VIII - Pernas de Prata

PASSADO

O gosto metálico em minha boca, aquele líquido forte e odorífero entraminhava em minha consciência. Foi esse sabor tão memorável que me despertou lembranças do meu passado, da minha infância, do momento para o qual eu gostaria de voltar. Eu podia sentir a floresta me engolindo, naquela imensidão de folhas e musgo, meu corpo era puxado para as profundezas na terra, sendo soterrado. Minhas narinas queimavam ao buscar por ar puro, mas eu já me sentia alheia ao meu próprio corpo sendo engolido. Aquele desespero pelo fôlego era tão doce e amável, que eu não quis resistir a ele. Minha pele formigava e meus membros já não pareciam mais tão pesados. Tudo estava tão leve agora. Leve e escuro.

Uma lembrança me ocorreu, um último brilho no fundo do poço, o último grito de desespero de um dia que eu queria poder esquecer para sempre. Aquele dia começou tão natural, eu era tão pequena e tão alheia ao mundo que me cercava... Lembro de acordar com aquela sensação de paz, uma tranquilidade que só existia naqueles dias tão coloridos. A época em que eu era capaz de enxergar mais que gotas de sangue espiralando do corpo de alguém. Eu acordei aquela manhã com o nariz de Isis enfiado no meu cabelo, respirando profundamente enquanto dormia. Seu rosto era tão pequenino e meigo, que cabia entre minhas mãos perfeitamente. Eu virei para ela, amparando seu rosto entre meus dedos e, por um breve momento eu senti algo, pequeno e aconchegante. Nunca soube interpretar o que foi.

Dei um beijo em sua testa e a trouxe até o meu peito, acariciando seu cabelo suavemente. Seu corpo franzino encaixava perfeitamente no meu, seus cabelos escuros como a noite destacando dos meus. Ela cheirava à flor de algodão, tudo nela era delicado e jovial, principalmente seu sorriso com belas covinhas. Naquele instante, ela abriu os olhos e ergueu seu olhar para mim, me abraçando bem apertado. Uma minúscula lágrima escorreu de seus olhos, aqueles enormes e redondos olhos violeta.

- Eu tive um pesadelo. - Ela balbuciou com a voz trêmula e meio rouca de sono. - Sonhei que você era levada para longe de mim. Pessoas más roubaram você de mim.

Ela me olhava tão profundamente, buscando por algum consolo, palavras gentis que lhe fizessem se acalmar e perceber que não passara de um devaneio, uma ilusão da sua própria cabeça.

- Selyn, me prometa que você nunca vai me deixar para trás. - Minha irmã enfiou-se entre meus braços e puxou meus cabelos para cheirá-los de olhos fechados. - Não posso perder você. Você é a melhor coisa que me aconteceu, eu sempre quis ter uma irmã mais velha.

- Isis... - Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ela me interrompeu, virando uma bolinha agarrada à mim, segurando-me com força como se não fosse soltar nunca mais.

A verdade é que eu não sabia o que dizer. Não sabia como ser a irmã que ela queria, com as respostas que precisava, o consolo que implorava. Lembro que alguns minutos depois, ela acabou me soltando e me pedindo para banharmos juntas na banheira do meu quarto. E eu acatei o seu pedido, me despindo para entrar na banheira. A água estava morna e cheirava a jasmin. Isis entrou em seguida, sentando sobre meu colo com as bochechas rosadas. Eu lavei seu cabelo, esfreguei suas costas e depois, quando ela já estava ficando com os dedos enrugados de frio, eu saí da banheira para buscar uma toalha seca e enrolar seu minúsculo corpo infantil.

- Quero pentear o seu cabelo. Posso? - Ela me pediu, com aqueles olhos grandes e tristes.

