IV - Desavenças

Stacy abriu os olhos, encarando o teto, era mais uma noite mal dormida. Ela não estava com sono, também não queria dormir. Apenas queria ficar quieta, de olhos fechados, concentrada nos sons ao seu redor, para saber quando tudo se acalmaria. No meio da noite, ela lembrava de ter recebido uma visita bastante esperada. Isis fez menção de bater à porta, ela podia ouvi-la fungando do lado de fora, sabia que estava chorando. A crueldade do dia, toda aquela dor e desespero alheio lhe fizeram grande mal. Stacy podia sentir o seu corpo entorpecido de medos e pânicos.

Em algum momento, ela não suportou conter o choro e se encolheu ao pé da porta, como se sentisse uma enorme dor no peito. Seu corpo a retaliava novamente por usar tanto de seu poder numa única noite. O poder de curar tem duas faces, se por um lado pessoas podem recuperar membros, fechar seus cortes e assim saírem vivas, serem salvas, por outro lado, seu restaurador verá sob a lente de seus olhos toda a dor que lhe fora imputada. Os curandeiros mais habilidosos se acostumam tanto a sentir tanta dor, que chegam a não sentir mais nada.

Isis não era uma curandeira habilidosa, aliás nem curandeira ela era. Sua irmã era apenas uma alma solidária e como alguém que quer restaurar pessoas, ela deveria aprender sozinha a lidar com as consequências. Poucos minutos depois, Stacy a ouviu correr em disparada para o seu quarto enquanto murmurava para si mesma um milhão de lamentações e preces aos deuses, para que fizessem algo por aquelas pessoas que sofriam. Seu choro não era pela dor que sentia, pelas experiências alheias que cruzavam sua mente, ela chorava porque percebia que era incapaz de salvar todos com quem se importava.

E quando a mais velha abriu os olhos, o teto era a única figura que ela conseguia ver. Seus olhos não eram capazes de reproduzir o que havia em sua frente com perfeita exatidão. Estava tudo confuso e embaçado, como se nuvens cobrissem sua visão. Ela piscou uma vez e nada aconteceu, então tocou seus olhos para curá-los e quando piscou novamente, estava tudo de volta ao normal. Muitos pensamentos rodeavam sua cabeça, ela estava começando a sofrer danos físicos por conta deles. Plandarianos que despertam a semente divina podem acabar flagelando a si próprios, assim ela ouvira os rumores que se espalham pelo reino.

A herdeira levantou-se da cama e se vestiu com uma calça de couro preta, uma blusa de mangas compridas branca e botas na altura da canela. Prendeu o cabelo no topo da cabeça e saiu do seu quarto, descendo as escadas para o café da manhã. Porém, foi interrompida por uma voz indignada vindo das profundezas do palácio. Camie estava profundamente chateada. Impertigada, decidiu pegar as escadas até chegar na direção de onde vinha a voz em eco de sua mãe. Curiosamente, Camie estava na prisão subterrânea, encarando o homem preso na cela com um olhar familiar, parecendo saber exatamente quem era ele.

- Majestade, ele usava roupas de um soldado morto de Tai-Terra. Eu o questionei sobre sua vinda para Paladia, porém... Ele agiu feito um suspeito. - Explicou-se Lárissa. - Fiz o que julguei ser o melhor, afinal ele é um desconhecido.

- Perdoe-me, Lárissa... Não quis ser rude.- Ela falou serena, respirando pesadamente enquanto esfregava os dedos nas têmporas. -  Este é o príncipe do Homereia, o deus Asck, deus do sol. Enfim, ele é um aliado. E mal posso acreditar que está vivo, depois de todos esses anos...

Homereia, ou o reino voador, como muitos diziam, o reino dos deuses, o palácio que sempre estava sobre Plandar, como um satélite. Lárissa e os guardas reais o olharam abismados, sem acreditar que um príncipe de Homereia estava vivo e entre eles, andando e falando. Imediatamente todos prestaram seu respeito por ele e pela sua ascendência, curvando-se com as mãos estendidas. Todos, menos Lárissa, ela permanecia invicta. Camie apenas tocou as celas para liberá-lo e o abraçou ternamente.

- Meu querido amigo... Eu o procurei durante tanto tempo depois que o Olimpo caiu. - Ela o soltou do abraço, olhando no fundo dos seus olhos. - O que fizeram com você?

- Camie, vamos deixar essa conversa para outra hora. Preciso tirar este cheiro e trocar essas roupas... - Ele apontou para si mesmo, com um sorriso triste.

