ANTES

"I'll spread my wings and I'll learn how to fly
Though it's not easy to tell you goodbye
I gotta take a risk, take a chance, make a change
And breakaway

Out of the darkness and into the Sun
But I won't forget of the place I come from
I gotta take a risk, take a chance, make a change
And breakaway"

Breakaway, Kelly Clarkson


Então, esse é o grande dia. Depois de hoje minha vida começa de verdade. Passei os últimos 18 anos traçando passos cuidadosos que me guiaram à um futuro brilhante.

Neste exato momento estou no meu quarto, avaliando minha própria imagem no espelho. Vejo meu sorriso alinhado e brilhante, fruto do trabalho árduo do Dr. Roberto, dentista e pai da minha melhor amiga, Denise. Ajeito os cachos loiros do meu cabelo, aqueles que passei a manhã inteira modelando com babyliss. Avalio a maquiagem impecável que destaca meus olhos cor de âmbar e aliso as pregas da saia do meu vestido branco. Suspiro.

Atrás de mim, sobre minha cama de solteiro, a beca azul índigo permanece perfeitamente esticada. Prolongo o momento em que irei finalmente vesti-la. Observo o quarto a minha volta, me preparando para as despedidas que virão em breve. O quarto é pequeno, mas iluminado, com paredes em tom lavanda, decoradas com fotos e croquis. Prego os olhos na máquina de costura modesta, ao lado do manequim onde pratiquei moulage durante tantas tardes, e tudo aqui já começa a parecer nostálgico.

Hoje é o dia da minha formatura no ensino médio. O primeiro de muitos adeus que começarei a dar. Logo vou estar acenando para a casinha charmosa onde vivo desde sempre com meu pai, na cidade de Batatais, interior de São Paulo.

Não que eu vá ir muito longe. Minha vontade era permanecer aqui, como Samuel e Denise, mas meu pai sempre me incentivou/obrigou a correr atrás dos meus sonhos, e aquele curso de Design de Moda em Belo Horizonte fazia parte deles.

Na verdade, se dependesse de João Paulo Brandão eu estaria prestes a me mudar para São Paulo e fazer faculdade na Belas Artes. Mas nós dois sabemos que eu nunca pisaria naquele lugar. Sei que é uma cidade grande, com milhões de pessoas, mas o destino gosta de brincar com a gente e eu nunca correria o risco de dar de cara com ela.

Ela é Sara, a mulher de quem não sei nem mesmo o sobrenome, a mesma que me botou no mundo e que, com a mesma facilidade, 6 anos depois, sumiu nele. Sara me abandonou. Abandonou meu pai. Abandonou nossa família e tudo o que construímos juntos. No meu cotidiano eu costumo não pensar nela, ou no seu nome, ou por onde ela anda e, acredite, acaba com meu humor que meus pensamentos me guiem até ela num dia tão especial quanto este.

É por isso que sacudo a cabeça, tomando cuidado com meu penteado, e esqueço esse assunto. Quase que imediatamente ouço uma batidinha na porta e a voz abafada do meu pai perguntando se estou vestida.

– Estou. Pode entrar. – é o que respondo.

No mesmo instante a porta se abre com um estalo e a cabeça castanha do meu pai aparece na abertura. Ele sustenta um sorriso orgulhoso no rosto e seus olhos, aquele único pedaço que compartilhamos, estão brilhantes e com rugas de riso em volta.

– Pronta? – ele pergunta.

Dou uma voltinha lenta pro meu pai poder conferir todo o visual que vem sendo pensado e montado há semanas, tudo acompanhado muito de perto por ele.

– O que acha?

– Maravilhosa. Como sempre, querida. – ele responde, e sei que está sendo sincero porque de repente seus olhos estão marejados e eu volto a repensar minha mudança para a capital mineira.

– Ah, papai... – começo, meus próprios olhos espelhando os dele.

