Lírio-Tigre (Por favor, me ame)
Part. Especial: Jeon Bam. 🐶💘
🌼🌾
Três anos depois.
Sota era um bom rapaz.
Sua gentileza oriunda de um coração doce era distribuída por cada pequeno lugar do novo apartamento com uma devoção compartilhada e igualitária; entre as flores, regadas sempre uma vez ao dia, os jarros que se amontoavam cada vez mais em parapeitos de janelas ou pela pequena varanda e ao redor da banheira, de minha mesa de trabalho e na entrada da casa; um oceano de pétalas e perfume dando-me boas vindas.
As suas mãos cuidadosas organizavam os livros de um modo metódico e bonito na velha prateleira de madeira, tinha paciência, tempo e disponibilidade para ler todos, se quisesse.
E talvez, soubesse exatamente sobre o que cada um deles falava. Seus olhos bonitos, escondidos por trás das lentes dos seus óculos, corriam cada sinopse atentamente antes de encaixar a edição de volta ao seu lugar originário muito bem classificado por cor e tamanho.
Ou brincando com um Berry abusado e mal-humorado em seu peito, que ainda não havia se acostumado totalmente com sua presença na casa, mas que também era vítima de seu amor desmedido.
Olhando para ele assim, enquanto Sota nem me percebe aqui, abrindo as caixas da mudança e revirando a papelada do trabalho, meu coração estremece.
Ele havia sido um presente de calmaria depois de uma tempestade violenta que atingiu minha vida. O anel de noivado pesando em meu dedo anelar era o reflexo do destino tranquilo que havia escolhido para viver ao seu lado. Uma prova concreta de uma felicidade que sentia merecer, mesmo que não a sentisse.
Havia o conhecido há quase um ano e meio, em um evento promovido pela editora.
No meio de um karaokê movimentado, em uma confraternização de ano novo, com funcionários movidos a saquê no sangue e pura paixão, Sota era o único sentado no canto da sala, agarrado a um bloco de anotações observando tudo.
Seu rosto familiar, de sobrancelhas ralas e olhos profundos não me passaram despercebidos.
Os pontos se interligaram como um velho mapa; ele era Sota Shinkai, o mesmo rapaz que havia publicado um best-seller há mais ou menos cinco meses pela editora. O tímido e talentoso autor que tinha estremecido os críticos em seu primeiro romance estrondoso.
Lembro de perguntá-lo se precisava de companhia, oferecendo a cerveja gelada que ele levou uma vida e meia para aceitar, sem sequer me olhar nos olhos.
Seis meses depois da nossa primeira conversa meio sem jeito, já podia chamá-lo de meu.
Parecia que todas as peças de Sota se encaixavam nas minhas; seus gostos, seus costumes e principalmente seus caminhos. Na vida de Sota havia espaço para mim. Em todos os aspectos. Até nos menores, como a liberdade de poder inseri-lo em minha rotina.
O sentimento estranho de andar de mãos dadas na rua, à luz do dia, ou a liberdade de levá-lo ao cinema, ao sebo ou ao meu restaurante favorito, assim como a estupidez infantil do meu romantismo de menina: visitar um parque de diversões com Sota. Nada parecia assustador, nada colocava em risco tudo que havíamos construído. Nada amedrontava o que era nosso, porque não havia nada a perder com aquilo, nosso amor não precisava soar como uma ameaça.
Vez ou outra, quando por um impulso natural da memória muscular, de tanto reproduzir o ato, me afastava dele e olhava ao redor, atenta a olhos curiosos, câmeras de flashes cegantes ou garotas escondidas por detrás de carros ou becos, às vezes me esquecia de que com Sota, não havia riscos.
Estranhei em um primeiro momento, quando experimentei lhe dar um nome, um rosto e uma forma para todos os meus amigos.
— É a primeira vez que conhecemos um namorado dela, Sofi-chan é sempre tão misteriosa! — Watanabe disse, relutante — Tipo com aquele garoto coreano que não tinha rosto, até hoje eu me pergunto como alguém namora por tanto tempo e não tem sequer uma foto do namorado. — ele sorriu, o tom usual de brincadeira, mas ainda me causava um medo infundado.
Meu coração estremecia a cada vez que uma síntese qualquer de Jeon vinha à tona. Uma mera menção imaginária de olhos, boca, corpo, estatura e características indefinidas que me faziam temer que acertassem em cheio aquilo que nunca sequer existiu em uma realidade fora da nossa.