- Sim, tem razão! - Ela falou, com um sorriso alegre. - Sinta-se em casa, querido. - Ela disse, tocando seu ombro gentilmente. - Estou muito feliz por vê-lo.

Asck foi levado para as caldeiras, para recuperar um pouco do seu vigor. Ouvir essa conversa, fez com que Stacy tivesse uma minúscula epifania, pois ninguém sabia a verdadeira idade de Camie, só sabiam que ela já tinha vivido muito. Porém, seu rosto e seu corpo não demonstravam sinais de velhice, ela permanecia no auge de sua beleza, com uma aparência imaculada de uma mulher feita. Sem rugas, sem manchas, sem pés de galinha.

Porém, a imortalidade tem seu preço e como uma imortal, ela vê que atualmente, Plandar se tornou um mundo de guerras, mas nem sempre fora assim. A destruição de Andra foi o estopim que culminou na queda de Homereia. Quando Andra foi destruída, vários deuses se uniram em uma aliança, doando a si mesmos como oferenda para proteger os mundos de um colapso total. Isso foi bom, durante um tempo. Um curto tempo. Até o Imperador Thamuz se erguer das sombras com uma carta na manga e usá-la para abrir portais em Plandar e enviar seu exército das Trevas, destruindo assim, seus inimigos mortais, os deuses de Homereia.

Contudo, o objetivo de Plandar ao manter o que restou dos deuses intactos, é garantir que o Mundo das Trevas não alcance o Reino Mortal, a Terra. Os habitantes do outro mundo não tem poderes, não tem a semente dos deuses, portanto são presas fáceis. Os três mundos devem permanecer em equilíbrio, pois um não existe sem o outro. Essa é a missão divina do exército Paladiano.

Interrompendo seus pensamentos, Stacy ouviu a voz de Camie lhe chamando para o outro lado da parede. Ela está me sentindo? A garota se perguntou.

- Sim, eu sinto você. Estou totalmente recuperada. - Ela caminhou até onde eu me mantinha escondida e estendeu a mão para a garota escondida dentro da parede. - Venha comigo, querida.

Stacy saiu da escuridão, materializando seu corpo para o lado de fora. Às vezes, ela tinha certeza de que Camie podia ler seus pensamentos, então quase sempre, ela se sentia tentada a perguntar se os boatos que contam são verdadeiros, se ela é de fato uma telepata. Todos os deuses têm uma marca intrínseca à sua verdadeira forma, qual seria a dela? Stacy estendeu sua mão para segurar a de sua mãe e subiram juntas, escoltadas por dois guardas reais. Lárissa sentia-se incomodada por estar tão próxima a princesa. Ela se debatia contra suas opiniões, e achava um absurdo que Stacy não fosse castigada por isso. Stacy não precisava ler pensamentos para saber.

- Larissa, como está o seu irmão? - Camie perguntou para quebrar a tensão de sua tenente.

- Ah... Leger está bem, senhora. Até mais do que bem, ele sempre se recupera tão rapidamente. - Ela deu de ombros.

- E onde ele está?

- No quarto dele, eu presumo. - Lárissa respondeu, coçando a nuca.

- Vá até ele e diga que o estou solicitando para o café da manhã. Se encontrar Rosalind antes de mim, diga para mandar os cozinheiros prepararem uma mesa farta. - Camie estava tão feliz que parecia iluminar a todos com seu sorriso e sua graça.

- Farei como ordenado. - Ela subiu escadas acima com pressa, trotando sobre os degraus rapidamente, acompanhada dos outros dois guardas.

- Agora, estamos a sós. - Camie reparou. Seu corpo emanava muito calor e benevolência, seu olhar era de pura satisfação e serenidade. Já fazia um tempo que Stacy não a via dessa forma. - O dia de hoje está tão belo que posso ouvir os pássaros cantando e as crianças brincando com seus pais no jardim.

- De onde você o conhece? - Perguntou a princesa, cortando dela o sorriso.

- De séculos atrás. Um tempo glorioso e também... Cruel. - Falou, pensativa, desfazendo o sorriso de sua expressão.

- E você conhece a pessoa que ele procura? Ele a mencionou quando o encontrei.

Camie parou e olhou em seus olhos, cobrindo a mão de sua filha com sua outra palma.

- Sim, eu a conheci. - Ela piscou, e parou no tempo, como se voltasse anos atrás e não estivesse feliz por esse reencontro cruel de lembranças.

- Não é importante. - Comentou sua filha, vendo seu olhar voltar ao foco, voltar aos dias do presente, na situação atual. - Vamos comer.

