Hayato Hiroko - 10/02/2019

-Eu já não disse para calar a boca, Hisahito? - Gritei, perdendo minha paciência com meu irmão mais novo.

-Droga, Hiroko! Nosso irmão está fora de casa há quase uma semana e você nem se importa! - Ele rebateu, os pelos começando a crescer sobre sua face, seus olhos se tornando elípticos.

-Vai querer repetir a dose? - Eu perguntei, dando asas ao início de minha própria transformação -Nao não vai estar aqui para me parar dessa vez, Hisahito. Só cale a boca e me deixe pensar.

Ele recuou, tremendo de medo. Quando viu que eu não estava interessada em persegui-lo, colocou o rabo entre as pernas e saiu correndo escadaria acima. Finalmente eu teria um pouco de paz. Desfiz minha transformação e me joguei sobre o sofá, um peso morto caindo ali. Suspirei pesadamente. Na tarde do primeiro dia de aula, Nao me disse que ia sair para verificar seu território. Hoje, já se completava uma semana desde que havíamos visto ele pela última vez. Havia um redemoinho de pensamentos que corriam por minha mente, que estava funcionando sem parar desde que ele sumiu. O que poderia ter acontecido? , eu me perguntava. Me levantei e andei até a cozinha, usando de um coador de pano para poder preparar uma xícara de café. Este grão estranho que os humanos produziam há tanto tempo sempre teve a intrigante característica de me acalmar, conseguir me fazer pensar. Soltei o ar por minha boca enquanto enfrentava as dificuldades de sua preparação. Geralmente, era Nao quem fazia o café. E ele fazia isso tão naturalmente, como se fosse uma espécie de habilidade natural ou inata. A minha versão parecia uma xícara de água escura com gosto estranho e amargo. Mas já serviu para me acalmar. Andei até o lado de fora da casa, para o jardim de trás. Havia um pequeno espaço coberto com piso de madeira, uma mesa e cadeira que eu e Nao esculpimos com nossas garras, há uns cinco anos atrás. Nao. De novo, o Nao. Tudo naquela casa parecia me lembrar ele. Se eu não soubesse que ele não estava ali, eu podia jurar que o via, me observando por trás, parado e com aquele sorriso calmo que sempre mantinha em seu rosto. Por vezes, aquele sorriso me irritava. Ele sempre conseguia sorrir, permanecer calmo e no controle, enquanto eu e Hisahito tentávamos nos matar. É, alguns vem com o dom para a coisa. Mas aquelas visões do Nao que eu estava tendo estavam me deixando louca. Coloquei minha xícara de café sobre a mesa de madeira e me sentei, virada em direção a pequena mata que havia no final do quintal de trás. Podia ouvir o som dos animais se movimentando por lá. Podia fechar meus olhos e sentir que eu estava no meu lugar. Era como se eu tivesse nascido para estar ali, na natureza, com os animais. Senti uma mão ser colocada sobre meu ombro enquanto estava com meus olhos fechados, aproveitando aquela sensação. Me levantei e me virei, assustada com aquele contato repentino, colocando uma de minhas garras da destra sobre o pescoço da pessoa que me surpreendera. Por um momento, por um único momento, eu podia jurar que eu o vi ali. Parado, me encarando com o sorriso mais debochado do mundo, feliz por ter conseguido me assustar. Fechei meus olhos e o olhei mais uma vez. Ele estava todo ferido, sangrando. Haviam perfurações a bala espalhadas sobre seu torso e em suas pernas, e sua cabeça parecia ter sido perfurada por alguma coisa. Ele estava sorrindo gentilmente, e brilhava de uma forma estranha. Me afastei, e vi uma versão menor do meu irmão mais novo, parada bem ali. Ele me encarava com uma expressão calma, seu sorriso anterior tendo se transfigurado para um mais bondoso e acolhedor. Eu me lembro daquele sorriso. Quando eu fui abandonada por meus pais, aos oito anos, não sabia muito bem o que fazer. Eu queria continuar com eles, viver uma vida normal. Mas eles simplesmente foram embora e nos deixaram em casa, com aquele maldito bilhete. Nossos irmãos mais velhos foram saindo aos poucos, a medida que iam aceitando que nossos pais não voltariam mais. Eu fiquei sentada em um banco que tínhamos próximo a janela da rua, de onde eu esperava poder ver meus pais quando eles voltassem. Hisahito era um bebê, Nao era um pouco mais velho que ele, e eu tinha só oito anos. Mesmo eu sendo a mais velha, foi Nao quem foi mais adulto. Foi ele quem fez com que saíssemos daquela casa, foi ele quem nos ajudou a sobreviver pelas ruas enquanto tentávamos juntar dinheiro para comprar uma nova casa. Naquele momento, parada no jardim de trás, eu jurava que podia ver a face de meu irmão quando ele me chamou para deixar a casa de nossos pais.

-O que você colocou no seu café? - Perguntava Hisahito, me encarando com um olhar de estranheza.

Aquilo tudo não havia passado de uma merda de visão. Me senti com uma extrema raiva enquanto ergui a destra para limpar, discretamente, a lágrima que se formava e se preparava para pender por meu rosto de meu olho esquerdo. Suspirei, tentando não sair destruindo tudo pela minha frente.

-O que você quer?