Assenti com a cabeça e busquei pela escova. Ela vestiu seu vestido rosé e correu animada até mim, esperando que eu terminasse de me vestir para que ela pudesse pentear meus cabelos brancos. Sentei no chão com os cabelos soltos e cruzei as pernas, enquanto ela escovava meu cabelo com um lindo sorriso de covinhas, ansiosa com aquela brincadeira. Era engraçado como ela sempre se esquecia das coisas ruins tão rapidamente, substituindo um momento infeliz por um momento de alegria. Ela era tão boa nisso, em enxergar a beleza nas piores coisas, até mesmo em pessoas que não possuíam beleza alguma. O mundo aos seus olhos era brilhante e colorido, gigante e enfeitado, um verdadeiro sonhar acordada.

Algum tempo depois de satisfeita, ela me puxou pelo punho para descer até a mesa onde era servido o café da manhã. Lá, Rosalind nos aguardava com um esvoaçante rubor nas bochechas. Ela parecia um tanto irritada e outro tanto envergonhada, o motivo para isso é que repetitivamente algumas de suas roupas desapareciam e ela não sabia quem era o culpado. Isis cochichava no meu ouvido, fidelizando seus segredos, contando somente a mim que viu um dos soldados roubando as camisolas de Rosalind. Um soldado muito bonito que tem uma irmã que também trabalha no palácio, minha irmã acrescentou ao pé do meu ouvido, dando risadinhas contentes.

- Bom dia, meninas! - Rosalind esboçou um sorriso à contragosto.

Enquanto a conselheira real nos servia, minha mente vagueava pelos sons do palácio, buscando a voz da minha mãe, procurando com os ouvidos uma prova de que ela estava por perto. Porém, como rainha, Camie sempre estava muito ocupada e ausente, por mais que quisesse passar mais tempo com os filhos, seus deveres a impediam de fazê-lo. Camie não era como Oceano. Oceano sempre estava presente, me cercando com seus sussurros, me ensinando coisas novas, me guiando pelas suas águas, dedicando toda a sua atenção para mim. E como Oceano deveria estar agora? Porém, minha verdadeira mãe não era uma entidade das águas, Camie era uma rainha, cheia de responsabilidades.

Crixus estava muito desperto naquela manhã, mantendo a compostura de um príncipe, seus olhos brilhantes perfurando minha alma à procura de algo. Ele sempre teve esse olhar investigador, de quem despe alguém por inteiro sem tirar uma peça de roupa, todos diante dele pareciam seminus, vazios e expostos como quadros numa galeria. Ele comia as frutas em seu prato recatadamente, esbanjando aquela aura de homem adulto. Foi naquele momento, no intervalo entre o garfo espetado no melão e sua boca se abrindo para engolir a comida que eu ouvi o primeiro anúncio das Trevas.

Uma rajada de fogo cortou o tempo paralisado diante dos meus olhos, destruindo tudo o que acertava em sua trajetória, banhando o caminho de lavas de fogo fervente e matando as pessoas que por infortúnio não a viram chegar. Rosalind se jogou no chão, puxando Isis pelos ombros e a envolvendo com seu próprio corpo, sendo a barreira entre a criança e as chamas que se acenderam por toda parte. Crixus foi jogado contra o chão, batendo a cabeça contra uma taça de vidro. Um filete de sangue escorreu de sua cabeça, anunciando o talho próximo à orelha.

Ele tocou o ferimento com a ponta dos dedos e examinou a textura do próprio sangue, perdido no tempo sem entender o que acabara de acontecer. Rosalind levantou-se com um semblante de desespero e as costas sangrentas e queimadas, dotada de agonia para alcançar o jovem príncipe sem soltar a pequena menina de olhos violeta dos seus braços. A mesa do café da manhã que outrora estivera no centro de todos, agora não passava de monte de destroços espalhados pelo palácio. Só restava eu, ainda de pé, visualizando aquela horrível cena que se fazia ali.

