XII - Deuses e Semideuses
A visita de Hevele não poderia ter sido menos oportuna, justamente em um momento como aquele onde segredos eram revelados e incidentes cada vez menos parecidos com incidentes, aconteciam num nível alarmante, ao ponto de não serem mais considerados inesperados. E a visita de sua mãe não era para menos, Hevele provavelmente estava a par dos acontecimentos e veio pessoalmente interferir. Reencontrar Agani foi uma bela surpresa, mas isso só fazia Camie perceber que todos os acontecimentos repentinos não eram por acaso, havia um propósito mórbido por trás daquilo, portanto a retirada do Império das Trevas na batalha inicial não foi acuada, mas sim estratégica.
Desde que Thamuz aprendera misteriosamente a burlar as regras das dimensões, ele têm atacado impetuosamente, exatamente como Hevele fizera no início. Portanto, ele jamais enviaria um exército sem ter um plano muito bem orquestrado. E pelo andamento das situações, a ideia não era apenas atacar. Ele queria conferir, checar se o que ele procurava realmente estava em Paladia. E para o infortúnio de Camie, provavelmente ele teve sua confirmação. A possessão de Stacy não fora por acaso, tampouco a aparição de Moriah na floresta densa. Talvez até mesmo a ida de Crixus, Leger e Lárissa tenha sido estratégica. O reino ficou desprotegido, à mercê de um novo ataque destruidor onde só restaria uma opção: usar todo o seu poder de guerra e isso, incluía Stacy. "Porém, se ele sabe mesmo que estamos parcialmente desprotegidos e não atacou, significa que ele não tem a intenção de causar uma destruição em massa, pelo menos, não agora." Pensou Camie, refletindo.
- É por isso que estou aqui. - Hevele surgiu adentrando o escritório real, cheia de altivez, emanando uma presença medonha. Não era para menos, Hevele sempre gostou de ter um ar sombrio e subjugar todos ao seu redor. Agir assim, sempre foi de sua natureza. - Sei o que está acontecendo, Camie. Thamuz está preparando uma jogada final... - Hevele fechou o semblante, visivelmente incomodada com a simples menção do nome dele. - Estou aqui para garantir que ele não ganhe.
- Eu dou conta dele, mãe. Já o venci outra vez. - Camie levantou da poltrona e ficou de pé, encarando a mulher que fechava ainda mais o semblante para devolver o olhar antipático e ameaçador para a filha.
- Não estou lhe pedindo para participar. E se for do meu interesse tomar a coroa e liderar no seu lugar, eu o farei! - Hevele ajeitou sua postura e manifestou uma pequena centelha do seu temido poder. - Eu sou a suprema de Homereia e você serve a mim.
- Isso está parecendo uma disputa de poder entre você e ele. Mas, você sabe que ele não está fazendo tudo isso por sua causa. - Camie disse, erguendo o próprio corpo para responder à altura.
- Obviamente ele está em busca daquela garota. O maior erro da sua vida. E eu a teria polpado desse estorvo que você chama de filha... - Hevele caminhou até a janela, revelando uma perna exposta na abertura lateral de seu vestido cor de vinho. - Thamuz não vai parar até pegá-la. Stacy é o maldito osso que o cachorrinho não quer soltar...
- Chega, Hevele. - Camie disse pausadamente, fechando os olhos com força, então abandonou o recinto. E mesmo que Hevele entoasse sua voz grossa numa ordem direta para que ela ficasse, a rainha não lhe deu ouvidos. E durante seu trajeto até o jardim, Camie se perguntou quando ela começou a agir assim, quando ela passou a encarar de frente sua mãe. Porém, a resposta lhe parecia tão... Óbvia. O motivo era Stacy. Ela a amava de todo o coração. Tendo ou não o sangue de Thamuz, Stacy continuava sendo a sua filha querida. E assim como todos que Camie jurou proteger, ela defenderia sua filha do jeito que não pôde fazer com Andreena.
O jardim estava ainda mais belo do que Camie se lembrava, e faziam quantos dias desde que ela esteve lá para regar suas rosas ? Nem ela mesma sabia dizer. Porém, se ela se concentrasse por um segundo e forçasse sua memória a lembrar, ela recordaria que haviam semanas e suas flores favoritas continuavam belas. A rainha ergueu sua vista para cima, buscando com o olhar a garota na torre, debruçada no parapeito da janela, os cabelos brancos balançando com o vento e seu rosto com aquela expressão que nem parecia ser uma expressão. Sua filha Stacy não era como Crixus que transbordava forte sentimento de justiça e lealdade, bem como realeza e caráter, protegendo sempre os seus. A mais velha também nem de longe era como Isis, aquela doce flor tão delicada com aquele semblante aguado, como se sempre estivesse à um passo de cair no choro. Isis era muito sensível e preocupada com outros, cheia de amor e doçura... Já Stacy... Era difícil ter uma imagem boa ou ruim de sua filha. Praticamente todos pensavam desse modo.