Estava apaixonada por Sota, sim, era verdade, e sabia que o tempo seria responsável pelo amor futuro. Sabia também que as chances de não ser feliz com ele eram quase mínimas. Mas algo sempre parecia errado. Desonesto. Incerto. Aquele corpo e aquela vida vistas de perto, muitas vezes, não pareciam minhas.
Talvez no início, eu estivesse vivendo uma ânsia invisível e silenciosa para tirar Jeon de mim, garantir que sobreviveria depois que o meu amor fosse amortecido pelo tempo. Na tentativa de me desfazer de tudo que era dele, não deixei outros rastros e motivos para o seu retorno.
O pequeno apartamento em Shinjuku havia sido repassado com todos os fantasmas e cômodos assombrados. Assim como insisti para que Jungkook não enviasse mais presentes à Berry em datas comemorativas; como os souvenirs temáticos e roupinhas trazidas de vários lugares do mundo, sem os cartões carregados de saudade que me deixavam madrugada adentro chorando e relendo, perdida em sua caligrafia bonita como um pedaço que ainda tinha do que era dele, me dizendo sobre o quanto ainda desejava que eu fosse feliz. Naquela época eu só queria ser feliz ao seu lado e qualquer tentativa de caminhar sozinha só me levaria ao fracasso. Todavia, queria dar uma chance a tudo que pensei que não sentiria nunca mais; com o tempo entendi que borboletas no estômago nem sempre são bem vindas, o bater de asas em excesso causam efeitos colaterais nocivos.
Eu queria encerrar aquele ciclo, parar de regurgitar as flores que continuavam a subir pela minha garganta a cada iminência de um retorno, aniquilar o habitat natural das criaturas minúsculas vivendo dentro de mim na esperança de que poderíamos recomeçar outra vez.
As doces memórias e as paredes desbotadas de uma tintura antiga e amarelada que começavam a cair, desvaneciam conforme o tempo passava. Uma nova história começaria naquele lugar para uma outra pessoa, para uma outra garota, talvez, que possivelmente encheria aquele lugar, o nosso lugar, com suas próprias lembranças felizes.
Outro alguém ocuparia a função de retocar o amarelo vivo e bonito que a cozinha costumava ter, ou então, decidiria que tanta cor solar assim havia sido uma escolha de péssimo gosto.
E a nova cor, marcaria o fim da nossa. A demão fresca de uma tinta recente cobriria para sempre as marcas de nossas mãos decalcadas em um roxo cafona naquela parede, datadas da primeira vez que movemos os móveis de lugar, assim como eu e ele acabamos pintados da cabeça aos pés no fim da madrugada.
Às vezes era como se as nossas versões antigas, ainda jovens e felizes, despreocupadas com o destino, estivessem observando minuciosamente cada detalhe do rumo que nossas vidas tomaram. Festejando quando o silêncio da casa se fazia presente. Quando as luzes se apagavam, eu e ele ainda éramos os protagonistas de uma história feliz no passado.
Os passos que ouvia na sala, fruto do desejo e da imaginação, enquanto ainda estava anestesiada pelo sono da madrugada, sempre me faziam imaginar que era Jungkook. E de olhos fechados, esperava que o peso do seu corpo fosse posto sobre a cama, esquentando o lado frio do seu travesseiro. Seus braços se enfiando ao redor de minha cintura e sua boca sussurrando em meu ouvido, no mesmo tom exausto devido ao jet lag: "Acorde, Jagi, estou aqui."
Meu coração se acalmaria com os impulsos do sono, relaxaria por saber que ele estava seguro, agarrando suas mãos para mais perto de mim com medo que minha autoconsciência me despertasse de um sonho agradável.
Contudo, o calor dele nunca mais fez o seu cerceio ao meu redor, nem sua voz amorosa que me arrepiava a pele trouxe boas notícias, a doçura do seu cheiro comprovando a vinda foi se apagando de cada tecido e não restou mais nada.
A verdade é que não tínhamos contato há anos.
Tudo que sabia sobre sua vida era por meio da TV, das notícias circulando em redes sociais, quando não podia evitar que sua foto surgisse na tela do celular revelando seus novos grandes feitos ou todas as mudanças físicas que tiravam dele toda a imagem do garoto tímido que conheci; que agora, era sobreposta pelo homem que havia se tornado com o passar do tempo: confiante, misterioso e sedutor. Um rumo natural do passar dos anos.
Mas evitá-lo era impossível, eu sabia. Eu sempre soube. Desde o começo. Jungkook estava em todo lugar e sob os olhos de todos.
Meu celular vibrou por cima da mesa de centro, desviando meus pensamentos para a realidade outra vez, e vi o nome de Watanabe piscando na tela incansavelmente. Atendi.