Psiu. Nada de lágrimas pra você, mocinha. – ele diz, então se aproxima e me abraça – As minhas são de alegria e orgulho.

– Eu sei. – falo com a voz começando a embargar.

– Ótimo. – papai me solta e escrutina meu rosto, estreitando os olhos – Então vamos logo, aquele garoto deve estar te esperando.

Dou uma risadinha. Aquele garoto é Samuel, que agora papai cismou de chamar assim, mas que chamou a vida toda de "Samuca", isso quando ele ainda era apenas meu melhor amigo. Agora que é meu namorado, papai gosta de bancar o difícil, mas sei que o adora e sei que não poderia me desejar um namorado melhor.

Papai se aproxima da cama e puxa minha beca, pronto para me ajudar a vesti-la. É um suplício fazer isso sem desarrumar o cabelo, mas com nosso esforço conjunto executamos a tarefa com maestria. Assim que termino de ajustar a faixa na cintura, meu pai me entrega o capelo e então tenho um daqueles momentos. Vejo minha vida passar diante dos meus olhos.

Todos os momentos que me levaram até ali. Sei que sou jovem, sei que não foram tantas escolhas e nem tantos desafios assim. Sei que o futuro começa agora, mas não consigo me impedir de ver a porta batendo quando Sara nos deixou. As semanas de dor, seguidas pelas semanas de raiva quando a dor acabou e então seguidas pela aceitação de que era isso e de que estaríamos melhores agora, mesmo que a raiva nunca tenha ido embora.

E então me vejo no primeiro dia na escola, aquela em que estive desde sempre, aquela em que Samuel e Denise ainda estarão, agora à noite, fazendo faculdade. Sinto outro aperto no peito, que se intensifica quando me lembro de todos os momentos maravilhosos que passamos juntos. Das peripécias, correndo pelo pátio, das brincadeiras na fonte, de apenas ficarmos sentados nos bancos sob as palmeiras altas enquanto esquadrinhávamos os céu azul anil. Foram dias perfeitos.

Sorrio e coloco o capelo cuidadosamente sobre os cabelos. Papai e eu trocamos um sorriso cúmplice e então estamos prontos para ir.

✭✭✭

Estudei no colégio São José desde que me conheço por gente. É uma construção imponente, em frente à praça, perto do centro da cidade e próximo à rodovia. Hoje em dia, além de ensino infantil, fundamental e médio, o prédio também virou Centro Universitário à noite. É por esse motivo que, para Denise e Samuel, e a maioria dos nossos amigos, as coisas não vão mudar tanto. Eles continuarão na mesma cidade e na mesma escola, fazendo as mesmas coisas.

Pra mim é diferente. É a última vez que atravesso a praça margeada por palmeiras e os portões de entrada. Nunca mais vou apreciar a fonte no pátio aberto, ou me dirigir às quadras para as aulas de educação física. É em uma das quadras que a cerimônia de colação de grau vai acontecer. O lugar já está todo preparado, com um palco improvisado onde seremos chamados e receberemos nossos diplomas, e dezenas de cadeiras de metal, montadas especialmente para nossos amigos e familiares prestigiarem esse momento único das nossas vidas. O primeiro passo em direção ao nosso futuro.

O lugar está apinhado de gente. Alunos trajando becas exatamente iguais à minha, acompanhados pelos pais bem vestidos, os irmãos exultantes e os avós e tios orgulhosos. Minha família se resume a papai e eu. Não tenho tios, nem de um lado e nem de outro. Nunca conheci meu avô paterno, ele morreu antes que eu nascesse, e a mãe de meu pai se foi quando eu tinha 8 anos. Ao contrário de Sara, meus avós maternos sempre foram bem presentes na minha vida. Pelo menos até o ano retrasado, quando vovô partiu após um AVC e vovó o seguiu no ano seguinte. Então quando o assunto é família, meu pai é tudo o que tenho e ele me basta.