Stacy não era uma pessoa de muitas palavras, ou a mais paciente. Em todas as vezes que Stacy fez alguma coisa, foi apenas por se ver na obrigação de interferir. Esta sua filha tampouco se parecia com Andreena. Apesar de ter sucumbido ao mal, Andreena era muito bondosa, gentil e amável, amigável com todos, ela era uma leoa corajosa. Camie nunca imaginou que uma alma tão pura quanto a de Andreena fosse tomada por tanto ódio e sede de vingança exarcebada. Camie podia lembrar-se dos dias felizes quando Asck resgatou Andreena da infame prisão no Mundo Mortal, onde ela era torturada por ser considerada bruxa e uma blasfêmia contra os deuses. Quando descobriu tudo, a rainha se culpou por todo aquele mal que ela indiretamente causara a sua própria filha. Sua única intenção era manter os deuses distante das gêmeas a que dera a luz.
Quando Thamuz descobrisse da existência delas, ele certamente as tomaria para ele e a intenções dele com certeza não seriam as melhores. Por outro lado, se sua mãe descobrisse, ela seria capaz de usar duas crianças contra Thamuz, afinal aquela rivalidade não tinha limites. Camie castigou-se mentalmente todos os anos em que passou distante de suas filhas, cumprindo cada ordem expressa de Hevele para desviar sua atenção. Camie disse tantas vezes para si mesma que o que ela estava fazendo era o mais sábio, que em momento algum cogitou que suas filhas poderiam estar sofrendo. E agora, tudo aquilo estava voltando, todo o passado do qual ela não conseguiu se livrar. Por mais que ela estivesse selando diariamente a conexão de Thamuz com Stacy, uma hora seus selos não adiantariam mais. Camie massageou um ponto no centro de sua testa, revelando por segundos um símbolo parecido com o desenho de uma circunferência que se afunilada numa espiral iluminada num tom dourado como ouro.
Aquele símbolo que ela escondia era nada menos que a representação física do seu dom misterioso. Camie de fato era uma telepata como muitos suspeitavam, ela tinha a capacidade de invadir mentes, destruir seu oponente apenas dando uma simples ordem. E foi usando desse dom precioso e oculto que ela quase pôs fim àquela rivalidade entre sua mãe e seu ex-amante, Thamuz. Ela vinha usando tanto desta habilidade para selar Stacy do alcance de Thamuz, que ela vinha definhando ao longo desses anos. Enquanto Camie regava suas flores pacientemente ponderando se ela realmente fez tudo o que estava a seu alcance, uma presença familiar se fez atrás dela. Uma aura sombria e um rosto coberto por uma máscara de prata.
- Não quero machucar você, Camie. - Thamuz disse, retirando a máscara e se aproximando de Camie. - Venha comigo. Todo esse massacre pode ser evitado se você me deixar levá-la. Você e a Stacy.
- Você nem sequer está aqui de verdade... - Camie virou para ele e tudo o que viu foram sombras ilustrando miseravelmente as feições do Imperador.
- Estar em Plandar é declarar guerra à Hevele. E eu já estou farto dessa rivalidade. - Disse o imperador, grotescamente.
- Então encerre esse massacre. Ou eu terei que impedi-lo novamente. - Respondeu a rainha seriamente.
- Só existe um motivo que me trás aqui e você sabe qual é. Tudo o que quero é levar minha filha para casa, mas você tem me mantido longe dela.
- Eu jamais permitirei que você a leve novamente. Você só está tentando derrotar Hevele. Stacy é apenas uma arma para você. - Devolveu a rainha.
- Eu a perdôo por sua ignorância. - O Imperador materializou-se das Trevas para diante de seus olhos, tomando seu rosto entre suas mãos e lhe dando um beijo gélido no topo de sua testa. - Peço humildemente que não fique em meu caminho, senão eu mesmo terei que matá-la.