— Tenho um job extra pra você! — A animação presente em sua voz me lembrava os compromissos do trabalho, a papelada que ele mesmo havia começado na semana anterior.
— Não vou revisar o seu material de novo, Nabe. — respondi e ele gargalhou.
— É um job de tradutora, um fim de semana em Seul. O contratante exigiu que fosse você.— Meu coração acelerou no impulso de um susto.
— E-ele me conhece?
— É o Lee Hyun-sama, você sabe, para traduzir os contratos para os trainees estrangeiros. — Por um segundo fui traída pelas esperanças, mas conhecia Lee Hyun há anos, não era nada novo.
— Ah, claro, o Hyun.
— Ele vai bancar sua hospedagem também, então não precisa se preocupar! Fim de semana em Seul, huh?! Poderia ir a Hongdae e também me comprar uns produtinhos de beleza, não acha?
— Posso pensar no seu caso. — disse e Watanabe comemorou.
— Então, você aceita?
— Eu acabei de me mudar para um apartamento novo, não posso deixar o Sota sozinho aqui. Além de que... — baixei o tom de voz ao máximo que pude, colocando a mão contra a boca e o aparelho — O Berry ainda não se acostumou muito bem com ele. — A risada de Watanabe ressoou mais alta do que o esperado.
— Você quer dizer, Berry o odeia, não é? Sofi-chan, ele está acostumado ao Otosan sem nome, talvez demore um tempo até eles se adaptarem. Deixar ele nesta situação, sem você, é ótimo para um começo. E pensa bem, é um dinheiro extra para investir no apartamento novo, além de que um fim de semana em Seul, em um hotel caro, é irrecusável. O que me diz?
Ao menos Nabe estava certo sobre a necessidade de um dinheiro extra, havia investido tudo que tinha no apartamento novo, não tinha reservas há tempos. Lee Hyun, ao menos, era justo quando se tratava de valores. Sabendo que ao menos não teria que me preocupar com os gastos de hospedagem e passagens de avião, não havia motivo para recusa.
— Ok, Watanabe, que horas devo estar no aeroporto?
🌸
Das janelas do hotel eu conseguia ver a imensidão de uma Seul, borrada pela neblina densa, que crescia verticalmente. Lee Hyun havia pedido que um dos staffs da empresa me buscasse no aeroporto, me levando diretamente para o hotel, deixando comigo uma base dos contratos para serem traduzidos na segunda-feira pela manhã. Teria muito o que fazer no fim de semana, por isso as boas-vindas calorosas e as bebidas gratuitas oferecidas no mini-bar do quarto e em uma cesta imensa serviam para disfarçar a quantidade significativa de trabalho extra; ao menos, Lee era compreensivo e flexível e o hotel fazia jus às cinco estrelas classificadas no site.
A cidade era linda, como tanto havia sido repetida para mim, ao fim de cada madrugada, quando Jeon fechava os olhos e repetia seus lugares favoritos: a extensão do rio Han que via ao longe, o nascer das luzes quando o Sol estava prestes a se pôr, o cheiro doce e solitário que o inverno tinha, assim como a sensação inquietante sob a pele da brisa congelante que se chocava contra a fumaça escapando dos lábios. Nunca pus os pés em Seul, mas meu coração morou aqui, a cada volta para casa de Jungkook e de alguma forma, não me sentia tão distante do meu lugar.
Mas era impossível estar ali sem lembrar que ele também estava. E de alguma forma, a informação parecia destrutiva.
Tentei despistar a sensação crescente no estômago tomando um pouco do whisky caro que vinha na cesta de presentes, retirei a blusa assim que liguei o aquecedor do quarto, caminhando até o banheiro para alcançar o robe de cetim com as siglas do hotel dobrado por cima da bancada do banheiro enquanto a água enchia a banheira. Repassei mentalmente tudo que precisava fazer nas próximas horas: analisar as propostas, revisar o conteúdo das cláusulas, verificar e traduzir.
Encarei meu rosto no espelho enquanto terminava de tirar a roupa. Parecia exausta. O cabelo longo me deixava com o aspecto muito mais sério do que antes, assim como o tom da paleta de roupas sociais que vestia há minutos. Algo havia se perdido com o passar dos anos, alguma característica muito particular e minha que já não enxergava há algum tempo, mas não era capaz de nomeá-la, identificá-la com tanta facilidade assim, todavia, algo já não existia mais naquela mulher no espelho. Em algum momento, aquela parte desapareceu sem que me desse conta, fora totalmente apagada de mim.
