ATO III: CAPÍTULO VINTE
Uma vez em um apartamento comecei a limpar tudo, de cima à baixo. Cristo, aquele lugar era um desastre. As merdas de Jeffrey estavam por todos os lados. Eu catava suas cuecas coloridas de cada cômoda e maçaneta. O banheiro estava repleto com os produtos de seu longo ritual de beleza. Cremes, limpadores, tonalizadores. Quando glitter corporal e spray de bronzeamento um garoto precisava? Recolhi tudo e os joguei numa bolsa para devolvê-lo quando estivesse menos furioso comigo.
Então esfreguei a cozinha até que o fogão e balcão brilhassem. Olhei a geladeira. Eu tinha comprado um pouco de filés de salmão ontem. Eu poderia fazer um arroz rústico com alcaparra e vegetais grelhados para acompanhar. Não era meu prato mais original, mas Harry logo chegaria e eu não tinha muito tempo. Eu ainda precisava tomar um banho e arrumar minha estante de livros para ter certeza de que eu pareceria inteligente.
Arranquei minhas roupas nojentas e suadas e as joguei no cesto de meu quarto. Encarei minha cama por um minuto. Eu não queria ser presunçoso, mas também não queria estar despreparado. Tirei os lençóis de coloquei um conjunto limpo. Conferi meu criado-mudo para me assegurar de que tinha camisinhas. Tudo certo.
Tomei banho.
Eu não sabia exatamente o que vestir. Optei por relaxar e usar algo casual com uma camisa de manga longa e calças skinnies pretas com um buraco no joelho. Tinha começado a chuviscar lá fora. Já eram quase nove horas e Harry ainda não tinha chegado. Eu tinha medo que ele cancelasse.
Temperei o peixe e servi o arroz.
Minha prateleira de livros estava num estado pior do que tinha imaginado. Dúzias de lombadas de livros velhos me encaravam com suas poderosas tipografias e títulos juvenis. Comecei a puxá-los, um por um. Os livros esportivos tinham títulos ainda mais estúpidos. Ele pensaria que eu sou um iletrado! Eu também tinha uma prateleira só de livros para colorir! Deixei os romances de Jon le Carré, minhas biografias de bailarinos e os clássicos. Minha cópia de Finnegans Wake nunca foi aberta. Foda-se. Alguém tinha paciência para Joyce?
Eu não tinha onde enfiar os livros que tirei, então os enfiei debaixo da cesta de roupas sujas. Minhas estantes estavam praticamente vazias agora, mas pensei que alguns livros mais cultos fossem melhor que vários livros inúteis. Coloquei algumas plantas e enfeites para preencher os espaços.
Harry ainda não tinha da as caras. Eu me sentia um trouxa. E se ele me deu um bolo? Talvez ele só tenha aceitado meu convite pra me zoar. Eu não o culparia.
Fui para a varanda e fumei, assistindo a chuva cair cada vez mais intensa. Raios caiam há uma certa distância e meus ossos tremeram com o trovão que se seguiu. Lá embaixo vi a parte de cima de um guarda chuvas preto. Atrás de mim ouvi a campainha.
Rapidamente apaguei o cigarro e corri para dentro para apertar o botão que abria a porta lá debaixo.
Ele bateu tão delicadamente na porta que eu só teria ouvido caso estivesse parado bem atrás da porta, o que no caso foi exatamente o que aconteceu.
Seus cabelos estavam ainda mais encaracolados por causa da humidade. Me lembrava dos cachos selvagens que ele tinha quando jovem. Em seus braços um fichário gigantesco. Sua pesquisa. A peguei de seus braços e o coloquei na mesa de centro. Aquilo pesava uma tonelada. Ele também trouxe sobremesa em uma pequena caixa de padaria.
Ele vestia uma casaco preto e grande. O tomei dele e o pendurei no gancho. Sob o casaco tinha mais preto. Calças pretas e uma camisa de seda de botões desabotoados preta. Ele parecia um agente funerário elegante. A única cor vinha de uma gravata de laço dourada amarrada em seu colarinho.
"você se arrumou." Eu disse.
"É assim que eu me visto."
"Oh, okay, uhm, você tá bonito!" Ter Harry sozinho em meu apartamento me deixou desnorteado e incoerente.
"Obrigado."
"Eu gostei da gravata. É... diferente."
Ele se olhou no espelho de corpo ao lado da porta. "Tudo está nos últimos lançamentos da estação. Essa é uma Hermes.
"Sério,? Isso soa caro."
"Custaram trezentas libras, eu acho."
"Trezentas libras! É só a porra de um laço! O gato da minha mãe usa um igual!"
"Elas estão na moda. Todos os homens em Milão usam."
"Vou avisar ao gato. Ela ficará impressionada."
Harry sorriu.
O guiei por meu apartamento. Ele não o viu propriamente da ultima vez em que esteve aqui já que tinham muitos outros convidados. Agora ele vagou por todos os cantos com seus mãos atrás das costas e absorveu tudo, cada um dos móveis horrorosos por vez. Me envergonhei de meu próprio gosto.
