reclamando do ajuste do banco, rindo de como suas pernas nunca cabiam direito no espaço, me ouvindo implorar para que ele nunca fosse além do permitido: "Jinjja, noonim! Eu tô quase a vinte quilômetros por hora." Dizia.

De pé, ao lado da cama dobrando suas camisetas limpas como uma terapia de estica-passa-dobra-termina. Se impondo no meio uma briga fervorosa por um motivo estúpido que terminava com um pedido de desculpas, naquela própria frequência que criamos no mundo em que só nós dois existíamos. Dançando para mim no chuveiro pela manhã, me puxando para dentro da banheira ainda de pijama. Despertando no meio das madrugadas silenciosas para pedir amor, até ficar embriagado, exausto, tonto de tanto amar.

Contando e recontando suas pintinhas espalhadas pelo corpo, cartografando cada uma delas, em partes secretas e em lugares bonitos, mapas celestes visitados e reconhecidos pelos meus olhos, pelos olhos dele, coordenadas equatoriais que me levavam até um Céu particular.

Meu maior medo era aniquilar tudo de uma vez só. Na ânsia de me livrar do que me feriu, me esquecer do que foi bom. Dessas pequenas coisas que foram tão minhas. Eu quase nunca experimentei o melhor com qualquer outro amor, talvez tenha sido mais fácil simplesmente jogar tudo fora e não me apegar à memórias que considerei manchadas por tudo que um dia foi ruim. Mas havia experimentado o gosto doce que as estrelas têm, como uma oportunidade que nos é dada apenas uma vez na vida, e perder algo que foi tão meu não seria justo.

Hoje, em algum lugar daquela cidade, ele adormeceria pela primeira vez longe de mim, sete meses após a partida. Apagaria a luz da sala como um sinal de que não esperava por ninguém, assim como não esperaria sua volta.

Tentaria dormir em paz e esquecer as dores do dia, ao menos hoje, ao menos essa noite, colocaria sua foto para baixo e rezaria para não ser seu rosto nos meus sonhos, sua voz destilando amor nas minhas nas minhas lembranças involuntárias. Deixaria que a chuva que despenca lá fora, a tempestade de Verão que lava a agitação de Tóquio também levasse consigo todas as memórias que doíam. Só hoje.


J E O N

Apoio as mãos contra os joelhos e respiro fundo pela primeira vez nos últimos vinte minutos, sentindo meu coração pulsar em todos os lugares do meu corpo a cada vez que o ar entra e sai dos meus pulmões. Corri dois quarteirões inteiros até aqui, no meio da chuva, desviando de alguns carros, ruas tumultuadas de uma madrugada agitada em um cruzamento qualquer de Tóquio, e estou parado no topo das escadas de emergência do prédio de Noonim agora, encarando meu rosto suado, molhado e exausto refletido no espelho do corredor L de seu andar.

De alguma forma, sei que não deveria ter vindo, que a ideia estúpida de fugir do hotel no meio da madrugada e aparecer aqui só vai me trazer problemas mais tarde, colocando em risco tantas coisas que por um segundo, um raio de culpa me atravessa.

Isso tudo estava definitivamente longe do planejado, tinha me revirado tanto de um lado para o outro na cama nas últimas duas horas, que como um espectador externo de minha própria vida, me vi abandonando o quarto no meio da noite e escapando pelas escadas de emergência do hotel. Tenho quase certeza que o taxista deve ter pensado que eu era só um maluco, me encarando pelo retrovisor interno, quando invadi seu carro na maior velocidade que pude e nos direcionei até aqui. Do outro lado da cidade. Dois quarteirões de distância do prédio dela.

Mas agora estou parado na porta de seu apartamento, fazendo uma poça de água ao meu redor cada vez que apoio meu peso contra os sapatos ensopados, observando o balançar de seu sino dos ventos, pensando que outra vez quebrei uma promessa quando jurei que dessa vez a deixaria em paz e me tornei, provavelmente, o mal necessário que ele foi feito para afastar.