Um urro louco atingiu meus ouvidos, preenchendo-os surdamente de calor. Aquele som estrondoso vinha de um enorme dragão negro, seu corpo coberto por escamas enegrecidas pelas Trevas, sua garganta visível e latente, brilhando com o fogo que estava prestes a cuspir. Os dentes afiados e os chifres pontudos, seu corpo alongado e um homem montado sobre seu lombo. Eu estava paralisada diante do enorme dragão, surda demais para ouvir os gritos loucos de Rosalind, pedindo que eu corresse. Meus olhos estavam perdidos na fera de garganta brilhante, em seus olhos avermelhados de uma ira incontrolável. O mundo ao meu redor desabava, o chão se desfazendo debaixo dos meus pés, as paredes ruindo com um som estrondoso. Não havia mais nada em minha mente, não havia som, nem choro, nem explosões, estava tudo silencioso enquanto as chamas ardentes vinham em minha direção, aquecendo meu corpo.

O calor que emanava na garganta do dragão não chegava a mim, isso porque havia uma barreira invisível entre as chamas e eu. Porém, quando o dragão fechou sua bocarra medonha, eu senti meu corpo despencar, caindo levemente em direção aos destroços do que antes fora uma ala do palácio. Quando senti o choque do grande peso que meu peso ganhou na queda, meus ossos pareciam ter rachado em milhões de fragmentos e sangue escorria da minha boca, minha visão estava borrada, meus ouvidos zumbiam e minha cabeça latejava de dor. A dor, no entanto, não era a pior de todas. Na verdade, ela era a parte mais humana e palpável de todo aquele cenário caótico. A dor vinha como um abraço sombrio, uma canção de boas-vindas, um banho quente na banheira...

Essa foi minha primeira morte, ou pelo menos, a primeira de que me lembro. O silêncio aconchegante da morte, o cheiro gostoso de metal na boca, aquela dor quase letárgica e paralisante envolvendo cada célula do meu corpo... Não era de todo mal, não era assustador e também não era doloroso ao extremo. Quando se morre a primeira vez, há o vazio esperançoso do escuro, a leveza de uma pluma, a frieza amigável da sua alma se contorcendo pela primeira vez. Porém, também existe a parte ruim. O momento em que os sons voltam, que o sangue volta para o seu corpo, seus ossos trincam encontrando novamente seu lugar e então, há a luz. A luz que geralmente vem com um grito de despertar. É nesse momento, que a luz da vida me alcança novamente e eu pisco os olhos para enxergar a catástrofe que me cerca.

- Stacy! - O grito de despertar chega aos meus ouvidos. - Selyn! - E vem acompanhado de uma memória, de um motivo para agradecer à morte por ter me abandonado antes da hora. - Selyn! Selyn!

Ao ouvir a voz rouca e infantil aos prantos de Isis, meu coração palpitou novamente, bombeando sangue violentamente pelo meu corpo, despertando de vez a minha consciência. Levantei do chão num rompante, apenas para ver a lastimável cena de Isis sendo arrastada pelas pernas, abocanhada pelo dragão, que a devorava viva. Dei um salto, me levantando às pressas, com aquela sensação horrível me consumindo por dentro, então, mãos firmes me seguraram pelos braços, uma mão dedicada a apertar meus pulsos e a outra a erguer minha cabeça para assistir a cena. A terrível cena de minha irmã tendo as pernas arrancadas e devoradas violentamente. As unhas afiadas da mulher que me segurava espetavam minha testa e sua risada era de pura satisfação, uma risada que preenchia meus ouvidos e me lacerava ao meio.

- Veja bem, garota e guarde essa cena em suas lembranças. - Disse a mulher.

- Isis... - Murmurei para mim mesma, enquanto lágrimas quentes rolavam em minha face. Seus gritos de dor ressoavam na minha memória, ecoando infinitamente.

- Vim convidá-la a se juntar ao seu pai e esse é meu bilhete. O que me diz? - Sussurrou a mulher ao pé do meu ouvido. - Ou posso mandar que arranquem cada membro por vez, o que acha? Vai querer ver isso?