Camie franziu o cenho, fez sim com a cabeça e subiu os degraus vagarosamente, sua cabeça estava em outro lugar, presa a alguma de suas lembranças. Tão logo cruzaram as escadas, elas chegaram num pátio minúsculo, onde tochas estavam acesas, o atravessaram em silêncio, indo até a sala de jantar, então Camie parou e olhou nos seus olhos, apertando sua mão de um jeito desesperado.

- Existe um mal pairando nossas cabeças, Stacy... E eu preciso que... - Ela engoliu em seco, ela não queria dizer as próximas palavras.

- Estarei aqui, mamãe. Ao seu lado.

Stacy não precisava saber do que se tratava, ela não queria saber. Já haviam coisas demais rondando sua cabeça. Pensamentos tortuosos, vozes desesperadas, gritos e tempestades. Ela queria o mínimo de paz possível para sua mente. Além disso, fosse o que fosse, sua presença no palácio era suficiente. Camie a abraçou demoradamente, murmurando palavras em uma língua desconhecida. Depois, ela segurou novamente na mão de sua filha e seguiu tranquila até a sala de jantar, como se tivesse tirado um peso dos ombros. Quando chegaram à mesa, Crixus, Isis, Lárissa e Leger já estavam à espera. Pelo visto, as damas demoraram muito mais que o aceitável para tomar o café da manhã.

Todos comeram sua refeição matinal recheada de frutas, doces e pão. Além de sucos, chá quente e até mesmo um bom vinho. Rosalind sempre à disposição, com o olhar baixo, servindo à todos. E Camie, como sempre, pedindo que ela se sentasse, porém, quase sempre Rosalind só atendia à uma ordem bem expressa. Rosalind agia como uma serva devota desde sempre, ninguém nunca a viu agir diferente. Ela nutria uma grande admiração por Camie, pois achava que sua vida está entrelaçada a dela para sempre. De certa forma, talvez realmente estivesse.

Quando Stacy era criança, Rosalind lhe contou o motivo para idolatrar Camie. Ela não era uma simples cidadã, Rosalind era uma princesa de Braedon, ela nasceu forte e saudável, era uma menina doce e gentil. Quando ela completou 7 anos, foi quando Andra caiu e sucessivamente, Homereia também. Um motivo importante para os deuses não usarem seus dons com frequência, é que isso sempre custa um preço. Durante a união dos deuses de Homereia para formar a aliança que impediria a destruição total de Plandar, os deuses usaram todo seu poder para selar o Reino Mortal e assim, protegê-lo. Porém, tamanho poder invocado devastou várias cidades plandarianas com desastres naturais.

No processo para salvar vidas, muitas outras vidas foram colocadas em jogo. Toda a família de Rosalind morreu e seu reino natal quase foi varrido do mapa. Rosalind foi a última sobrevivente, contudo, ela estava mortalmente ferida, seu corpo estava parcialmente esmagado por rochas e sua consciência estava se esvaindo. Nessa época, a rainha dos deuses, Hevele, governava a capital de Plandar e havia mandado sua filha mais nova em missão para Braedon, para salvar o máximo de vidas que fosse possível. Dessa forma, Camie encontrou Rosalind ainda viva e restaurou seu corpo, dando-lhe uma centelha de sua própria alma.

Desde então, a pequena Rosalind abdicou o trono e dedicou sua nova vida imortal a servir Camie, como um gesto de agradecimento pelo presente que recebera. Tudo o que ela conhecera fora devastado, sua família, seus amigos, as pessoas que a rodeavam... Ser uma princesa não enchia os seus olhos, ela queria viver uma vida a servir Camie, por tudo o que sua presença significava. Todos a serviço da Rainha tem uma grande história a ser contada. Com o passar do tempo, todos puderam perceber isso.

- Desculpem a demora. - Asck disse, cruzando a entrada e caminhando até a cadeira vaga que o aguardava. - Meu banho acabou sendo mais longo que o esperado, porém agora me sinto novo em folha. Obrigado, rainha Camie.

Asck estava totalmente diferente, até Lárissa o olhou espantada, abismada com aquele ser divino em sua frente, parecia uma outra pessoa. Seu cabelo havia sido aparado, sua barba não existia mais, sua pele estava totalmente recuperada e cheia de brilho, num branco quase dourado. Seu rosto estava mais nítido agora, sem toda aquela camada de sujeira, e ele trajava roupas limpas que cheiravam a lavanda. Isis engoliu em seco, tentando não encará-lo diretamente, suas bochechas ficando avermelhadas. As únicas pessoas que não ficaram espantadas, fora Camie e Stacy, que sequer levantava o olhar para o deus.