Prendi os cabelos no alto da cabeça e tateei pelo meu corpo em busca do que faltava. Seios, barriga, coxas, costas, nádegas, tudo ainda parecia igual, mas já não era mais o mesmo. Reconheceria facilmente uma farsante diante dos meus olhos. E sabia bem que havia me tornado uma.
Abri uma garrafa de cerveja e sorvi com uma rapidez assustadora enquanto ainda tentava, por eliminação e associação, descobrir o que me fazia sentir como se algo estivesse errado. Talvez eu não me conhecesse o suficiente, a resposta menos óbvia talvez me desse clareza. Eu só não me conhecia o bastante. Envelheci dependente e apaixonada. Agora, acordei e estou aqui, tenho vinte e oito anos e estou noiva de um bom homem, mas ainda me sinto infeliz.
Observo a água da banheira quase cheia mudar de cor quando jogo os sais de banho de lavanda dentro dela, os tons se abrem e oscilam e o perfume preenche o lugar. Eu não amo Sota e sei que nunca vou amar. As pétalas soltas se agarram aos meus dedos quando verifico a temperatura. Estou sendo mimada e egoísta por brincar com seu coração desse jeito.
Enfio as pernas e me sento na base de porcelana, imergindo na água antes que as lágrimas comecem a cair. Tudo fica em silêncio por um instante, mas ainda posso ouvir a verdade gritante que odeio admitir em voz alta, não posso poderei fugir disso para sempre, relutar e mentir, a verdade era que eu não conseguia esquecer Jungkook.
🌸
Durante a madrugada, uma nevasca despencou e não consegui dormir, ainda estava alerta por conta do álcool no sangue, atenta aos comunicados do hotel sobre a previsão do tempo.
Nada na TV me atrai, nenhum filme parece interessante pelas sinopses rasas do serviço de streaming e enquanto ignoro as mensagens e fotos que Sota envia a cada hora, me tornando uma grande babaca sem precedentes quando álcool fala mais alto, só quero desaparecer dali.
Meu dedo deslizou pelos contatos salvos, parando exatamente no nome inventado que Jungkook havia criado uma vez. Não fazia ideia se aquele permanecia sendo seu número mas duvidava muito, já que com uma frequência incomum ele acabava trocando para se manter protegido das ligações e mensagens anônimas que recebia constantemente.
A ideia que passou pela minha cabeça tinha gosto de culpa, assim como a ridícula consequência dela. Porque eu sabia, naquele exato momento, que ir adiante, não me deixaria voltar atrás nunca mais.
Disquei o número na tela e esperei que a chamada fosse confirmada, caindo direto na caixa postal. Meu coração tamborilou alto no peito, a decisão por si só era errada demais, mas talvez, se apenas pudesse ouvir a voz dele, algo dentro de mim se ajustasse de uma outra forma. Um adeus definitivo seria crucial. Algo que, em outro momento, eu não teria dito da maneira certa, mas agora, eu saberia, e então, poderia seguir em frente. O bip fez minha respiração parar por um instante.
— O-oi! Sou eu. Não sei se esse ainda é seu número, mas só queria dizer que tô aqui em Seul e só tô ligando pra saber como você está, então, como vão as coisas por aí? Hummm, sei que não deveria ter ligado, eu realmente não deveria. Me desculpa! Foi estupidez. Espero que esteja bem! Boa noite!
Desliguei como se um raio de sobriedade tivesse me atingido na dimensão da merda que havia feito. Assisti a ligação se encerrar com minha mensagem gravada e enviada para o contato cujas iniciais fantasmas me direcionavam somente a Jungkook.
Minhas bochechas queimavam, minhas mãos estavam geladas, mas sabia que tudo não passaria de um engano e que muito provavelmente, alguém me enviaria um torpedo avisando que aquele número pertencia a outro proprietário.
Contudo, o celular tocou outra vez com o mesmo contato brilhando na tela e uma sensação anestésica preencheu meu corpo. Alcancei o aparelho, apoiando contra a orelha e esperando que a voz do outro lado me confirmasse que tudo não havia passado de um engano.
— Noona? É você? — A voz suave dele, tão familiar, penetrou meu corpo inteiro.
Meus lábios se moveram, em silêncio, havia perdido a voz.
— É você, não é?
— Desculpe ter ligado, eu realmente não deveria ter te incomodado!
— É muito bom te ouvir de novo. — Sua respiração parecia ofegante.
— Eu te acordei? — Fiquei de joelhos no colchão, encarando meu rosto vermelho refletido no espelho lateral.
— Não, estava me exercitando um pouco.