Moriah falava baixinho ao pé do meu ouvido enquanto Isis delirava de dor, sangrando muito, gritando e chorando por mim. Minha irmã me pedia socorro e eu só podia assistí-la convulsionar de dor, ouvindo ameaças perturbadoras.

- Por favor, não! - Gritei, desesperada. - Polpe-a, não a machuque mais, por favor!

- Perfeito. Mas, caso você se rebele ou tente qualquer coisa, ela não perderá apenas as pernas! - Moriah sorriu ao meu ouvido.

Naquele momento, não existiam muitas perguntas. Eu não queria saber o porquê estava sendo levada, quem era o meu pai ou porque ordenara algo tão cruel. Minha mente estava paralisada no exato momento em que minha irmã me fez seu pedido mais sincero, sua voz estava entraminhada nos meus pensamentos. Enquanto eu era arrastada sem relutância, sem gritos, sem nenhum barulho, concordando com um trato onde eu nem sabia o que estava em jogo de verdade, Isis perdia muito sangue. Selyn, me prometa que você nunca vai me deixar para trás.

Selyn, me prometa que você nunca vai me deixar para trás.

Me prometa que você nunca...

Nunca vai me deixar para trás...

Selyn

Selyn!

****************

PRESENTE

O grito de despertar, mais uma vez me trazendo de volta. O grito que queima minha alma, que icinera meu corpo, que faz palpitar meu coração dormente. O grito que incendeia em chamas vivas tudo que compõe esta minha pequena musculatura, estes meus frágeis ossos. O grito que me traz de volta dos confins da terra, de debaixo do solo. O som desesperador que faz meu corpo obedecer imediatamente. E geralmente, esse grito sempre é de uma garota de pele alva, cabelos negros como a noite e incríveis olhos violeta. A garota na floresta, a garota do palácio, a garota da voz que desperta os mortos e os faz ressurgir para atender ao seu chamado. A garota que me fez sair da minha própria cova onde o musgo me engoliu.

Ela alcançou minha única mão estendida para fora, enquanto todo meu corpo se encontrava coberto de terra, musgo e minhocas. Ela me puxou para fora, usando de toda a sua força, e quando todo meu corpo foi tirado do buraco, ela me acolheu sobre suas pernas de prata expostas. A prótese que o próprio deus Godfrey fizera para ela como presente para aliviar a perda de seus membros inferiores. Eu não estava aqui quando o deus descera de Homereia para entregar-lhe este presente. Eu não estava aqui quando ela foi acolhida por um curandeiro às pressas, quase morta depois de ter perdido muito sangue. Também não estava aqui quando ela teve que usar cadeira de rodas, muito menos quando foi reabilitada para aprender a movimentar suas novas pernas feitas de prata, encrustada de jóias da cor dos seus olhos, com belos arabescos cravados nelas.

O presente mais lindo para a perda mais lastimável.

Eu respirava pesadamente enquanto ela limpava meu rosto e tirava meus cabelos do meu rosto, seus olhos arregalados e as mãos trêmulas segurando meu rosto. Em seguida, um abraço apertado. Eu tossia fracamente, expelindo os grãos de terra que entraram em minha boca. Enquanto minha irmã se acalmava, eu lembrava da visão perturbadora que tive enquanto era possuída por Moriah, uma garota idêntica a mim, com sutis diferenças. Diferente de mim, a garota tinha cabelos dourados e olhos verdes, porém todas as suas demais características eram exatamente à minha semelhança. Agora eu podia conectar tudo, a garota em chamas que teve sua garganta aberta violentamente, que foi torturada e morta várias vezes, essa garota que se parecia comigo até nesses minuciosos detalhes...

- Isis, leve-me até mamãe. - Pedi com a voz rouca.

- Está bem, ela precisa saber disso. Ela precisa ajudar você. - Isis comentou, me levantando e apoiando meu peso sobre ela.