Não tenho um roteiro pronto, não ensaiei algo útil para dizer.

Deveria ter comprado flores, pelo menos teria algo para ocupar as mãos, uma desculpa qualquer para motivar minha volta: "vi essas flores e pensei em você, só passei para saber como estava".

Não precisaria buscar justificativas se não tivesse sido tão impulsivo, mas a verdade é que só quero contar tudo que pensei nos últimos sete meses.

Dizer que comprei uma casa nova em um lugar bonito de Gangnam com vista para o rio Han, como sempre sonhei, e pensei em nós dois. Que bebi todas as garrafas de soju da cidade no chão daquela sala, e pude jurar que a vi ali, como um fragmento do passado e um anseio do futuro, dancei sozinho entre as paredes descoloridas e impessoais demais de um apartamento recém adquirido, que no fim das contas, parecia menos meu sem o aconchegado de tudo que era dela.

Adormeci e acordei na companhia de garrafas vazias, com a luz do Sol nascente banhando a sala como prometia o anúncio, mas sem você.

Senti sua falta ao ponto de quase enlouquecer. Acho que enlouqueci um pouco nesse tempo. Queria ter a chance de dizer tudo isso. Até que senti saudade de nunca caber direito em nada que era seu: na sua banheira, no seu sofá pequeno, no seu carro, na sua cama, na sua vida. Que quis manter em segredo que a flor tatuada na minha pele tinha sido um desenho que secretamente roubei de seu diário, em uma página escrita sobre nós. Que não me esqueci da promessa de repintar a parede desbotada do quarto ou de afastar a sua mesa de trabalho até a janela como ela havia me pedido. Queria que tivesse certeza de que não me esqueci de nada, nem por um momento, se isto tudo ainda fizer alguma diferença.

Ainda lembrava da primeira vez que estive nesse lugar, tentando me encaixar no meio de suas coisas e desejando que todas elas também pudessem ser chamadas de minhas, e esse lugar de nosso.

Tudo era tão familiar que até tive a sensação de que poderia ficar para sempre.

Era como um homem crescido tentando ocupar espaço dentro de uma casa de bonecas, um lugar que havia sido foi feito especialmente para abrigar Noonim e todas as partes dela projetadas em pequenos lugares, enquanto eu, cuidadosamente, tentava prestar atenção nos meus próprios passos para não acabar pisoteando as flores, quebrando as porcelanas delicadas e arruinando tudo que parecia tão frágil ali dentro, porque sempre acabava arruinando tudo que tocava, mesmo com o intuito de só proteger.

"Você tem um Toque de Midas", ela me disse isso uma vez, em uma dessas madrugadas que permanecemos acordados falando sobre tudo e nada. "Tudo que você toca simplesmente vira ouro" disse, enquanto beijava as pontas dos meus dedos, como um costume que era unicamente dela: "nem sempre é algo positivo, sabe? Tudo que é bom, traz consigo uma consequência..." E então riu. "Eu tô parecendo o tio do Homem-Aranha?".

Foi um pensamento involuntário, dito em voz alta. Mas era verdade que me atingia: tudo trazia consigo uma consequência. E talvez não poder ser feliz como quero seja a pior delas. Um preço alto demais a ser pago. .

Mas meu tempo e espaço sempre foram diferentes dos demais e já entendi que não tenho direito de exigir nada, foi essa a vida que escolhi. Preferia abrir mão de não tê-la se isso fosse sua garantia de felicidade, com alguém que mereça esse espaço. E sei que essa pessoa não pode ser eu.

O outro Jungkook, com seus títulos importantes, era infinitamente maior do que minha vontade.

Era dele que tinha medo na maioria das vezes. Era ele que me apavorava e me fazia sentir pequeno e insignificante, anulando as outras partes porque também não existia espaço para elas, fragmentando entre os dedos todo e qualquer rastro da minha felicidade fora dos holofotes. Estava restrito a um único tipo dela, com uma liberdade condicionada que às vezes me tirava o rumo. O mundo em que o Jungkook existia era sempre muito maior do que eu, e poderia até me esconder por um tempo, mas nunca o bastante para fugir dele: como se tivesse a chance de escapar do meu próprio corpo e ser outro.