"Você tem muita coisa." Ele disse, passando sua mão pelo meu rack de DVD, vídeo games e pelo violão no canto.
"Na verdade não." Respondi da cozinha. Tirei o arroz do forno e comecei a grelhar o peixe e vegetais.
"Mais coisas que eu."
"Você vive como um serial killer. Sem ofensas."
"Tudo bem. Hannibal é minha séria preferida."
"Não estou surpreso."
Servi nossos pratos à mesa. Harry pegou seu livro e discutimos sua pesquisa enquanto comíamos.
"Por que esse Ballet é tão importante pra você?" O estendi um guardanapo de pano e ele o estendeu em seu colo.
"Não sei. Acho que é por ele ter vida. A estória, a coreografia, ela não é estática. Ela tem vida própria. Ela tem vida, respira e sofre mudanças. É como se quem a tocasse pudesse vive-la... Sinto que é a minha história."
"É por esse motivo que você escolheu ir ao Bolshoi quando se formou?"
Sua boca estava cheia e ele assentiu. "Sim, por isso e por quê o Bolshoi é o melhor."
Eu ainda lembrava do nosso último ano de escola. Eleanor, Zayn, Gigi, Liam e eu, todos nós, recebemos propostas de contratos com a Royal Ballet Company. Gigi e Liam até mesmo receberam inúmeras propostas, mas escolheram ficar em Londres.
Harry foi o que recebeu mais ofertas de todos os alunos na história da RBS. Diretores artísticos de todo o mundo, incluindo paris, vieram à escola para cortejá-lo, mas ele estava interessado apenas em uma companhia. O Bolshoi. Ele esperou e esperou, mas eles se recusaram a até mesmo encontrar com ele. O Bolshoi apenas aceitava membros de sua própria academia, treinados sob o método Vaganova, para se juntarem à companhia. Eles tinham bailarinos estrangeiros convidados ao longo dos anos, como Madame, mas apenas um estrangeiro tinha sido um bailarino principal, um americano, David Hallberg em 2011. Hallberg era um bailarino estabelecido do American Ballet Theatre. Harry não foi treinado sob o método Vaganova e não era um bailarino estabelecido.
Uma semana antes da convocação, Harry fez o impensável. Ele contatou cada um dos diretores artísticos que o ofereceram um contrato e os recusou. Nós pensamos que ele tinha enlouquecido. Jornais que vinham acompanhando sua história o colocaram na capa do caderno artístico. "O Garoto Inglês com um Sonho Russo Arrisca Tudo." O diretor artístico do Bolshoi ficou tão intrigado com o que ele fez que entrou em um avião destinado à Londres no dia seguinte.
Eu estava do lado de fora do estúdio quando Sergei Filin e um enviado russo chegaram. Harry sequer estava nervoso. Ele já sabia. Ele já sabia que se conseguisse colocar aquele numa sala e o fizesse vê-lo dançar, seria contratado na hora e estava certo.
Harry, o garoto que chegou à RBS sem um treinamento forma, o pior bailarino da escola que se transformou em uma fera, recebeu uma proposta de contrato de uma companhia que nunca, em sua história centenária, ofereceu uma vaga a um aluno estrangeiro.
Ele era a exceção da regra.
"Eu queria saber como você fez isso, Harry." Lambi o verso de meu garfo.
"Como fiz o que?"
"Como se tornou o que é. Tem algo em você... Você tem algo que ninguém mais tem. Só não consigo descobrir o que é."
Sua expressão ficou sombria. "Talvez seja o oposto. Talvez tenha alguma coisa faltando."
"Você vendeu sua alma. Eu sabia."
"Mais ou menos isso."
Ele folheou as cartas escaneadas de 1876, tudo organizado e plastificado, com datas e nome do autor. Ele foi a vários arquivos ao redor da Europa para encontrar aquelas cartas, mas fez a maior parte de sua pesquisa na Biblioteca Pública Russa em Moscou.
Ele traduziu a maioria das cartas em voz alta. Eu poderia notar pelas pausas e expressões que Harry deveria ser muito bom em russo.
"Quanto tempo você levou pra aprender a falar russo?" Perguntei, enfiando a faca em algumas alcaparras que fugiam de meu garfo.
"Mais ou menos um ano. Contratei um tutor."
"Isso é impressionante. Eu queria saber falar um segundo idioma."
"Você fala francês."
"Não muito bem." Franzi o rosto.
"Eu sempre amei o seu francês."
Ficamos quietos por um minuto. Ele continuava folhando as páginas de seu fichário.
"Eu tô muito intimidado com você aqui."
"Por quê?"
Aquilo era tão difícil pra mim, mas eu tinha que falar. "Você é talentoso e famoso e agora trouxe essa pesquisa pra cá e eu descubro que você também é um louco acadêmico! Eu nem sei mais como falar com você. Tenho medo de falar algo errado."
Ele parecia triste. "Você me chamou de burro."