Demoramos cerca de uma hora para chegar no palácio, tempo suficiente para que eu conseguisse me recuperar por completo e voltar a andar normalmente. Seguindo o som da voz de Camie, eu a encontrei na sala de reuniões, conversando sobre assuntos políticos com o deus do sol, Asck. Quando Isis abriu a porta e os olhos dos dois lá dentro chegaram em mim, Camie levantou-se imediatamente com o coração acelerado pelo susto. Asck me encarava com um olhar assustado e ao mesmo tempo, curioso. Ele franzia o cenho e buscava uma resposta lógica para que eu estivesse tão suja.

- O que aconteceu? Porque parece que você voltou dos mortos?! - Camie exalava ansiedade e preocupação enquanto caminhava até mim, para me olhar de perto e ter certeza que eu realmente estava bem.

- Porque Moriah esteve aqui e me matou. - Respondi secamente.

- O quê?! - Asck foi o primeiro a levantar os olhos em surpresa.

- Onde ela está? - Camie perguntou, engolindo em seco. Minha mãe não pareceu surpresa por saber que Moriah estava no reino, mas ficou abalada por ver que ela não demorou muito para me encontrar.

- Quando eu cheguei, só haviam trevas na cova onde ela enterrou Stacy. Não pensei em segui-la... Ela deve estar muito longe agora. - Isis encolheu os ombros, olhando para baixo.

- Como você sabia que Stacy precisava de ajuda? - Camie virou seus olhos para a caçula.

- Não sei exatamente. - A garota ponderou. - Eu sonhei que a via correndo na floresta e quando a procurei no quarto, não a encontrei. Então, eu fui até a floresta.

Camie arqueou uma sobrancelha, com o olhar pensativo.

- Todas as criaturas nesse mundo morrem e reencarnam. Todos se encontram com a deusa Ombra, a Senhora das Almas. É ela quem nos guia até nossa próxima vida. - Asck murmurou mais para si mesmo do que para mim, porém seus olhos estavam vidrados em meu rosto. - O que quer dizer com "Moriah me matou"? Porque você está viva. No mesmo corpo! Como isso é possível?!

- Não vim aqui para falar sobre minha morte, eu vim porque sei sobre ela. - Olhei firmemente em seus olhos iluminados. - E eu a vi.

Os olhos de Asck decaíram, mas não pela notícia. Ele lembrou-se do motivo pelo qual veio para Paladia e, novamente se viu mais infeliz do que surpreso. Camie no entanto, olhou para outro lado, com o coração inquieto em seu peito. Isis apenas ouvia atentamente às revelações com surpresa e curiosidade, seus enormes olhos não perdiam um mísero detalhe, uma minúscula expressão, um tamborilar de dedos sobre a mesa.

- De quem você está falando? É sobre a noiva do Asck? - Isis perguntou, finalmente.

- Até você sabe disso? - Perguntou o deus.

- Lárissa me contou. E acrescentou que acha você um idiota. - Isis falou, então cobriu a boca percebendo que falou demais.

- Ela acha, é? - Ele fechou o semblante e limpou a garganta, voltando seu olhar para mim. - O que mais você sabe?

- Ela é minha irmã gêmea. - Proferi sem pensar duas vezes. - E você a amava, por isso você não gosta de olhar para mim. Sei que algo aconteceu com ela e você não pôde salvá-la. Também sei que ela está viva em Tihrel.

Asck arregalou os olhos com a face avermelhada. Lágrimas salgadas rolaram sobre suas bochechas e ele deu um soco sobre a mesa, curvando suas costas e suspirando pesadamente. Ele encarou a madeira envernizada e fechou os olhos, apoiando seu peso nas mãos fincadas na mesa, como se seu corpo fosse desabar, como se o simples ato de ficar de pé fosse a mais terrível das sensações. Aquele homem altivo de boa postura e excelentes argumentos, o deus que criou o sol e o levou até o alto dos céus, o mesmo deus que outrora fora tão poderoso ao ponto de destruir qualquer um por apenas olhar em seus olhos ou tocar sua pele, esse homem agora era um miserável desesperado para encontrar o amor da sua vida, a doce garota de bondosos olhos verdes e longos cabelos dourados. Uma garota que ele perdeu, que escapou por entre seus dedos.