Rosalind estava paralisada, mas não era por admiração. Ela estava paralisada porque o conhecia, seu olhar dizia isso. Seu rosto estava inexpressivo, em seguida, ela piscou várias vezes, tentando digerir aquela presença súbita, alguém que parecia ter voltado dos mortos. Ela estava visivelmente incomodada, porém de um jeito muito discreto. Apenas Crixus e sua irmã mais velha podiam saber disso, pois o coração dela batia descontroladamente, mesmo que sua expressão fosse nula. Crixus também estava incomodado com o nervosismo de Rosalind, que parecia saltar pela boca, ele revezava seu olhar, ora para Stacy, pra para Rosalind. E assim que Rosalind percebeu, ela murmurou um "com licença" quase inaudível e partiu para a cozinha.

Somente oss dois perceberam a reação dela, o resto dos integrantes para o café da manhã, estava absorto no deus. Leger, no entanto, só estava sobrevoando seus próprios pensamentos, totalmente distraído. Stacy olhou para Asck diretamente pela primeira vez, esboçando apenas uma expressão que não dizia nada. A calça cáqui, um tanto justa lhe conferia um ar real, acompanhada de uma camisa off white e botas grossas até as canelas. Ele realmente parecia um novo homem, até mais jovem, depois de receber bastante calor mas caldeiras.

- Não precisa agradecer, Asck. - Camie limpou a garganta, para chamar a atenção das mulheres paralisadas. Isis e Lárissa se endireitaram e voltaram seu olhar para a rainha. - Agora que estamos todos reunidos, podemos conversar. Este é um momento raro em nossos dias, um momento de celebração. - Ela olhou para Asck carinhosamente, um sorriso simples lhe curvava os lábios. - No entanto, também devemos falar sobre assuntos importantes.

- E sobre o que quer falar? - Perguntou Crixus, chutando de leve a perna de Isis por debaixo da mesa para que ela não continuasse se derretendo pelo deus.

- Precisamos de mais soldados. Não podemos pedir que penas o exército Paladiano lute essa guerra. - Camie respondeu.

- Mas, os portais estão fechados, os trevianos se recolheram de volta para seu mundo. - Retrucou Isis.

- Eles voltarão. - Afirmou Camie. - E quando voltarem, precisaremos de mais força para subjugá-los. - Ela deu uma minúscula pausa, então se dirigiu ao deus. -  Asck, sei que é pedir muito, mas precisamos que junte-se a nós.

- Plandar, seus continentes e seus reinos tem a você. Porque precisariam de mim? - Asck disse, descartando a uva que ia colocar na boca.

- Por que você é um deus. E é trabalho dos deuses zelarem pela paz. - Camie o olhou no profundo de seus olhos, como se conversasse mentalmente com ele.

- Minha resposta é não. Agradeço pela hospitalidade e sinto muito por não poder ajudar. Tenho uma missão muito mais importante, como você bem sabe. E deveria ser a sua missão também. - Ele disse, dotado de um olhar sério e uma frieza mordaz.

Camie olhou para baixo e balançou a cabeça, esfregando as têmporas.

- Isso não é um problema, mamãe. - Disse Crixus, se pronunciando. - Podemos ir em busca de novos soldados. Em Eldham sempre há novos soldados.

- Também podemos convocar todos os líderes de cada reino para comparecerem à uma audiência, assim teremos um alcance muito maior. - Ponderou, Isis.

- Exato. - Asck levantou a voz. - Veja, majestade, você já tem o seu exército. E é muito melhor que apenas um homem.

Asck arrastou a cadeira para trás e saiu a passos firmes, levando uma pera consigo. Leger apenas assistia a cena, sem opinar. Sua mente parecia estar perdida em algum lugar bem distante dali. Lárissa formava uma expressão repelente em sua face, abominando cada atitude de Asck. Sua recente admiração por ele acabara de desaparecer. Camie murmurou pedidos de desculpas e seguiu comendo o que lhe tinha à disposição.

- Agradeço pela ideia, meninos. Foi ótima. - Ela olhou em volta, decidindo se diria ou não o que estava pensando. - Não o julguem mal, Asck só está muito frustrado consigo mesmo.

- Não se preocupe, majestade. - Leger levantou a voz, para a surpresa de todos. - Conheço alguém que será de grande ajuda para nós.

- E quem é essa pessoa? - Sua irmã lhe perguntou.

- Você deve lembrar, Lárissa. É um amigo. - Leger a olhou como se fossem cúmplices e ela pareceu entender exatamente de quem se tratava.

- Um ótimo guerreiro também. - Ela emendou.