Um silêncio constrangedor uniu nós dois.
— Está tudo bem? — ele perguntou, sua voz parecia menos extenuada.
— Sim, está. E você, está bem?
— Hum, sim.
— Que ótimo, então, boa noite, desculpe ter te atrapalhado...
— Eu posso te ver? — Sua pergunta teve a mesma sensação de um soco, porque era tudo que eu menos precisava neste momento, vê-lo outra vez seria ainda pior.
— Eu acho melhor não, eu tô aqui a trabalho e tenho uma papelada para entregar esse fim de semana, não sei se terei tempo de sair do hotel mais tarde.
— Pode ser agora?
— Agora?
— É, estou em casa, você quer vir aqui? Queria te apresentar alguém!
— Não sei se posso.
— Qual hotel você está? Vou mandar um táxi pra te buscar.
— Se chama... hummm, — meus olhos passearam até a cesta, lendo o nome em letras garrafais douradas. — Park Hyatt, 606, Gangnam.
— Não é tão longe do meu apartamento, te aviso quando ele estiver chegando, certo?
— Certo.
— Você já comeu? Posso preparar algo para nós dois!
— Jungkook, eu acho que não deveríamos -
— Vou preparar algo que você adora! — ele disse, sorrindo. — Estou animado pra te ver.
Desliguei o celular antes de tentar tocar os pés no carpete do quarto outra vez, tropeçando em uma peça de roupa largada até alcançar a mala aberta na poltrona.
Meu coração havia explodido e expelia sangue e entranhas pelo chão, paredes e móveis do quarto. Estava gravado nas janelas, visível a olho nu para qualquer um com um olhar mais atento, não podia esconder e segurar o que parecia parcialmente curado dentro de mim: eu o amava, eu o amava, eu o amava.
Sabia bem que tinha sido irresponsável por aceitar seu convite, porque eu havia procurado Jungkook e aquela situação inteira como se não soubesse o resultado daquela equação.
Repassei mentalmente tudo que deveria dizer: que estava feliz em vê-lo, que Berry sentia falta dele, que estava noiva de alguém especial e que desejava que ele fosse muito feliz.
Talvez Jungkook também tivesse alguém, naquele meio tempo, tanta gente interessante surgiu em seu caminho, pessoas que se encaixavam ali, no seu tipo certo de vida, que saberiam lidar com uma exposição iminente sem serem destruídas por ela, se fosse o caso.
Vesti as peças de roupa conforme meus olhos foram encontrando-as dentro da mala: um jeans confortável, um moletom mais quente, o par de tênis que continuavam esquecidos no fundo da bagagem, e na porta, alcancei o sobretudo e a bolsa. Agarrei o celular largado na cama com a nova mensagem de um contato arquivado como se tivesse desenterrando o passado por vontade própria.
"Ele está a caminho!", a mensagem no aplicativo dizia, ao lado das tantas outras de Sota acumuladas com fotos de Berry adormecido.
Me olhei no espelho e meu rosto denunciava uma expressão assustada, as bochechas rosadas e os cabelos levemente desgrenhados que tentei amenizar deslizando os dedos por entre os fios.
Parecia uma completa idiota e era, por reabrir uma ferida que não havia se curado direito, mas que há tempos não era lembrada ali.
Chamei o elevador e esperei por alguns segundos até as portas se abrirem e minhas pernas tremerem pelo que estava prestes a fazer.
O saguão do hotel estava vazio, a meia-luz, caminhei até a porta e avistei o taxista ao lado do carro, segurando o celular com meu nome romanizado de forma fofa em um aplicativo de mensagens de LED: Sopi-ssi.
Caminhei até o carro e enquanto avançávamos por dentro de uma Seul mais tranquila e carregada de neve, meu coração também tremeu. 01h32 da manhã e eu deveria saber muito bem que aquela visita custaria caro para nós dois.
Queria controlar o tempo e evitar um estrago, estava me encaminhando para o precipício com o desejo de pular, mesmo que já tivesse experimentado as consequências da queda um milhão de outras vezes. Os danos irreparáveis de um amor que era controlado por muitos, não só pela vontade de nós dois. Pensar nisso, às vezes, me deixava maluca. Parecia que era necessário lutar o dobro para conseguir viver a própria vida, o preço era sempre alto demais para se pagar.
Quando o carro parou diante do complexo de apartamentos luxuosos, me dei conta de como estive de fora de sua verdadeira vida.
Meu apartamento minúsculo, que mal cabia nós três, era um universo de distância daquele lugar que ele vivia e podia chamar de seu.