Seria outro hoje. Exatamente agora. No momento que cruzei as portas dessas prédio. Apenas por algumas horas.

Sempre acabava passeando por esses picos de emoções reavaliando tudo que havia feito até aqui, e a culpa, que geralmente não tem um rosto, um nome ou uma forma, na maioria das vezes parecia muito mais minha. E aquilo sempre me enchia de medo. A porra de um medo que me sufocava, subindo pelo meu peito e virando um nó na garganta, que me deixava sem fala, sem voz. Sabia que qualquer passo em falso, qualquer erro minúsculo, como uma pedrinha atirada contra o oceano, teria o poder devastador de um vagalhão do outro lado, uma força natural que me arrastaria junto e me jogaria em alto-mar. E não pensava só em mim. Os reflexos da minha vida atingiam tantas pessoas ao meu redor, como um ciclo vicioso, peças de dominó enfileiradas uma atrás da outra.

Um milhão de perguntas passeiam pela minha cabeça enquanto permaneço ali, e não tenho resposta para nenhuma delas. Ensaio digitar a senha da tranca automática, mas seria estranho pra caralho invadir sua casa como um intruso. Era sua, e não mais nossa. Talvez sua e de outro alguém. Alguém que tem direito de estar aqui, e eu levaria meus medos, minhas promessas quebradas e meu amor de palavras vazias de volta pra outro lugar do mundo. Esqueceria a Tóquio que chamei de lar, a casa bonita onde fui feliz e deixaria essa parte no passado. Porque era o justo. Era o correto. Era o que Noonim merecia. Ser feliz. Ter toda a felicidade do mundo.

Mas eu tenho todas as certezas do mundo por um segundo e no outro, já não as tenho mais.

Tudo muda tão rápido que às vezes parece um sonho, um filme o tempo todo.

Me viro para descer outra vez as escadas, depois de tentar amenizar a quantidade de água nas minhas roupas, quando a porta se abre com uma força improvável, e lá está ela, com o rosto assustado, segurando a maçaneta como se sua vida dependesse disso.

— O que você tá fazendo aqui? — Sua voz me atravessa como se rompesse uma barreira de som, ecoando no meu corpo inteiro. Não mais como mais um dos sonhos lúcidos de antes, ocasionados pelo excesso de álcool, de vê-la se despindo para mim entre as cortinas bonitas de algum quarto de hotel em que estive. Ela tá aqui. Tão real que até me assusta.

Percebo que seu cabelo cresceu muito desde a última vez que a vi, que provavelmente não atualiza a foto do seu contato no aplicativo de mensagens há tempos, ou simplesmente se desfez de meu número. Me tirou de vez de sua vida. A última mensagem, respondida há dois meses dizia: "Isso só vai machucar muito mais nós dois. Não me ligue de novo."

Noonim continua tão bonita. Porra. Bonita exatamente como me lembro. Cada mínimo detalhe ainda tão dela, como a pintinha solitária no seu queixo, vítima dos meus beijos constantes. De minha vontade de existir ali, exatamente naquele lugar, em uma outra vida: tão perto de seus lábios e de toda sua fonte de amor.

Às vezes achava que tudo não tinha passado de um delírio, cada memória que revivia como minha, ocupando um espaço que por um momento pareceu só meu e então, se perdia entre o resto das coisas que Jeon Jungkook não poderia ter.

— Alguém te viu entrar? Minha nossa, você tá ensopado! — Só consigo mover adiante porque seus braços me puxam para dentro e num piscar de olhos estou outra vez parado no meio da sala-de-estar como se nada, absolutamente nada tivesse mudado.