- Façam como acharem melhor, confio em vocês. - Camie disse, ainda com o olhar perdido lá fora, onde aquele homem estava. - Dêem-me licença.

A rainha levantou calmamente de sua cadeira e partiu a passos largos, o vestido comprido batendo em seus calcanhares calçados com um salto médio. Ela andava rapidamente, sem olhar para trás. Nessa hora, os que ficaram sentados à mesa, apenas assistiram sua partida e voltaram a comer. E Larissa como sempre, começou a implicar com seu irmão por algum motivo que Stacy não deu importância o bastante para reparar. Enquanto todos estavam distraídos, comendo e sorrindo dos irmãos cabeça-dura, a princesa aproveitou para seguir sua mãe.

Stacy a seguiu pelo barulho de seus passos até a sala das estátuas, onde haviam as estátuas entalhadas em mármore dos dez deuses de Homereia e também, um homem amargo e infeliz acariciando o rosto da deusa Selyse, a deusa das águas. Ela morrera há muito tempo atrás, quando ofereceu sua vida na Aliança dos Deuses. Segundo as histórias que já ouvi serem contadas, Selyse era a irmã caçula do deus Asck. Eles eram inseparáveis. Era natural de sua personalidade altruísta, sacrificar a si mesma em prol de outras pessoas. Um sacrifício que deu a todos mais tempo para se preparar.

- Estou amaldiçoado, Selyse. Eu sempre perco todas as mulheres que amo. Você foi a primeira. - Uma lágrima quente rolou sobre seu rosto, até evaporar no calor de sua pele.

Nesse momento, Camie chegou à sala e também se colocou a contemplar todas as estátuas dos deuses mortos e dos poucos que ainda estavam vivos. Ela segurou na mão da estátua de Crowley, o deus dos animais, o criador dos dragões, uma espécie quase extinta. Os poucos dragões que existiam, foram contrabandeados por traidores e levados ao Mundo das Trevas.

- No dia que Andra sucumbiu aos mares, Lorde Thamuz aproveitou-se para invadir o Reino Mortal com diversas criaturas das trevas. - Asck engoliu em seco. - Eu não me dava bem com Crowley, ele sempre parecia tão bobalhão... Porém, ele foi o primeiro a agir. Ele foi até o outro mundo para salvar os habitantes. - Asck lhe olhou pelo canto dos olhos. - Mas, você sabe o que acontece com um deus quando cruza a barreira para o mundo mortal.

- Ficamos mais fracos e perdemos parcialmente nosso poder. - Camie lhe respondeu, caminhando até ele.

- Ele morreu. - Asck virou-se para ela, com um olhar indignado. - Ele morreu para salvar aqueles humanos ignorantes..! - Ele retraiu os punhos. - Selyse está morta também, tudo porque ela salvou o Reino Mortal da destruição! Minha família está morta e agora, eu sou um dos últimos deuses que existe...

Asck olhou para baixo, deixando sua mão cair e seu corpo tenso relaxou um pouco, seu coração batia num ritmo tão quieto, que quase parecia que ele estava morto. Ele se virou para olhar Camie nos olhos, e naquele momento, ele não parecia um deus. Ele parecia ser apenas um homem destruído, que presenciou muita dor e morte. Agora, não havia nada que poderia fazer seu coração bater mais uma vez, como quem sente alegria de viver. Ele não passava de um reflexo de alguém que não estava mais lá.

- A era dos deuses acabou, Camie. Eis a sua profecia. - Asck apertou os punhos, suas veias saltavam na pele, seu sentimento era tão profundo que era possível ouvir o sangue correndo pelas suas veias, recheado de energia.

De repente, o deus se iluminou, os olhos eram como duas estrelas, suas veias saltadas transmitiam um sangue dourado por todo o seu corpo, acendendo seu punho. E ele golpeou com um soco a estátua de Selyse, a transformando em um milhão de pedaços e poeira. Então, seu corpo se acalmou e ele enfraqueceu, sendo amparado por Camie.

- Está vendo? Eu estou fraco. Todos os que sobraram estão. Antes, se qualquer um olhasse nos meus olhos durante a transformação, ele perderia a visão para sempre. Sou uma piada. Pobre deus.

- Pare de sentir tanta autopiedade, Asck. Você é um símbolo de força e poder! Nós dois somos! - Camie falou para ele, sendo firme. - E se é a força que te impede de ser o homem que eu conheci, eu lhe darei a força!

- Com que propósito? Que eu lute sua guerra e na tentativa de vencer, morra? - Asck retaliou.

- Eu lhe daria metade da minha alma, para que encontrasse Andreena. Para que encontre minha filha e a traga de volta para casa!

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