Fui acompanhada por um homem uniformizado que se esforçou nitidamente para conversar em inglês comigo, foram meia dúzia de palavras trocadas no caminho marcado por ladrilhos ostensivos entre a quantidade significativa de neve. As mesas de piqueniques montadas estavam protegidas devido a nevasca, na área das garagens ele apontou a direção que deveria seguir e entrei passando pela porta pesada de vidro. Alcancei o celular para ligá-lo, mas o elevador direcionava somente para um andar, que era, provavelmente, o do seu apartamento.
Contei os segundos enquanto encarava a tela do celular com uma foto de proteção de tela que lembrava que Sota ainda me esperava em nossa casa, com Berry e nossa vida, aquela que não precisava omitir e chamar somente de minha.
As portas do elevador abriram para um corredor iluminado, cheio de espelhos e peças de carvalho por cima de uma tapeçaria bonita. Havia apenas duas portas, mas apenas uma com numeração diante da tranca digital. Bati de leve, esperando que de alguma forma nunca tivesse resposta e pudesse ir embora sem qualquer dano. Mas ouvi seus passos e outra vez fui paralisada por eles, o som doce de sua voz se aproximando da porta que me guiava somente em direção ao passado, e então, seu rosto surgiu, como uma aparição, assim que ela foi aberta.
Queria dizer que não fui capaz de sentir nada ao vê-lo outra vez, que o nervosismo não me deixou assustada, que meu coração não parecia ter sido estilhaçado em milhões de pedaços como quando ele apareceu em minha porta, molhado até os ossos, pedindo para que eu não o deixasse ir embora. Eu o amei tanto naquele momento que poderia ter me esquecido de uma vida inteira; do que prometi, de quem fui ou o que queria. Tola o suficiente para colocar tudo a perder.
Parecia que nada havia mudado de verdade. Que o tempo não havia passado com sua crueldade resoluta e necessária. E ainda éramos os mesmos daqueles dias felizes.
Mas já não existia um nós. Existia Jungkook e eu existia eu. Com vidas e realidades dolorosamente diferentes.
Contudo, o sorriso, tão bonito de Jungkook, iluminou meu mundo outra vez. Cada parte obscura, cada vertente sombria de um medo irracional de nunca mais sentir de novo foi aniquilada pela ressaca de sentimentos que me inundou.
Jungkook estava mais forte que antes, parecia um pouco mais maduro também; com um rosto de traços mais marcantes e uma confiança visível, mas os olhos continuavam com a mesma doçura de sempre. As tatuagens completavam agora o braço esquerdo, subindo pela curva de suas costas até a nuca, se perdendo por dentro da camisa na imensidão da pele intocada, partes novas para as quais eu nunca havia devotado amor.
Costumava ser a ação crucial de nossos primeiros e infinitos encontros: nossas roupas se amontoando no chão, enquanto era devorada por um silêncio que só era rompido por desejo.
Mas ali, o medo crescente no meu estômago me fez querer gritar.
— Nem consigo acreditar que você veio. — ele disse, prontamente. — Entre, Noona, entre. Desculpe ainda estar vestido assim, fiquei com medo que chegasse enquanto eu estava no banho, então preferi esperar. — As roupas suadas e os cabelos úmidos, sutilmente puxados para trás, denunciavam que era verdade o que havia dito: ainda estava acordado quando tive a brilhante ideia de procurá-lo. Péssima hora para rever o passado. Olhá-lo de perto, agora, chegava a me causar dor física. A adoração em posição de impossibilidade deveria ser tranquilizadora: nunca ter e nunca perder.
— Não se preocupe, eu... eu só queria saber como você estava, não vou demorar. — falei e ele sorriu outra vez.
— Você está tão bonita, noonim. — disse ele — Esse cabelo combina muito com você. — Seu dedo tocou a ponta do cacho, enrolando-a em seu dedo.
— Vem, quero que conheça alguém! — guiada pela mão até o meio da sala, reparei no quanto a casa inteira tinha um pouco de tudo que era dele; suas cores favoritas, seus aparelhos tecnológicos caros de academia, instrumentos musicais no canto do sala, suas bobagens eletrônicas e suas essências favoritas.
O dobermann de aparência doce, deitado ao lado do sofá, esticou o rabo para o alto assim que me aproximei.
— Meu Deus, ele é lindo.
— Este é o Bam! Pode vir, não se preocupe, ele é muito dócil. — Bam se esticou de um lado para o outro e se aproximou, farejando minha roupa.