"O que?"
"Na escola. Você disse que eu era burro."
Eu não esperava aquilo. Eu tive que revirar meu cérebro para lembrar do que ele estava falando.
Nossa briga.
"Harry, eu não quis... A gente tava brigando."
Ele balançou a cabeça e abaixou seu garfo e faca. A chuva lá fora batia na janela.
"Não, você quis sim."
Eu não sabia o que dizer. Eu era um bosta quando estava na escola e Harry me magoou muito naquele dia.
"Eu queria te machucar de volta." Admiti. "Me desculpa. Mesmo depois do que você fez, eu não deveria ter dito aquilo."
Ele pendia sua cabeça sobre o prato.
Toquei seu fichário, tudo cuidadosamente guardado e anotado em sua escrita delicada.
"É por isso que..."
Ele me olhou. "Eu não queria mais ser burro."
Eu estava afogado em culpa. Ainda havia tanta dor entre nós. Era como se nunca tivéssemos saído daquele dormitório. Eu não tinha superado nada daquilo. Talvez Harry também não.
"Me desculpa, Harry, mas ninguém nunca me magoou como você fez. Você era meu melhor amigo. Aquilo me detonou, doeu pra caralho... Peça desculpas pelo que fez. Por favor."
"Louis..." Seus lábios se abriram em agonia. "Eu queria que nada disso tivesse acontecido. Essa é a verdade." Parecia que ele queria dizer algo mais. Algo ainda o incomodava. Em vez de falar, ele me surpreendeu ao tomar meu rosto e beijar minha testa.
Ele não disse as palavras "me desculpe" exatamente, mas isso é apenas semântica? Um peso foi erguido. O passado era passado. Éramos crianças naquela época. Todo mundo fez algo no ensino médio da qual se arrependo. Eu iria mesmo usar a viagem à Kiev contra ele para sempre? Para qual proposito isso serviria? Harry estava aqui, ele obviamente queria concertar as coisas e eu queria meu melhor amigo de volta.
"Amigos." Eu disse, estendendo minha mão.
Ele a tomou. "Amigos."
Terminamos o jantar e lavei nossos pratos. Harry trouxe sobremesa: dois cremes em uma caixa de padaria rosa. Desfiz o nó da caixa e a levei até a mesa de centro.
Não como Jeffrey, Harry tinha um gosto por doces. Essa era a sobremesa mais rica que eu já tinha comido. Eu gostava de assisti-lo lamber o açúcar dos dedos.
Ele falou sobre sua visão da produção, tópico por tópico. Ele até mesmo me fez uma cópia. Ele pensou em tudo. Cada detalhe importava, da coreografia às fantasias. Ele já deu um jeito de exercer sua influência em cada uma dessas áreas, mas ainda nos restavam algumas pessoas à convencer, as garotas, de vez, e agora Niall, e, desde que Maurice se foi, o coreógrafo assistente Joni. Ele me perguntou seu poderia ajuda-lo. Eu disse que iria sob a condição que de que ele falaria com Kenneth e ter certeza de que Liam não seria demitido.
"Trato." Ele disse. "Foi bom fazer negócios com você, amigo."
Eu posso ter acabado de fazer um pacto com o diabo, mas era engraçado bolar um plano daqueles. Eu gostava de estar do mesmo lado que Harry pelo menos uma vez. Eu sentia falta daquilo.
Estávamos sentados no sofá: eu enrolado e ele encostado, uma perna cruzada desleixadamente sobre a outra. Ele estava me explicando as diferenças entre a coreografia original de Václav Reisinger na produção de 19877 e a de Petipa e Ivanov da interpretação de 1895. Ele falava lentamente, a lâmpada morna fazendo suas bochechas brilharem. Eu tentava prestar atenção no que ele dizia, mas estava ocupado demais observando sua boca. Ele tocava meu joelho quando estava atestando um ponto de vista e eu continuava o pedindo para esclarecer melhor, então ele continuava me tocando.
Estávamos tão aprofundados na conversa que esqueci de fazer café. Só me dei conta de meu esquecimento quando ele se levantou e se estivou.
"Eu deveria ir embora. Tenho que acordar cedo amanhã."
"Espera! A gente nem tomou chá."
"Eu não deveria tomar. Me deixa acordado."
Os trovões continuavam ecoando lá fora. A chuva caia com força como uma se fosse feita de aço.
Harry olhou para a rua. "Espero conseguir tomar um taxi com esse tempo."
"Dorme aqui." Disse em um gesto de bravura.
Houve um silencio denso entre nós.
"Não seria apropriado."
"A gente dormia junto toda noite." Eu disse, as memórias tão dóceis e queridas por mim.
"Nós éramos garotos na época. Agora é diferente."
"A gente dormiu no estúdio." Peguei seu punho. "Você nem precisou dos seus remédios."
Ele fez uma pausa. "Eu sempre dormi melhor ao seu lado."
"Venha."
Coloquei uma mão na base de suas costas e o guiei para meu quarto.
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