— Ei, tá me ouvindo? — ela continua. — Você tá bêbado? — Seu rosto se aproxima do meu na tentativa de buscar algum vestígio que me denuncie. Mas estou lúcido, sóbrio, estou aqui. Atingido e rendido pela saudade.

A casa inteira ainda tinha o mesmo cheiro doce de seu shampoo frutado, o sofá amarelo e pequeno com uma mancha de vinho como uma assinatura minha ainda continuava no mesmo lugar, coberto pela manta colorida que já esquentou nossos corpos quando nosso maior esforço era caber ali, embora dormir fosse a menor das preocupações.

— Desculpe! — Minha voz sai quase como uma lufada de ar, vaporosa e ridícula. — Eu corri muito até aqui. — Seus livros, seus quadros pintados decorando a parede, suas fotos nos porta-retratos, como se o tempo tivesse preservado o último instante que estive aqui e minha mente reproduzisse como um filme, como se nada, aparentemente, tivesse mudado.

— Jungkook!

— Sei que não deveria ter vindo... — começo outra vez, caçando as palavras como se fosse só um aprendiz, conhecendo agora o verdadeiro significado delas. — Eu só queria saber como você estava, ter certeza que estava bem... — A frase vai perdendo força, morrendo na minha boca, mentirosas demais para o intuito verdadeiro que motivou minha vinda.

— São quase três da manhã, olha só pra você... — ela diz, — alguém ao menos sabe que você tá aqui?! — Seus olhos acompanham meu corpo, sou a minha própria denúncia de fuga. Ainda estava de pijamas, agora tão molhado e grudado no meu corpo que dificultava meus movimentos, não tinha sequer me dado ao trabalho de vestir as meias quando calcei os sapatos às pressas, tirei o casaco pendurado no armário e sai, desviando pelos corredores do hotel como um fugitivo.

Tinha enfiado um bilhete por baixo da porta do quarto de Hobi-hyung e pela quantidade de chamadas perdidas no meu celular completamente úmido, era de conhecimento geral que eu não estava no quarto como havia dito. O maknae está sempre causando problemas. E sei que vou me foder muito dessa vez.

— Olha, Noonim... — tô sendo patético, sei disso, tenho consciência. Alguma voz dentro de mim parece repetir em voz alta em afirmativo — Só queria que soubesse que não me esqueci de nada que prometi e precisava te dizer isso aqui. Pessoalmente.

— A gente não precisa ter essa conversa de novo! — ela para por um segundo, atenta ao que disse. — Da última vez foi ruim o suficiente, então... — Seus lábios estão trêmulos.

E permanecemos em silêncio. Iluminados por uma luz fraca que entra pela fresta da porta que só consegue clarear parcialmente nós dois como a cena final de um filme triste. 


S O F I

Quase não sinto meu rosto.

Minha respiração parece tão fora do ritmo que consiga ouvi-la como se nunca tivesse experimentado o ar enchendo os meus pulmões, preciso ensinar o meu cérebro outra vez a função primordial de inspirar e respirar.

Não me movo para acender as luzes e tenho medo de que se o fizer, tudo desapareça, como um sonho soprado para longe, como tentar tocar uma cena projetada e descobrir que qualquer superfície é capaz de reproduzi-la. Tinha medo que tudo acabasse.

Estamos ali, nós dois, em silêncio na penumbra da sala, consigo ouvir perfeitamente o tintilar do sino dos ventos do lado de fora, vejo a sombra do corpo de Jungkook de pé diante de mim, a respiração doce que me atinge a cada passo de uma aproximação repentina e não dou um passo sequer.

— Vou buscar uma toalha, você precisa tomar um banho quente ou vai acabar resfriado desse jeito. — Tudo se torna um borrão perdido no meio do meu desejo, da minha vontade de agarrá-lo pela camisa e perguntar, mesmo que saiba as respostas e as motivações, por que tudo tem que ser dessa maneira para nós. Tão difícil ao ponto de temer que sua presença ali resulte em qualquer consequência ruim que prevíamos mais à frente.

Só vá embora, eu não quero que você se machuque. Só vá embora. Só vá embora.