— Deve estar sentindo o cheiro do irmãozinho. — Jeon disse, quando me sentei ao lado da cama de Bam para acariciá-lo. — Queria que Berry pudesse conhecê-lo também.
Pensei nos comportamentos rebeldes de Berry com Sota e sua animosidade com qualquer outra pessoa, como se ele fosse o guardião da verdade que custava a querer encarar: queria Jungkook e mais ninguém naquela casa.
— Você é muito lindo, sabia Bam?! Enorme e lindo. — falei, deixando um beijinho em seu focinho úmido. — Deve ter um papai bem orgulhoso.
Jungkook riu. Observando Bam me rodear de um lado para o outro.
— Vem, deixa eu te mostrar o resto do apartamento. Eu me mudei há uns oito meses, não está completamente decorado.
Caminhei por entre os corredores, portas gigantescas, salas, varandas, seu estúdio. Havia fotos bonitas em porta-retratos novos, polaroids penduradas, quadros, uma foto de Berry descansando em seu peito ao lado de uma foto recente de Bam.
— Meu quarto é esse aqui — Caminhei com a cautela necessária de quem teme uma descoberta, por mais que no fundo soubesse que em algum momento existiria alguém, confrontar a informação de uma peça ou um rosto que desse vida a esse pesadelo ainda me dava medo.
— É lindo, tem vista pra cidade inteira, não é?
— Uhum!
Ao lado da sua cama, havia uma foto nossa, de muito tempo atrás. Um Jungkook sujo de tinta amarela e eu, pendurada ao seu redor, nossas bochechas coladas uma contra a outra, os olhos fechados pelo flash cegante da câmera. Uma época mais fácil, antes de tudo desmoronar.
Toquei o porta-retratos, posicionando a foto para baixo antes de olhá-lo outra vez.
— Suas namoradas não se incomodam com isso aqui? — disse e Jungkook revirou os olhos, puxando os cabelos para trás. — Não me diga que ficou sozinho nesse tempo, com sua popularidade, eu acho impossível.
— Não tive nada sério, se é isso que quer saber. — Ele falou, ajustando a foto outra vez na posição correta — Achei que enlouqueceria sem você — sussurrou, as mãos encaixadas nos bolsos de sua calça esportiva, os olhos acompanhando os movimentos mínimos de meus passos calculados.
— Você parece feliz. — rebati, — de alguma forma, isso me deixa mais aliviada.
Caminhei até a janela imensa do seu quarto, os vidros que iam do teto até o chão permitiam que as luzes da cidade invadissem o lugar. Toquei a base com a ponta dos dedos, vendo minhas digitais desaparecerem no reflexo.
— Aliviada?
— É um sinal de que você está bem, e saber que você está bem me deixa tranquila.
Suas mãos cercaram minha cintura, o rosto descansou carinhosamente em meu ombro.
— Me sinto melhor com você aqui comigo.
Minha respiração embaçou o vidro, ocultando o meu reflexo momentaneamente.
— Estou noiva, Jungkook. — comecei. — Queria que soubesse disso antes de qualquer coisa.
O silêncio brutal de sua distância me atingiu em cheio. Seu rosto, agora afastado, já não me olhava mais.
— Oh, entendo. — a voz do Jungkook rompeu o silêncio instaurado entre nós. Desesperançosa e perdida. — E como ele se chama?
— Sota. — falei, dessa vez, forçando um sorriso amigável.
Sua boca sibilou o nome duas vezes.
— E ele é bom para você?
Mais do que mereço.
— É, ele é um homem ótimo.
Jungkook parou ao meu lado, a mão pousou ao lado da minha na camada interna do vidro. Vi seu rosto pelo reflexo, as lágrimas escorrendo sem parar, não havia relutância alguma em pará-las.
— Não vim aqui para te machucar, acho que foi uma péssima ideia ter vindo. Eu já vou indo! — Me afastei, cega pelos meus próprios sentimentos, tentando não deixar nenhum traço de minha vinda por ali. Caminhando porta afora, até o corredor imenso de seu quarto.
— Por favor, não vai. — sua mão tocou a minha, seus olhos observaram a aliança em meu dedo, antes de me olharem outra vez, mais tristes. — Fica comigo.
— Acho que isso não será bom para nós dois, você sabe.
Senti seus braços ao meu redor assim que meu corpo fez a rota contrária em sua direção.
Sua testa repousou em meu ombro, as mãos ao redor de minha cintura, me puxando para perto, sua respiração ofegante, enquanto seus lábios tocavam meu ombro, me fazia tremer por dentro e os meus dedos, como dispositivos táteis inúteis, pairavam no ar sem capacidade de tocá-lo outra vez.