Camie apertou os olhos com força, usando de toda a sua vontade para ficar em silêncio e assisti-lo partir, desfazendo-se como poeira, como se ele fosse apenas uma lembrança ruim que ela viu se apagar. Porém, para a sua infelicidade, ele não era apenas uma lembrança, tampouco iria se apagar. Contudo, Camie conhecia a verdade tão bem quanto gostaria. A telepatia não era um dom agradável, na verdade era um grande fardo carregar as lembranças e pensamentos de todos ao seu redor. Esse também foi um grande motivo para Camie ter pedido para Crowley gravar aquele símbolo em sua testa, ela queria parar de ouvir todas aquelas vozes, parar de agir impulsivamente nas batalhas, matando tão descontroladamente. A dor ainda era latente em sua memória, e isso era uma excelente notícia, pois sempre que lembrasse da dor, lembraria também do mal que impôs à tantas outras pessoas ao seguir decisivamente os caprichos de sua mãe.
Camie suspirou e voltou a olhar para cima, buscando o rosto singelo de Stacy, apenas para confortar o seu coração, porém quando dirigiu seus olhos para a torre, ela não a viu mais, então suspirou e voltou a molhar suas flores e podar alguns galhos salientes que despontavam para fora do arranjo. A brisa suave do verão balançava seus cabelos, suas mãos tremiam e o tempo ao seu redor se tornava mais frio, quando uma palma pálida cobriu sua mão e a guiou até uma cadeira para se sentar. Stacy não parecia irritada, triste, ou qualquer outra coisa, ela parecia uma mera expectadora. A garota calçou suas luvas e desabotoou o casaco, o jogando sobre uma cadeira, sentando-se logo em seguida.
- Você está brava comigo? - Camie perguntou.
- Não. - Respondeu Stacy, focando seus ofuscos olhos azuis nas pétalas avermelhadas que caíam.
- Ouça... Andreena é... - Camie foi interrompida.
- Eu sei o que ela é. - Stacy encarou sua mãe, revelando algo que Camie ainda não havia percebido. Os olhos de sua filha estavam secos, ofuscos e sem vida. A rainha inclinou-se para tocar no rosto de sua filha, mas foi impedida quando Stacy se afastou. - Coisas estranhas tem acontecido e agora eu entendo o porque.
- Há quanto tempo?
- O bastante. - Respondeu a garota, piscando devagar.
- Você esteve lá, não é? Do lado oposto ao que estávamos. Eu senti você. - Camie suspirou, cobrindo o rosto com a mão. - Você matou eles.
- Não era eu.
- Não minta para mim. - Camie tirou a mão do rosto e segurou na mão de sua filha. - Eu sei que era você.
- Você sabe de tudo, Camie. - Stacy desviou o olhar para as minúsculas estatuetas espalhadas pelo jardim. - Não pense que não sei o que está fazendo.
Camie abriu a boca para falar, porém sua filha se levantou e partiu, a deixando sozinha novamente. E pela primeira vez em séculos de sua vida, Camie se perguntou se não era melhor que a deixasse lembrar, talvez o passado não a corrompesse como aconteceu com Andreena. Porém, no cenário atual, Stacy não era nem mesmo um pouco confiável. A história se repetia, o ciclo de destruição estava fadado a acontecer. É preciso destruição para haver renascimento. Enquanto caminhava, Stacy lutava contra as vozes na sua cabeça, tentando apagar a mulher em chamas da sua consciência. Estava cada vez mais difícil de manter um raciocínio lógico, pois à esta altura, nem os selos de Camie poderiam conter o que estava por vir. Contudo, Stacy se deteve na metade do caminho, sendo barrada por aquela mulher de pele caramelada, cabelos longos e castanho-amendoados, e olhos investigadores. Parcialmente transformada, os braços de Agani formavam um manto sobre seu corpo nu, transmutados num belo par de asas tão grande que arrastavam no chão. Agani veio na direção de Stacy lentamente, caminhando com seus pés de pássaro.
- Você... é muito parecida com ela. Quando soube de você, eu não imaginei que seria tão fiel aos traços dela. - Agani proferiu, fazendo todo o seu corpo voltar a ser humano diante dos olhos da garota de belos cabelos brancos e um par de olhos azuis angelicais. "Decerto não é uma cópia exata, tampouco possui a vivacidade de Andreena." Agani ergueu uma mão para tocar o rosto pálido e inexpressivo de Stacy e ao fazê-lo, o toque de sua mão despertou lembranças em ambas. De um passado tão distante e proibido, que trouxe à tona o pior lado de Stacy.
Os olhos da garota de repente foram cobertos por uma nuvem branca, sua mão encontrou o pescoço macio de Agani, a enforcando no ar. Stacy estava em transe, totalmente absorta num mundo distante daquele, sonhando com um passado apagado onde duas meninas ganhavam um presente do pai, os presentes estavam presos dentro de duas gaiolas e cobertos por um manto. O rosto do pai das crianças estava embaçado, bem como o rosto das meninas e o tão aguardado presente dentro da gaiola. Enquanto Stacy se esforçava para visualizar aquela lembrança com perfeição, no mundo real Agani era esganada e se contorcia, usando de toda a sua força para separar-se do fantasma de cabelos esvoaçantes que pairava no ar.