Eu repito, dentro de minha cabeça, naquele momento sou incapaz de verbalizar qualquer coisa que o tire dali. Como se pudesse exorcizar a casa e tirar à força os seus fantasmas, os demônios do amor que ele trouxe consigo e levá-los de volta de onde vieram. Mas fraquejo na tentativa quando suas mãos tocam de as minhas para alcançar a toalha e estremeço com seu toque frio.

— Tudo bem, Noonim! — Sua voz rompe o nosso espaço. — Desculpe te causar problemas! — Não consigo respondê-lo. Me movo até as escadas como se meu corpo seguisse comandos involuntários

— Vem, acho que ainda tenho algumas peças secas aqui. — Jungkook retira os sapatos pretos no tapete da sala e me acompanha, sempre um degrau abaixo.

No quarto, suas coisas empacotadas ao lado da cama aos poucos são reabertas e removidas, como se tivesse retirado a casca de uma ferida recém-curada para tocá-la outra vez.

— São minhas coisas aí dentro? — ele pergunta, no meio segundo em que caminha até o banheiro e me observa remexer no meio de todos os seus vestígios esquecidos.

— Sim... — começo, — tem algumas peças de roupas aqui.

— Desculpe por ter vindo, eu não deveria mesmo tá aqui... — ele repete outra vez, mas sei que as desculpas vão muito além de aparecer molhado até os ossos na porta de minha casa, as coisas que estamos tentando consertar de alguma forma vão muito além de voltas repentinas, do que não foi dito e nós dois sabemos disso. Estava muito além do nosso controle, como um boato ruim que desencadeou todas as outras coisas até chegarmos aqui, na tentativa de não machucar um ao outro. "A distância é o mais o seguro agora, pelo menos por enquanto", o manager repetiu, tantas vezes que poderia reproduzir sua fala em minha cabeça.

"No futuro vocês terão a chance de resolver as coisas de novo, sim?"

Nunca imaginei que aqueles anos especiais que dividimos acabaria com a presença de um estranho nos dizendo exatamente o que fazer, com Jungkook chorando no canto da sala, escondendo o rosto debaixo de seu chapéu favorito depois de ter dito em voz alta que aquilo nem de longe parecia justo, mostrando uma outra face que quase nunca está disposto a trazer à tona, quando um homem qualquer nos disse como deveríamos seguir nossas vidas. Me impulsionando a buscar uma outra forma de lidar com minha dor. A esperar se estivesse disposta, ou simplesmente entender que a vida funciona assim: alguns simplesmente vão ficar pelo caminho.

Pensei que essas coisas só existissem em filmes, que cenas e conversas como aquela só faziam parte de enredos tristes de amor que terminam com finais felizes. Como Julia Roberts retornando para Notting Hill e dizendo para Hugh Grant: "Não se esqueça. Eu sou apenas uma garota parada em frente a um garoto pedindo-o para amá-la", entre outras coisas bonitas que imaginei que se encaixariam com nós dois em algum momento. Estava trancada do lado de fora, levando comigo todas as nossas memórias, enquanto ele brilharia infinitamente como costumava fazer, sem que ninguém suspeitasse de sua dor.

Mas continuo o assistindo pelo reflexo do espelho do quarto enquanto Jungkook se livra de todas as sobreposições de roupas encharcadas, e me sinto uma intrusa o observando assim, invadindo sua privacidade daquela maneira, mas estaria limitada apenas aquilo: assistir sua vida passar como um filme doce, enquanto as fotos, os sabores e as memórias desbotariam para sempre.

Forço minha mente a focar outra vez na tarefa de reencontrar uma camiseta perdida ali dentro, uma calça de moletom antiga que provavelmente ficaria apertada em suas coxas agora e um par de meias antigas.