— Você o ama? — Seu cheiro dançou entre minhas narinas, uma mistura doce de suor e perfume.
— Sota é muito especial pra mim.
— Você o ama? — ele continuou — Não precisa mentir para mim. — Seu rosto, agora, diante do meu, parecia me ler com uma facilidade inteligível. Jeon ainda me conhecia bem ao ponto de me decifrar. Mentir seria só uma tentativa ridícula.
— Eu vou aprender a amá-lo do jeito certo.
— Se você tiver certeza que será feliz ao lado dele, eu vou viver bem com isso. Eu te prometo. Não posso te pedir para ficar comigo, eu não posso exigir nada depois do que fiz. Eu quero tanto que você seja feliz que posso abrir mão do meu amor se for preciso. Eu te amo demais para te assistir vivendo uma vida infeliz ao meu lado. — As lágrimas inundaram seu rosto. — Só dói tanto saber que você nunca mais precisará de mim. — Seu rosto outra vez se escondeu em meu pescoço, sua nuca aquecida por baixo de minhas mãos, que agora o tocavam. Seu corpo inteiro tremia.
— Não precisa ser assim, ainda podemos ser amigos. — falei, mesmo que soubesse que aquela era a resolução menos adequada.
— Não vou conseguir ser seu amigo. — Ergui seu rosto entre as palmas de minhas mãos, absorvendo todos os seus detalhes delicados e familiares outra vez.
O formato bonito de sua boca, seu nariz longo e seus cílios imensos e escuros, úmidos, pelas lágrimas que pareciam não ter fim.
— Você ainda me ama? — Sua pergunta se perdeu no meio de um soluço que fazia seu peito romper o processo de inspirar e expirar.
— Claro que eu te amo, essa é a razão de ter vindo até aqui. De tudo isso. — respondi — Mas também sei que não sirvo para essa vida e não quero e nem posso te pedir para abrir mão de nada por minha causa. É o seu sonho, não é? Sempre foi. Eu tenho certeza que você encontrará alguém que te fará feliz de verdade, Jungkook. Alguém que faça parte da sua rotina da maneira que deve. Que entenda o seu mundo inteiro e caiba nele. Me desculpe, por favor, me desculpe por não poder ser essa pessoa.
As mãos de Jungkook alcançaram meu rosto, virando meu corpo contra a parede fria.
— Se por um momento, você não tiver certeza do que sente por ele, por favor, não case. — Seu nariz tocou minha bochecha, senti sua respiração ofegante contra a minha boca me fez querer pará-lo, sabia que não seria capaz de sair por aquela porta se ele me tocasse.
— Se você me beijar agora, vai me arruinar para sempre. — sussurrei. — Eu não sou uma traidora, Je.
Seus olhos se abriram lentamente, me olhando mais de perto outra vez.
— Eu tô sendo inconsequente de novo. Me perdoe. — ele deslizou as mãos pelo rosto, enxugando as lágrimas. — Às vezes eu perco o controle.
— Tudo bem. — Toquei seu rosto, suavemente. — Tá tudo bem.
Ele se afastou até o meio da sala, respirando fundo.
— Antes de ir embora, eu quero que leve isso.
— O que é?
— Eu fiz pra você, é um diário com a linguagem das flores. — Tirei a embalagem bonita que envolvia o caderno feito à mão.
— É lindo, Jungkook! Obrigada.
— São 365 flores, uma para cada dia. — disse ele — Um ano de Primavera.
Hanami, o ato de admirar as flores.
Estava pintado contra a capa amarela.
— Prometa que não vai me esquecer!
Não iria esquecê-lo nunca.
Quis responder isto quando o abracei apertado e o olhei de perto, antes que a porta se fechasse atrás de mim, quando caminhei de volta ao elevador e sabia que ali, era o fim, para sempre.
Não iria esquecê-lo. Não iria. Não iria.
E por saber disso, não podia seguir adiante.
🌸
N/A: Hanami se encaminha para a reta final.
Escrever essa história ainda me causa um rebuliço interno, não importa o tempo que passe, estar na cabeça desses personagens e viver essa história de amor contada através dos olhos de outra pessoa sempre foi um presente agridoce.
Os próximos capítulos serão decisivos, o que vocês acham? Com quem ela deve ficar?
Obrigada a todos que tiraram um tempinho para ler, comentar e acompanhar minha primogênita, saiba que leio e "escuto" cada um de vocês. Peço desculpas por qualquer errinho, tentarei revisar outra vez durante a semana.
A gente se vê!
— Com carinho, Sô.
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