- Mas, você não pode entender. Eu passei anos aprisionado em Sokor, onde fizeram comigo o mesmo que os preciosos humanos do Mundo Mortal fizeram com ela. - Asck levantou os olhos para Camie, a fuzilando com seu olhar. - Andreena foi torturada durante anos! Seus humanos achavam que ela era uma bruxa, porque não importava o quanto a ferissem, o quanto a queimassem viva, ela se recuperava de qualquer ferimento. E o que você fez?! O que você fez, Camie?!

Asck desferiu um soco na mesa, partindo-a ao meio, seu rosto transtornado de ódio.

- Eu pedi ajuda de Agani, a governanta desaparecida de Eldham. Ela me ajudou a resgatar Andreena. Você estava ocupada demais sendo a filhinha querida de Hevele, acatando ordens, matando em nome dos deuses! Você desistiu das suas filhas! Se uma estava bem e a outra estava mal, que diferença fazia? Você não fez nada por ela, Andreena foi abandonada pela própria mãe! - Ele dizia aos berros, causando estrondos no ambiente.

O Deus iluminava seus olhos e seu punho, acertando com raiva os restos da mesa. Camie apenas ouvia as acusações sem se defender, sempre olhando para baixo.

- Eu fiz de tudo para mantê-la longe de Thamuz... Fiz de tudo mesmo. Mas, não se pode esconder a filha do deus das Trevas para sempre. E quando ele a encontrou, ela recuperou suas lembranças passadas, de sua outra vida. Foi nesse momento... Que eu a perdi. - Os olhos do deus agora estavam marejados, perdendo seu brilho, substituindo a raiva pela tristeza. - Andreena enlouqueceu de um ódio mortal, sendo manipulada por Thamuz a ir lutar contra Hevele. A deusa dos pecados não recebeu esse apelido em vão. Existe um motivo para todos temerem Hevele, ela tem um dom incomparável...

- Hevele matou Andreena? - Isis olhou aflita para Asck, buscando a resposta.

- Não. - Camie respondeu.

- Porém, era esta a vontade dela. Pôr fim ao grande problema. - Intrometeu-se Asck.

- Hevele a aprisionou em uma maldição terrível que a destruiria dia após dia. Ela ficaria impossibilitada de acordar e seu corpo seria devorado por traças continuamente. - Camie derramou uma única lágrima. - Mas... Mas, eu não pude permitir... - Os ombros da minha mãe tremiam enquanto ela chorava. - Então, eu a entreguei para o único que poderia despertá-la e anular a maldição.

- Thamuz. - Gruniu o deus do sol.

- Sim. - Murmurou Camie. - Foi por isso que você foi sequestrada, sem você ele jamais traria Andreena de volta. - Camie olhava para mim, com os olhos avermelhados. - Você é a única capaz de trazê-la de volta e também a única capaz de realmente matá-la.

- Se você a viu, é porque ela finalmente acordou. - Asck disse entredentes. - Todo este tempo ela esteve em Tihrel, tão próxima de Sokor... Como fui tolo! - O deus balançou a cabeça em auto-desaprovação. - Essa Andreena não é mais a minha Andreena, doce e gentil com as pessoas mesmo quando lhe tratavam como escória. Se pelo menos ela tivesse voltado de outra forma... Agora é tarde demais.

- O que isso significa? - Perguntei.

- Ele quer dizer que ela virá atrás de você, para tomar a sua parte. O poder que era para uma, foi divido em dois. Andreena pretende exterminar todos os deuses em nome de Thamuz e ela não vai conseguir isso sem você. - Camie revelou, olhando seriamente para mim. - Ela precisa da sua metade. Será assim para sempre, uma não sobrevive sem a outra. Ou você lutará ao lado dela, ou ela tomará a sua parte. Matando você. E assim como você, Stacy, ela é a única que pode fazer isso. Definitivamente.

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