Noona! — ele chama, em um tom suave que por um breve momento me assusta, a falta de costume de ouvi-lo pela casa de novo faz com que seja atingida como uma corrente elétrica no corpo — Nem sei se posso pedir isso, mas... — ele começa — poderia lavar meus cabelos?! — A pergunta parece tão ingênua que me pego parada por um segundo, reavaliando o significado dela. De cada palavra. Era algo tão nosso, como uma parte intrínseca e natural de um costume antigo, depois de um dia difícil.

É ridículo, não é?! Eu não sei o que tô dizendo, esquece! — Identifico a pontada de constrangimento na sua voz, repetindo um desejo estranho em voz alta quando não deveria, mas não desvio disso, não sou capaz de repeli-lo. Nem mesmo se pudesse.

— Não, tá tudo bem... — começo, — senta na banheira! — Seus olhos se enchem daquela mesma luz incomum de antes, brilhantes demais, estrelados, esperançosos. Mas refaço o caminho como antes, e seus ombros mal cabem no espaço de minhas coxas, enquanto me encaixo em suas costas.

— Você fica bem com mechinhas coloridas, sabia? — Digo e mesmo de costas para mim, sei que ele está sorrindo, consigo ver sua covinha bonitinha se formando na bochecha esquerda e quase me rendo à vontade de tocá-la outra vez. Encaixar a ponta de meu dedo mindinho ali como sempre fiz. Mas me nego o prazer culposo, espalho o shampoo entre os dedos antes de colocá-lo suavemente em seus cabelos.

Noonim... — ele sussurra, agora com os olhos fechados, e minhas mãos alcançam sozinhas, sem que eu exija algum esforço delas, a sua nuca. Morna, febril, ainda molhada. Quase sinto o gosto salgado de seu suor em minha boca, como tantas vezes havia experimentado em outros momentos, escorrendo por suas costas e pescoço na rota mais familiar que minha boca já seguiu, quando uma gota solitária de água faz o mesmo caminho agora.

Deslizo meus dedos por dentro dos fios até alcançar seus ombros, e então refaço o trajeto, uma, duas, três, vezes.

Tá tudo bem? — pergunto, quero ter certeza, pelo menos por um segundo, de alguma coisa ali dentro, embora o impacto com que uma ação tão simples me atinge, não me deixa entender nada prontamente.

— Uhum! — ele responde. Exatamente como tudo tinha começado em uma dança desajeitada e sem ritmo, há quatro anos.

Pisei no seu pé sem querer, mas ele não reclamou. Na verdade, sequer abriu a boca mesmo que eu tenha basicamente esmagado seus dedos. Pedi desculpas pelo menos umas três vezes e ele sorriu — tudo bem, não machucou — disse.

Foi na festa de aniversário de Hoseok,  no apartamento de Dana, na época em que passei alguns dias felizes de férias em Seul. — Então dança comigo, só pra garantir que eles estão bem...

— O quê? d-dançar?

— É! — Jungkook, ainda tão menino, tímido e desviando dos olhares e risinhos dos hyungs, dançou comigo. Os braços esticados à uma distância segura, as mãos milimetricamente calculadas para que tocassem apenas o tecido da roupa que eu usava, sem nunca se aproximar da minha pele exposta. Me disse uma vez, alguns anos depois, que estava tão nervoso naquele dia que pensou que iria desmaiar, e me  lembro disso, de tocar sua nuca, sem querer, e fazê-lo estremecer.

— Tá tudo bem? — perguntei, preocupada demais, com medo de ter feito algo que não deveria.

— Uhum. — Foi tudo que ele conseguiu responder, e ainda lembro de ver sua pele dourada e bonita como um beijo solar,  se transformando em um tom rosado de constrangimento. Não lembro direito da música naquele momento, mas lembro que muitas outras vieram depois dela naquela noite.

Ficamos conversando no terraço do apartamento de Jordana até o amanhecer depois daquilo, de mãos dadas. Foi como um primeiro beijo, sem que lábios precisassem ser tocados: "juntas, a mão do fiel e a mão do santo, palma com palma se terão beijado.", revivi um trecho de Romeu e Julieta e sorri pensando naquilo, enquanto ele escondia minha mão na sua, dentro do bolso de seu moletom azul.