Enquanto papai tenta achar um lugar estratégico nas primeiras fileiras, eu procuro meu nome no mar de assentos dobráveis separados para os formandos. Estamos organizados por ordem de sobrenome, como sempre, então não é muito difícil localizar meu lugar, pois sempre estive entre o Braga de Samuel e o Bueno de Denise. Com esse pensamento, esquadrinho a multidão e reparo na garota baixinha, com cabelo longo e castanho, empoleirada em cima de uma das cadeiras e acenando efusivamente em minha direção. Reconheço o sorriso exuberante de Denise, que mesmo depois de perceber que eu a vi, continua a acenar, chamando a atenção de todos, exatamente do jeito que gosta.

Quando me aproximo meu coração sacode dentro do peito ao notar o garoto pálido, de olhos amendoados e cabelo cor de areia, que tenta fazer com que Denise se sente antes que caia e quebre o nariz no dia da colação. Samuel está tão bonito de beca que sinto a garganta fechar ao pensar que depois dessa semana não irei mais vê-lo todos os dias. Tivemos uma série de conversas ao longo das últimas semanas e admitimos para nós mesmos que relacionamentos à distância são péssimos e na maior parte das vezes não funcionam, mas chegamos à conclusão que gostamos demais um do outro para desistir sem tentar.

Sorrio quando os olhos do meu namorado encontram os meus e começo a atravessar o corredor estreito de cadeiras até ele. Sou recebida primeiro por Denise, que salta da cadeira "Brandão, Nélida" diretamente em cima de mim, com os olhos castanhos brilhantes de animação e um sorriso que mal cabe no próprio rosto. A garota pode ser pequena, mas é feroz e forte como um pequeno touro, sinto que minha cabeça pode ser separada do corpo a qualquer momento, tamanho é o aperto de seu abraço em meu pescoço.

– Você chegou! – ela grita no meu ouvido, e sinto um leve cheiro de álcool em seu hálito – Não consigo acreditar que estamos nos formando!

Eu rio nervosamente e dou tapinhas desajeitados em suas costas depois de retribuir seu abraço e mesmo assim continuar presa na gaiola de seus braços de aço.

– Tudo bem, Denise. – Samuel intervém, provavelmente notando o tom arroxeado que começa a colorir meu rosto devido à falta de oxigênio – Nell já percebeu que está feliz em vê-la, agora deixe um pouco pra mim.

Relutantemente, Denise me solta, parecendo um tanto magoada, e eu caio meio desequilibrada nos braços de Samuel.

– Oi. – ele me diz sorrindo, os braços em volta de mim e os olhos nos meus.

– Oi. – eu respondo, passando meus braços por sua cintura e me inclinando para receber seu beijo.

Os lábios de Samuel tem sabor de lar. Eles são cálidos e macios em contato com os meus e tão familiares que chegam a doer. Quero esquecer que estou indo embora e apenas aproveitar ao máximo nossos momentos juntos, sem a sombra da separação pairando sobre nós, mas não consigo. Meu cérebro continua funcionando enquanto nossas bocas se movem em sincronia, marcando o placar imaginário de -1 na contagem dos nossos beijos.

– Vocês sabem que estão em um lugar público e que tem crianças aqui, né? – resmunga Denise, sentada na cadeira "Brandão, Nélida" e parecendo terrivelmente entediada enquanto corta a nossa onda.

Nós rimos juntos e me solto dos braços do meu namorado exatamente no instante em que o mestre de cerimônias pede que assumamos nossos lugares. Enxoto Denise da minha cadeira e me sento, dando as mãos aos meus melhores amigos da vida inteira e percebendo que estava errada quando disse que minha família se resumia apenas à meu pai e à mim. Esses dois também faziam parte da minha vida, de um jeito intrínseco e único. Aperto suas mãos mais forte, trocamos sorrisos cúmplices e então eu viro meu rosto para frente e observo o palco com borboletas no estômago, esperando o futuro que começa agora.

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