-Quero que venha comigo - Ele respondeu, sem nenhuma agressividade ou revolta em sua voz. Parecia até outra pessoa, bem mais madura do que aquele garoto com o qual eu havia convivido -Ao menos, temos que procurar pelo nosso irmão, Hiro.

Hiro. O apelido idiota que meu irmão mais velho havia me dado, e que meu irmão mais novo adorava usar. Agora Hisahito começou a me chamar assim também. Soltei o ar, me acalmando um pouco após sentir o cheiro da mata atrás de mim. Passei por Hisahito, indo para dentro de casa. Ele pouco mais fez do que se virar para mim e me encarar com um olhar desesperançoso, como quem estava prestes a desistir do que havia planejado.

-Então você não se importava com o mano, Hiro? - Ele perguntou, voz embargada pelas lágrimas que já se formavam no canto de seus olhos.

-Quem disse isso? - Eu respondi, continuando em direção as escadas -Eu vou me preparar para sair. Sugiro que faça o mesmo.

Pude ouvi-lo fungar, enquanto seu rosto se iluminava devido a minha recente resposta. Posso apostar que ele jamais esperava que eu respondesse isso. Mas eu também não esperava que meu irmãozinho pestinha fosse ser tão adulto nesse momento. E a realidade me acertou, louca como um trem desgovernado que passou através de mim como se eu não fosse nada. E se eu fosse a infantil naquela casa? , foi o pensamento que me ocorreu. Fui rápida ao empurrar tal consideração para fora de minha mente, puxando o ar para dentro de meus pulmões para que este pudesse servir de combustível para minhas próximas ações. Naquele momento, eu já tinha quase total certeza do que houvera ocorrido. Mas eu precisava checar. Eu não podia simplesmente assumir que meu irmão havia morrido e continuar vivendo normalmente. Além daquilo que o matou ainda poder ser uma ameaça para mim e para Hisahito, o fato de que eu não podia ser tão fria acerca da morte de um familiar querido ainda me assolava. Foi com esse pensamento em mente que desci as escadas móveis do sótão, subindo degrau por degrau, até ser engolida pelo escuro que havia lá em cima. Apenas um pequeno fecho de luz saía de uma janela circular em uma das paredes do cômodo, o que deixava o restante do local em uma constante escuridão. Não que fosse um problema para mim, aquele pequeno fecho de luz era mais do que suficiente para que eu pudesse enxergar o que vim buscar. Era algo em que Nao vinha falando há alguns meses atrás, sobre a necessidade de escondermos nossas faces quando fôssemos caçar. Ele disse que estava trabalhando em algumas máscaras para nós. Hisahito ficou animado com a ideia, mas eu não dei a mínima. Não era algo que me importava na época. Tarde da noite, às vezes, podia ouvir Nao subindo ao sótão e começando a trabalhar com alguma coisa. Isso me deixava bem irritada, já que o sótão é bem em cima do meu quarto, e eu podia ouvir cada mínimo ruído. Deixando isso de lado, eu precisava apenas imaginar o lugar onde ele escondeu as coisas com as quais estava tão animado. Como se fosse tarefa fácil. Apesar de parecer um livro aberto, Nao sabia muito bem como esconder tudo o que considerava importante. Caminhei pelo local, respirando aquele ar repleto de poeira e fedendo a mofo. Como o Nao conseguia ficar aqui?, me perguntei, tossindo horrores depois de esbarrar em uma das caixas que estavam empilhadas no meio do lugar. Pelo canto do olho, eu pude ver algo que não me parecia exatamente normal. Me virei, procurando enxergar melhor. Nao havia empilhado um monte de caixas em um dos cantos do sótão. E eu imaginei que não seria por toc ou algo do tipo. Me aproximei, olhando atentamente para não deixar nada passar despercebido. Com ambas as manuais, fui retirando as caixas da pilha, que mais se assemelhavam a uma espécie de parede quando observadas de perto. E essa parede escondia uma escrivaninha e um banco de trabalho, ambos feitos em madeira. Nao sempre fora um bom carpinteiro. Mas o que me animou foi o que encontrei sobre a superfície empoeirada da mesa. Haviam três máscaras posicionadas ali, cada uma parecendo de um tamanho específico para cada um de nós. A do meio - que presumi ser a de Nao - foi a que peguei primeiro. Encarei-a por alguns instantes, como se olhasse para o rosto de meu irmão, ali em minhas mãos. Ela tinha aberturas para os olhos e vários riscos semelhantes a tatuagens tribais ao redor dos olhos. Era a cara dele, pensei, antes de perceber que um pequenino bilhete havia caído de dentro da máscara, enrolado em um pequeno tubo, como um pergaminho. Cuidadosamente, coloquei a máscara sobre a mesa em sua posição original, me agachando para pegar o bilhete que havia caído ao chão. Desenrolei o papel com cuidado em minhas mãos, enquanto caminhava em direção ao pequeno fecho de luz para conseguir ler o que estava escrito, em letras tão pequenas. Não pude evitar. As lágrimas desceram descontroladamente por meu rosto, e eu caí ao chão, sobre meus joelhos. As dúvidas que ainda me restavam foram completamente apagadas da existência pelo que li naquele bilhete, deixado por meu irmão antes que algo de ruim acontecesse a ele. Como poderia ser aquilo possível?

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