Eu olho agora e vejo aquele menino. Vejo também o homem que Jungkook se tornou. Os olhos doces que nunca mudaram. Os olhos mais doces que já vi. A figura do garoto que tanto amo.

— Deita a cabeça para trás, vou tirar o shampoo, certo? — Ele obedece os comandos, ainda de olhos fechados. Meus dedos deslizam pelo seu rosto, instintivos demais. Suas sobrancelhas que tanto gosto. Seu nariz bonito e longo, seus lábios macios, úmidos. A pele delicada e quente. Ainda parece tão meu. Daquele jeito parece só meu.



J E O N

Cada vez que me aproximo mais, seus olhos fixos nos meus sob as luzes das velas acesas ao redor parecem temer meu toque. Eu consigo vê-la perfeitamente, bem ali, entre se dar um passo adiante ou se afastar para sempre.

— Não me esqueci de nada, noona. Eu não consigo. — digo, e ela suspira.

Pela primeira vez emite algum som quando a toco, com mãos tão cuidadosas e cheias de medo de machucá-la que levo o dobro de tempo necessário até alcançar sua pele.  Acabei descobrindo, da pior maneira, que era exatamente tudo que eu fazia inconscientemente: acabava ferindo de forma irreversível alguma parte de Noonim.

Mas ela levanta no impulso de ir embora, se afastar o máximo possível e tento alcançá-la, saindo da banheira e acompanhando-a até o quarto.

— Noonim, me escuta... — Meus dedos tocam sua cintura e a tenho novamente em meus olhos. Eu posso desmanchar a qualquer momento quando suas mãos tocam minha pele, seus dedos quentes espalmados contra o meu peito. 

— Você deveria ir agora... — ela sussurra. — deveria mesmo ir embora. — E minhas mãos, ansiosas, tocam sua pele  outra vez como se fosse a primeira.

— Você quer que eu vá? Eu posso ir, posso ir agora, se quiser!

Nada é dito de imediato, não é preciso.

Sua boca lentamente toca a minha e quase me desfaço inteiro. Meu cérebro vira líquido, minhas emoções estão em combustão. Eu guardaria aquelas lembranças e as revistaria com a mesma constância que gostava de senti-la, doce e sensível, como se estivesse sempre à flor da pele.

Seu silêncio já responde minha pergunta, quando suas mãos, pela primeira vez,  seguram firme em meus ombros, me abraçando tão perto que sinto seu coração forte contra o meu.

Ela está chorando. Tem o rosto escondido em meu pescoço, me deixando sentir o seu perfume abaixo de minhas narinas, como tudo que respiro.

— Eu tenho tanto medo, Jungkook — diz, baixinho. — Eu tenho tanto medo de tudo isso, do quanto ainda vai doer.

Não pense no depois, estou aqui agora, Noonim. Estou aqui e sou seu.

— Me deixa cuidar de você? — começo,  tremendo tanto que posso me desfazer, me desmanchar naquele meio tempo que levo para tocar seu rosto de novo — Só essa noite, me deixa ficar.

Ela não diz nada, só me abraça. 

Não tenho medo, não sinto culpa, sou feito de coragem.

E seguiria amando Noonim, eu sabia. Eu sabia.

Repito como um mantra enquanto me desfaço de suas roupas.

Continuaria amando-a para sempre.


Demorou, demorou, demorou mas saiu. Haha. Peço desculpas pela demora, mas tá aqui, a fase das pétalas finalmente começaram: onde os pontos de vista dos dois, quase sempre, serão adicionados. Hanami está se encaminhando para o fim depois de tanto tempo e tenho me esforçado para contar a versão mais bonita possível que meu coração guarda para esta história.

Peço desculpas por qualquer errinho, tentarei reler novamente essa semana para corrigi-los e agradeço de todo coração a quem esperou e quem tirou um tempinho para ler esse capítulo! 

Obrigada a todos. 

- S.

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