- Sta... cy... m-me sol... te! Soc-socor- ro... - Agani se esforçava para falar, ou ao menos tentar transformar-se na águia, mas por algum motivo, ela não conseguia. Seu corpo já estava ficando mole, sua cabeça latejando de dor e seu coração batendo violentamente contra o peito.
- Agani! - Asck surgiu por um dos corredores, bem à tempo de pegar sua preciosa companheira de uma queda livre do alto do palácio de onde fora jogada desacordada.
Asck sacudiu o corpo inerte de Agani, dando tapinhas em suas bochechas, tentando espertá-la. Mas, nada a fazia abrir os olhos. O pescoço dela estava roxo e inchado, sua pele fria e sem cor. Asck então enrugou a testa, numa expressão desesperada de quem não queria acreditar no que via. Quando ele levantou os olhos irados para a garota pairando no ar, ele a viu estender uma mão aberta e fazer o tempo parar, congelando toda a superfície enquanto ela mesma ardia em chamas azuis totalmente fora de si. Num piscar de olhos, o ambiente estático que Stacy criara, passou a se tornar um caos, com uma grande tempestade e vendavais, seus olhos reluzentes como duas bolas de cristal faiscando uma energia jamais vista. Sem pensar duas vezes, Asck se debruçou sobre o corpo apagado de Agani, recebendo toda a rajada de poder da garota que pairava acima de sua cabeça, até que os cortes e a sensação de estar sendo esmagado foram latentes demais e ele soltou um grito rouco de desespero.
Mas, o desespero de Asck não era por conta sua situação, mas por se sentir imponente demais, sem forças para salvar Agani. Foi nesse exato momento que Camie surgiu no grande salão falando palavras misteriosas para Stacy, enquanto era quase arrastada pela forte ventania.
- Chega! - Camie gritou por fim, chamando a atenção daqueles olhos brancos medonhos. No instante em que Stacy visualizou os olhos de sua mãe, sua expressão voltou ao normal e ela desceu ao solo com a expressão confusa de quem não fazia ideia do que acabara de acontecer.
Do fundo do grande salão podi-se ouvir o som de palmas e ver sair da escuridão os olhos sagazes de Hevele.
- Como eu imaginei. Você está perdendo o controle sobre ela. - Hevele olhou para o corpo ferido de Asck enquanto ele tentava se recompor. - Você é fraca demais, Camie. É uma vergonha para Homereia. Veja só o que sua criação fez.
- Eu a salvei. - Camie disse, olhando diretamente nos olhos de sua mãe. - Diferente de você que só ficou assistindo.
- É o seu dever. Não deveria ser diferente. - Hevele olhou de Camie para Stacy. - Sua mãe fez um acordo comigo para que você fique entre nós. Caso ela não honre com a palavra, eu precisarei interferir.
- Eu sobreviveria com ou sem acordo. Mas, você pode tentar dar um fim nisso. - Stacy fulminou Hevele com os olhos, acendendo sua ira.
- Não ouça o que ela diz, mamãe! - Camie se jogou de joelhos sobre o chão e esfregou seu rosto no solo, implorando por perdão. - Pode me castigar, se quiser.
Stacy olhou para sua mãe naquela postura tão humilhante, esfregando o rosto em terra para se desculpar por ela. E a garota não evitou sentir ainda mais desprezo pela presença de Hevele. Contudo, a princesa podia enxergar muito bem agora o estrago que causara. Sozinha ela conseguiu destruir aquele lugar e machucar profundamente Asck, tudo sem a menor intenção. E aquilo não poderia incomoda-la mais. Seu corpo estava agindo involuntariamente, fazendo coisas que ela mesma não desejava fazer. Hevele caminhou tranquilamente até sua filha tola jogada sobre o chão e a olhou de cima.
- Seu pecado não é grave o bastante para que eu a castigue. - Hevele pronunciou calmamente. - Mas, não me deixe perder a paciência com sua filha tola.
- Não deixarei, mamãe.
- Stacy, arrume a sua bagunça. Isto é uma ordem. - Hevele olhou desafiadoramente para a garota de expressões nulas.
- Não sou sua filha para que a obedeça. - Stacy disse simplesmente e partiu para longe dali.
-Veja Camie, a ingrata que você criou. - Disse Hevele, completamente satisfeita.
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